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2015-02-09

TRILHOS SEM SINAIS

Para trás dos seis anos recordamos alguns factos e imagens, que não irão além da dúzia. Os registos escritos ou fotográficos há sessenta anos eram raros, sobretudo nos campos, nada nos podendo avivar a memória. Sabemos que aos três anos falávamos, comíamos e corríamos com alguma destreza. Nas necessidades fisiológicas, vestir e calçar carecíamos de alguma ajuda. As doenças infantis não tratadas já tinham levado para os anjinhos quase a metade dos que viram a luz

. Em Portugal a esperança de vida era de quarenta e seis anos para os nascidos em 1920. Melhorámos muito e estamos na média europeia na esperança de vida e mortalidade infantil. Passámos os primeiros anos agarrados às saias e cuidados da mãe. Lutámos contra a concorrência de um irmão mais velho  ou mais novo e só não nos arrancámos os cabelos uns aos outros, por ciúme, porque faltavam as forças. Estas lutas servem a alguns, que pouco socializam na vida, como prova de que, quando dois nascem, um manda e o outro trabalha. A verdade é que só se atacam os da mesma espécie e a humana ainda é muito animal. Depressa aprendemos que a mãe, além de nos dar a teta, também nos dava umas nalgadas para impor a ordem e o sossego, mas nem por isso a ligação afetiva afrouxava.

Quando já era gente, contaram-me os irmãos mais velhos, que à data só eram doze, que berrei tanto e tão alto, que nada nem ninguém conseguiu separar-me da cegonha enquanto nascia a irmã que se segue. Juro que não o fiz por curiosidade. Não tinha três anos, mas é uma das poucas imagens arcaicas que guardo. Já devia ter três quando a mãe achou por bem levar-me a visitar os santos. Nunca tinha visto pessoas tão paradas e sérias, arrepiei-me e fugi. Ainda no adro fui levado de volta para a igreja e reiterei a fuga, com o que tive direito a dose reforçada de nalgadas, enquanto gritava pela mãe e ela me dizia que já me acudia.

Quando mais tarde regressava de férias, e me via ir à igreja e fechar a porta, ainda me perguntava se já não tinha medo dos santos. Piaget fala de um inconsciente cognitivo para explicar o apagão dos primeiros seis anos. A criança descobre que muitas coisas não são nem funcionam como acreditava e faz uma espécie de reciclagem. O mundo de harmonia das crianças, em que tudo é para alguma coisa, desmorona-se quando morre alguém que conhece. Fazem então muitas perguntas e o pai deixa de ser omnisciente por não saber explicar bem porque se morre. A criança que fomos continua viva, vai aperfeiçoando as competências cognitivas, motoras e sociais, aprende e disputa jogos com os vizinhos respeitando as regras, escolhe amigos e amplia o seu espaço de ação a outras ruas e bairros, abandonando as saias da mãe. Nota que há meninos e meninas, que estas têm outros jogos, cantam muitas modas, apanham flores e gostam de brincar aos casamentos. Fazem juntos visitas aos campos e no verão refrescam-se nos açudes, vestindo os rapazes os calções com que nasceram e molhando as meninas o vestido, enquanto juram que ninguém vê nada roubado. Todos acompanham os pais e irmãos no trabalho nos campos e vão aprendendo os nomes dos frutos, das árvores e das ervas. O melhor tempo para ir aos campos é o que vai das cerejas às castanhas, havendo sempre algum fruto para escolher. Pelos sete já guiam com uma aguilhada as vacas para o lameiro. Os lameiros por regra são vizinhos, rapazes e raparigas juntavam-se para brincar, enquanto algum ruminante invadia o lameiro do vizinho. Um vigilante de má índole, que não tinha mais que fazer, relata o roubo na aldeia e, no regresso a casa, em lugar da ceia havia sermão, chapada e sonho na cama com comida. A ignorância e as tradições atribuíam responsabilidade de adulto aos sete anos, os mesmos em que a doutrina da Igreja sinalizava o uso da razão, convertia as crianças em pecadores, que tinham de se confessar, comungar e pagar a bula para não comerem carne que não havia. No dia-a-dia vão aprendendo, pelas piores razões, a não repetir os palavrões dos mais velhos nem imitar alguns comportamentos que a moral reserva aos grandes. As crianças são curiosas, e a curiosidade é uma das invariantes da aprendizagem. A outra invariante é a imitação, mas os adultos nem sempre aceitavam a presença de garotos irrequietos. A estes convinha estarem atentos e de pé ligeiro. Nem sempre reagiam a tempo de fugir à biqueirada, com o que cresciam mais uns centímetros. Havia jogos em que os rapazes mais velhos deixavam participar os mais novos. Eram quase sempre jogos violentos, por vezes sujos, em que os mais novos eram malhados. Alguns ficaram com deficiências físicas e sensoriais. Para os mais novos era a desilusão. Boas e más tradições transmitem-se de geração para geração.

Na escola a violência era praticada também pelos professores, estes mandavam recados aos pais e estes castigavam mais os filhos, abandonando-os à sua tristeza em caminhos sem sinais em que as roseiras só criam espinhos. Entretanto muitos hábitos mudaram e as boas tradições perderam-se. Isto já vai comprido, vamos parar nos sete anos, data aproximada em que fui guardar vacas. Guardar ovelhas com menos de catorze anos dava multa. Para o único lameiro vizinho seguiram-me uma rapariga e outros animais. Era num vale, a uns bons dois quilómetros da aldeia. Da parte da tarde o tonitruante Zeus juntou nuvens, relâmpagos e trovões, com muita escuridão, sem chuva, o que mais tarde soube chamar-se trovoada seca. Recordo agora que já sabia que nas trovoadas não nos devíamos abrigar nas árvores. Esse saber indica que já andava na escola. Fomos para uma rocha, tremíamos como varas verdes e abraçados assistimos ao troar e alustrar. Vimos dois castanheiros caírem rachados, ali perto. Tudo acalmou e abraçados nos deitámos e dormimos. Quando acordámos havia estrelas e todos os ruminantes se tinham juntado a nós e tomaram mansamente o caminho para casa, onde notámos haver preocupação e não sermão. Esta história é mais credível que o encontro entre Eneias e Dido durante a caça, num livro que alguns vertemos do latim.

Ricardo Morais

 



Comentários


2017-04-15

Luís Guerreiro Pinto Cacais - Brasilia

Feliz Páscoa!

Já que não vimos hoje nada no nosso céu, nele inscrevemos o que outro nos teve de emprestar.

Irene e Luís

 “José Barbosa Junior

No Natal escrevi:

Gosto de pensar no Natal como um ato de subversão...
- Um menino pobre;
- Uma mãe "solteira";...
- Um pai "adotivo";
- Quem assiste seu nascimento é a ralé da sociedade (pastores);
- É presenteado por gente "de outras religiões" (magos, astrólogos)
- A "família" tem que fugir e viram refugiados políticos;
- Depois volta e vai viver na periferia;
O resto, a gente celebra na Páscoa... mas com a mesma subversão.

Chega a Páscoa, o menino cresceu...

- Trabalhou na carpintaria;
- Morava numa cidade que ninguém dava nada por ela;
- Arrumou uns seguidores tranqueiras;
- Andava com pobres, putas e doentes;
- Considerava mulheres e crianças importantes;
- Provocou os religiosos da sua época;
- Foi morto como um bandido, afinal, desde aquela época, os impérios opressores dizem que "bandido bom é bandido morto!"

Mas...

Ninguém consegue calar a subversão do amor. Ela renasce e renascerá sempre! Ela ressuscitará quantas vezes for preciso.

Sim! A revolução virá dos pobres! Só deles pode vir a salvação!

Feliz Páscoa! Feliz subversão! Feliz Ressurreição!”

 

2015-02-11

António Manuel Rodrigues - Coimbra

História verdadeira, feliz aterrotizado, acredito nela e em ti. Acerca do Eneias, com Dido ou sem ela, outras houve por certo e, então como agora, nem sempre de igual modo agradáveis, como a tua, para ambas as partes.

No meu caso a minha primeira memória nítida e indelével data dos meus quatro anos, um mês e dez dias. Mais vaga, guardo uma outra anterior a esta mas também é certo que algumas outras posteriores mas muito próximas perdi-as de todo.

A minha primeira memória de encantar é um pouco posterior. Não havia gado para guardar mas a idade andava por aí.

Embora não possa entender tudo, nem isso é exigivél, gosto de ler os teus textos-

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