Espaço destinado a temas diversos....
Vou começar a escrever sem qualquer título, mas com uma citação como recado:
“Nenhuma coisa desta vida humana é tão aproveitável aos viventes que a lembrança e memória dos bens e males passados para do mal nos guardarmos, regendo a vida para nele não cairmos segundo os bons fizeram”.
Gaspar Correia, in Lendas da Índia
Ultimamente tenho dado comigo a cismar sobre os belos momentos vividos na nossa última viagem,” trilhos de Miguel Torga” e sobre a necessidade pendente de dizer qualquer coisa... Acho que foram tão ricos, intensos e vivenciais que seria um crime ficar calado e não participar convosco tudo o que me vai na alma.
Transmontano de origem, telúrico até ao mais ínfimo de mim, habituado a beber a sonolência da campina alentejana, embalado ao som das searas ondulantes salpicadas do verde, por vezes agressivo, das novas culturas de regadio , este reencontro com as origens e as recordações de infância, despertou em mim uma avalanche de sentimentos que é impossível transmitir nestas breves linhas.
Quando cheguei, de véspera para não perder pitada, à quinta da Barrosa, onde já não ia há quase meio século, alguém me perguntou: “-quem és tu? “ Ao que eu respondi que era diferente do e o mesmo Vaz que, no dia 5 de Setembro de 1958, entrou por aquela porta, sempre com a palmeira como ponto de referência, arrancado de uma pequena aldeia de Trás-os Montes e começou a aventura de ser homem...Começámos logo a entender-nos... A única surpresa negativa foi o bosque de betão que substitue a antiga alameda coberta de parreiras que conduzia ao verdadeiro bosque, por entre hortas bem tratadas , onde davamos liberdade aos nossos sonhos e ansiedades, descarregando as nossas energias nos magníficos espaços de verdura, de desporto e escapadelas ao longo do pinhal na ansiedade de encontrar um ninho ou apanhar mais pinhões para o jogo das cartas (abafa ?). Creio que era o campeão.
Depois foi o reencontro, a partida para uma viagem inesquecível em que o turbilhão de sensações todas agradáveis, todas diferentes e avassaladoras ainda hoje me deixam confuso. A Guida, minha companheira, apoio e amparo há 41 anos, viveu isto com a mesma intensidade que eu. Talvez por eu atribuir uma importância vital à minha passagem pelo seminário (11 anos...) por, nas nosssas revisões de vida em casal, focarmos muitas vezes o que de positivo e negativo isso contribuiu para a minha formação como homem, ela está bem identificada com a AAAR e é a primeira a ler a Palmeira e quis que a irmã e o cunhado nos acamponhassem... Em boa hora o fez; ficaram fãs...
Sobre a viagem, a óptima organização, os inesquecíveis momentos vividos, o grande contributo cultural e apaixonado do Bernardino, o reencontro com novos colegas, todos nós temos as nossas vivências e a maneira como terminou fala por si...calo-me!
Diderot, o grande filósofo francês do séc. XVIII, dizia que “ o que nunca foi posto em questão nunca foi provado”. Independentemente da opinião de cada um, das discussões mais ou menos filosofico-pedagógicas sobre traumas e coisas positivas dos nossos primeiros anos, eu dou graças a Deus por ter passado pela quinta da Barroca, por ter convivido com tanta gente que, ao fim de meio século, eu continuo a considerar como família, sem excepção de nenhum e, por aí, com 10 anos de idade, ter começado a aventura de ser homem, iniciando a grande caminhada que me trouxe até aqui.
2- Agora a sério
Não é que eu seja um imitador,mas gosto de citar aqueles com quem me identifico e me motivam para criar qualquer coisa...
Engraçado que nesta breve crónica, talvez por defeito de formação, não do Seminário mas de professor de História, é a 2ª vez que cito um autor francês da época do liberalismo e da revolução francesa. Dizia Montaigne, in illo tempore, que “viajar não é tanto irmos longe, mas sabermos comparar e, partindo, conhecer melhor a nossa terra”.
Foi isso que aconteceu. Nos nossos dias sinalisados pelo progresso dos meios de transporte e de toda a espécie de comunicações, o mundo está cada vez mais ao virar da esquina. Viaja-se hoje ao ritmo das coisas comuns. Em menos de seis horas, deixámos (eu e a Guida) a calmaria e a pacatez do Alentejo, este retiro doirado onde nos refugiámos e nos sentimos confortavelmente instalados, para responder ao desafio, que não deixa de o ser, e ao convite de partirmos à descoberta dos trilhos de Torga e... já estavamos em Gaia!
Depois foi a viagem cuja memória é constantemente marcada pela sombra inspiradora do Torga que vagueia pelo nosso imaginário e nos desafia a um mergulho fotográfico lá das alturas do miradouro de S. Leonardo da Galafurda para a arquitectónica imensidão do Douro vinhateiro que nos embriaga com a paisagem e o sensual desejo de, num único abraço, morrermos e com ele vivermos para sempre.
S. Martinho de Anta, pela novidade e secretismo, acabou por constituir um marco na nossa viagem. Desde a surpresa da riqueza ornamental do interior da capela de N. Srª da Azinheira, um misto de barroco com neoclassico, à paisagem deslumbrante do seu miradouro e à velhice centenária dos seus castanheiros e carvalhos, à visita surpresa do Espaço Torga, faltam-nos palavras para exprimir tudo o que, como um vulcão, rompe cá de dentro: útil para digerir o apaladado almoço do solar 1, proveitoso e prático para melhor interiorizarmos os trilhos de Torga....
No que respeita ao Espaço Torga, politicamente estamos conversados, mas deixou um cheirinho a saudade e vontade de la voltarmos.
Aquela Quinta do Tego ficou-me no goto. A simplicidade do guia, as deliciosas provas de vinhos e o nosso olhar sobranceiro mas reverente sobre o rio, ouvindo ao longe e tão perto o silvar do comboio que durante tantos anos me revoltou as tripas mas , temporariamente, me levava ao conforto do lar, remexeu no meu sótão e trouxe à tona memórias esquecidas...
A Quinta de S. Domingos, foi uma espécie de catarse... Não sei se por, simbolicamente,
marcar o fim dos trilhos, se o almoço ter sido um banquete digno de um casamento,se pela envolvência paisagística,se pelo clima de descompressão, atingiu uma espécie de climax! Daqui para a frente só teríamos que ir para casa.
Se calhar, os que participámos na Eucaristia Dominical, só tivemos que dizer: Obrigado, Pai, por estes momentos de Glória e que eles se repitam muitas vezes...
PS.Já agora fica o convite
Em Beja não vereis o arrebique
a sua escritura é mais sem ornamento.
Estética do recato.
Poesia que
vem de dentro.
Onde outras serão excesso Beja é pouco
mais de sombra que sol é seu circuito.
Procurai no recanto e no reboco
Vereis então que Beja é muito
(Manuel Alegre – Alentejo e ninguém)
Antonio Vaz
Belo apontamento, Vaz.
Também foi muito bom, foi óptimo, rever-te. Em 1958 também eu entrei por aqueles portões!
Fica o teu desafio. Beja tem que ser o nosso próximo destino!
Grande abraço para ti e um beijo para a Guida.
Arsénio