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2013-10-31

“Sobre a ordenação de mulheres a Igreja disse: não!”

É a resposta que o Papa Francisco deu aos jornalistas que voavam em sua companhia, do Rio de Janeiro para Roma, e quiseram saber o que ele pensava da ordenação de mulheres. E completou-a: “João Paulo II o fez com uma formulação definitiva. Esta porta está fechada”.

De fato, em 1994, João Paulo II publicava a Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis onde declarava que a ordenação sacerdotal era exclusiva do homem, dando a questão por definitivamente encerrada. Meses depois, em 1995, havendo dúvidas sobre o assentimento a prestar à declaração, a Congregação para a Doutrina da Fé, então dirigida pelo cardeal Joseph Ratzinger, publicou uma Nota a esclarecer que “a doutrina, segundo a qual a Igreja não tem a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres... deve ser considerada como pertencente ao depósito da fé”. E acrescentava: “Essa doutrina exige um assentimento definitivo... foi proposta infalivelmente pelo magistério ordinário e universal, e deve ser mantida sempre, em toda a parte e por todos os fiéis...”

Assim, o que se acreditava ser apenas uma regra disciplinar e histórica tornava-se uma doutrina de fé.

João Paulo II abordaria, em outros textos, o mesmo assunto. Lembremos apenas a encíclica Ecclesia de Eucharistia, de 2003. Nela o Papa punha de relevo o sentido sacrificial da Eucaristia, deduzindo daí a incompatibilidade da Eucaristia com a vocação da mulher, que é a de dar a vida e não a de derramar o sangue.

Outras eram as conclusões teológicas a que havia chegado a Igreja anglicana. Já em 1992 introduzira a ordenação de mulheres: primeiro, de diaconisas, depois, de sacerdotisas e, por fim, até de bispas. Com o andar do tempo, outras Igrejas seguiriam o mesmo caminho.

Entretanto, cansadas dos bloqueios da Igreja católica e sentindo-se chamadas ao sacerdócio, sete mulheres, de alto nível teológico, encontraram um bispo católico em ruptura com Roma que se dispôs a ordená-las. Aconteceu em 29 de junho de 2002, num barco simbólico navegando pelo rio Danúbio. Era o princípio de um movimento. Dessas primeiras sete, três foram mais tarde sagradas bispas. E o movimento cresceu, embora a reação da Igreja não se fizesse esperar. Em 5 de agosto de 2002, as sete primeiras ordenadas foram excomungadas. As razões não eram nem bíblicas, nem teológicas, nem pastorais. Os argumentos eram de autoridade: queria-se impor uma tradição que não é viva.

Outro acontecimento que teve repercussão foram as declarações feitas pelo Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, numa entrevista publicada, em setembro de 2008, no Boletim da Ordem dos Advogados. “Haverá presbíteras, quando Deus quiser”, disse ele. Não há “nenhum obstáculo fundamental” do “ponto de vista teológico” para as mulheres rezarem a missa no altar. Em contrário, o que se trata é de “uma tradição” que remonta aos tempos de Jesus. “João Paulo II, num certo momento, pareceu resolver a questão”. “Penso que a questão não se pode resolver assim. Teologicamente não há nenhum obstáculo fundamental [para as presbíteras]. Há essa tradição, digamos assim: jamais se fez de outro modo”. “Penso que não haja nenhum obstáculo fundamental. É uma igualdade fundamental de todos os membros da Igreja”. As reações, algumas de verdadeira indignação, obrigaram o Patriarca a um esclarecimento mais cuidado e a recuar.

Em 1977, antes de escrever a sua Declaração Inter insigniores sobre a admissão de mulheres ao sacerdócio, Paulo VI quis saber a opinião da Comissão Bíblica Pontifícia a esse respeito. A Comissão respondeu que, com base no Novo Testamento, não se podia oferecer uma resposta inequívoca. Mas a grande maioria era de opinião que se podia confiar às mulheres os ministérios da Reconciliação e da Eucaristia, sem contrariar a vontade original de Cristo. Paulo VI não seguiu essa opinião. Mas, na Declaração Inter insigniores, o único argumento que invocou para negar o sacerdócio às mulheres foi este: “A Igreja nunca o fez”. Será?

No cristianismo primitivo, as mulheres, excluídas pela sociedade patriarcal, adquiriram um estatuto de igualdade que lhes permitiu liderar o movimento. Testemunham-no explicitamente as comunidades paulinas: as mulheres exerceram a sua cidadania, exercendo funções diretivas, proféticas e docentes, e participavam ativamente nas assembleias cristãs.

Quando a comunidade cristã se converteu em Igreja política integrada no império romano, procurou-se afastar a mulher dos postos diretivos e privá-la da sua cidadania na Igreja. Foi-lhe imposto o silêncio. Contudo, houve mulheres que continuaram, por séculos, a exercer, não só o diaconato, mas também o ministério sacerdotal e episcopal. Em 1399, Cristina de Pistan lamentava que não tivessem sido as mulheres quem escreveu os livros. Se fossem, a história seria outra.

Os testemunhos são escassos, mas existem. Numa das basílicas de Roma, existe um mosaico de quatro figuras femininas: Santa Prudência e Praxedes, Maria e uma quarta, coberta de véu, identificada como “Teodora, Epíscopa”. Na Calábria, Itália, num túmulo do século V, descobriu-se esta inscrição: “Leta, Presbytera”, seguida desta referência: “Consagrada por sua boa fama, Leta Presbytera viveu quarenta anos, oito meses e nove dias e seu esposo lhe erigiu este sepulcro”. Também foram descobertas outras inscrições similares, dos séculos VI e VII, em Salone (Dalmácia), Hipona (África), Poitiers (França), e Trácia. São possivelmente indicações de um sacerdócio feminino que a historiografia católica tende a eliminar ou,quando muito, referir o termo à esposa do presbítero. Entretanto, lá pelo anos 900, perguntaram a Aton, bispo de Vercelli, grande conhecedor das antiguidades cristãs, que sentido tinham os termos “presbytera” e “diaconisa” dos cânones antigos. O bispo respondeu que as mulheres também recebiam ministérios para ajudar os homens. E acrescentou que foi o concílio de Laodiceia, ano 364, que proibiu a ordenação presbiteral de mulheres.

Existe um tratado sobre a virgindade, atribuído a Santo Atanásio, século IV, onde se diz que as mulheres consagradas podiam celebrar a fração do pão, sem a presença de sacerdote: “As santas virgens podem benzer três vezes o pão com o sinal da cruz, pronunciar a ação de graças e orar, pois, no Reino dos Céus, não há varão nem mulher”.

Existe também uma carta do Papa Gelásio, de 494, fim do século V, dirigida aos bispos da Itália, onde se confirma claramente que as mulheres exerciam as funções sacerdotais: “Fomos informados, para nosso grande pesar, que os assuntos divinos chegaram a um estado tão baixo que se anima as mulheres a oficiarem nos sagrados altares e a participar em todas as atividades do sexo masculino, ao qual elas não pertencem”.

Lidas estas notas, talvez o leitor pense como outros que o Papa João Paulo II, na sua Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, foi além dos limites da sua infalibilidade.

Ouçamos o que diz a propósito um grande teólogo, Bernhard Häring:

“Temos realmente um novo dogma?... Alguns respondem a esta questão da seguinte maneira: ‘Temos aqui um dogma frustrado’... A sua tentativa de infalibilizar as suas concepções fracassou, porque não se ateve às afirmações e condições do magistério. Não foi só no Vaticano II, foi já no Vaticano I que se criaram garantias que deixassem claro dentro de que limites, e só então, as declarações do Papa podiam ser validamente infalíveis. O texto mais importante encontra-se na Constituição Pastor Aeternus do Vaticano I. Diz: ‘Segundo a época e as circunstâncias, os Papas romanos só definiram o que, em conformidade com a Sagrada Escritura e a Tradição apostólica, havia que reter firmemente, depois de o haverem comprovado mediante os concílios ecumênicos ou mediante a indagação das convicções da Igreja dispersa pelo mundo inteiro por meio, por exemplo, dos sínodos particulares e de outros auxílios facilitados pela Providência Divina’. Nada disto fez o Papa... O Papa declara algo ‘infalível ‘ em ‘esplêndido isolamento’... Ter-lhe-ia sido fácil comprovar que a grande maioria dos exegetas já havia declarado não existir na Sagrada Escritura qualquer prova contra a possibilidade da ordenação de mulheres. Ele podia também ter sabido que, em muitos países, há uma considerável maioria de fiéis que tem a ordenação de mulheres como possível ou a reclama muito insistentemente.”

Para reforçar o seu pensamento, Häring recorre a outro grande teólogo, Yves Congar: “Segundo Congar e os numerosos teólogos a ele ligados, uma doutrina papal só vale como definitiva e infalível, quando encontra ‘recepção’ na globalidade da Igreja, ou seja, encontra livre aprovação. Se não encontra nenhum assentimento, é também provável que o Papa, por sua vez, não tenha ‘recebido’ ou captado as manifestações do senso da fé nesta questão.”

Será então que “esta porta está fechada”? A Igreja, em muitos lugares, carente de obreiros, já deu, solene e oficialmente, a mulheres a missão e a bênção, para tarefas decisivas da cura de almas, inclusive a direção de paróquias inteiras. Mulheres batizam, pregam, dirigem celebrações de penitências, atendem pastoralmente a doentes e moribundos, etc. Falta-lhes uma condição fundamental para um serviço pleno: a unção sacerdotal. A resistência à ordenação de mulheres mais parece, não uma questão teológica, mas um esforço da razão para manter e segurar o monopólio masculino do poder sacro.

Quanto às tradições, o que importa é respeitar-lhes o espírito, que é melhor servir e não as instituições. Há instituições que serviram em tempos passados e já não servem Por isso, a Igreja, como por vezes acontece, não pode zelar mais a guarda das instituições do que a salvação dos que creem.

Bibliografia: HÄRING, Bernard. Minhas esperanças para a Igreja. Aparecida. Editora Santuário. Paulus Editora, 1999.

 

                                                                                              Luís Guerreiro

 



Comentários


2013-11-01

Assis - Folgosa - Maia

Obrigado, amigo Guerreiro pelo texto acima, nomeadamente por ter salientado as palavras do Pe. B. Haring. Pois, quem melhor que ele poderia pronunciar-se sobre o tema em questão? Ainda sobre o mesmo assunto poderá ler-se algo nos pequenos livros publicados pela Editora Santuário, "É Possível Mudar" e "É Tudo ou Nada", mas mais claramente em "Que Padres Para a Igreja?" editado pela Editorial Perpétuo Socorro também para a Santuário.


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