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2009-11-30

Verdadeira e simplesmente criança

(Este belo artigo foi-nos enviado pelo nosso colega Fernando Rosinha, que vive em Paris. É uma bonita peça literária cujo autor, Esaú Dinis, é amigo do Fernando e com ele viveu em Angola)


Naquele Natal de 1968, em pleno jardim da igreja da Conceição, na cidade alta de Luanda, por debaixo da mangueira, os fiéis e curiosos visitavam um presépio vivo que se mostrava a todos, a seguir ao beija-pé do menino no final das missas festivas.
Mesmo no centro da improvisada cabana, ficava Maria, tendo ao colo seu filho recém-nascido. Ao lado, de pé, apoiado em cajado de viagem e de tocar o burro, estava José. Os reis magos concentravam-se sobre a direita, a simular quem vem do longe Oriente e acaba de reencontrar a estrela prometida. Depois, havia quitandeiras com frutos à cabeça, pescadores segurando aos ombros compridas redes e pastores trazendo nos braços meigos cordeirinhos.
A distribuição das pessoas pelos personagens fora feita de modo espontâneo, de acordo com a disponibilidade das vestes e demais atavios. Só Maria e seu menino obedeciam à necessidade de haver uma donzela que recentemente tivesse dado à luz. Em certos dias, mãe e menino eram brancos, noutras vezes eram pretos.
A notícia correu a cidade e arredores.
Mais tarde, soube-se que o barbeiro, cuja barbearia ficava ali ao lado, comentara com o Arcebispo, enquanto, no Paço, lhe cortava o cabelo curto e lhe aparava as patilhas clássicas: onde é que já se viu isto, de o menino Jesus ser preto.
No Palácio do Governador-Geral, não se falava doutra coisa, embora, pelos corredores, vários funcionários afirmassem, a pés juntos, que tinham visto e gostado do presépio, e que, tanto mãe como menino, eram brancos; só as quitandeiras pareciam pretas, mas até ficavam bem com os seus panos coloridos e as quindas à cabeça.
Na prisão de São Paulo, onde havia presos políticos, e na outra a caminho do Cacuaco, que contava de tudo, alguns deles já tinham escutado. Mas só acreditaram quando, na visita, a enfermeira Arminda confirmou que estivera lá, na missa do galo, e era verdade mesmo. Com todos os pormenores, dona Irene, avó branca de meia Angola, debruçada à janela da rua, confirmara tudo a quem passava e queria ouvir.
Houve pessoas que vieram de longe só para ver com os próprios olhos e depois poderem contar aos quatro ventos.
Quem foi dos primeiros a saber e não gostou nada, foi o dr. São José Lopes, director da PIDE, que preferia ser visto nas missas mais selectas da Igreja de Jesus, mais junto ao Palácio.
Quarenta anos passaram, sobre aquele presépio vivo com mãe Maria e seu menino com as cores de África.
Entretanto, arrastou-se a guerra colonial com o seu cortejo de fogo e morte. A independência acabou por chegar, no alvoroço do 25 de Abril, seguida de muita guerrilha fratricida. Atrasadamente, enfim, a paz chegou e começa, agora, a lançar tímidas e contraditórias raízes de desenvolvimento.
Talvez que hoje, nas igrejas de Luanda, Praia, Bissau, São Tomé ou Maputo, nos presépios vivos que, porventura, por lá se encenem, haja uma mãe com bebé nos braços, pouco importando cor ou sexo, preto, mulato, branco ou crioulo, menino ou menina, porque verdadeira e simplesmente criança.

Cabo Verde, Cidade da Praia, 25 de Dezembro de 2008                                  

Esaú Dinis



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