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2012-10-22

MINORIAS ABRAÂMICAS E ESTRUTURAS DA IGREJA

 

Palestra até hoje não publicada do então teólogo de libertação e arcebispo de Recife, Dom Helder Câmara, em Münster/Alemanha, em 22 de julho de 1972, por ocasião em que lhe era outorgado o título de “doctor honoris causa”.

 

 

1. O ideal no tocante a estruturas

 

1.1 A impossibilidade de viver fora de toda e qualquer estrutura

 

 

Em uma cidade qualquer do mundo, eu era hóspede do Bispo diocesano, quando convidado para um contato com um grupo local da Igreja subterrânea que, dias antes, por 48 horas, ocupara a Catedral. O Bispo achou conveniente que eu aceitasse o convite.

Reunião aberta, rasgada, sem sombra de convencionalismo de meias-palavras, de preconceitos. A principal investida era contra estruturas da Igreja. Estavam na fase aguda de repelir toda e qualquer estrutura, julgando inclusive que este era o preço a pagar para a Igreja ter força moral para debater-se pela mudança das estruturas de opressão dos nossos tempos.

Deixei margem ampla para desabafo total. Estávamos em uma sala transbordante. No palco uma mesa, com seis líderes mais exaltados. Ao ter que falar, comecei contando aos líderes que se achavam comigo, em volta da mesa, comentei, amavelmente:

Há menos de um mês, um movimento deflagrado apenas na capital e ainda sem atingi-la em todos os bairros, já apresenta aqui, diante de todos nós, uma semente de estrutura – o grupo que enche a sala e a meia dúzia de líderes. Que se daria, quando o Movimento atingisse todos os bairros da capital e todas as cidades do País, e todos os países do continente... Tentei, então, mostrar que é impossível viver fora de toda e qualquer estrutura. O problema, então, não é pretender viver no vácuo, fora e acima de estruturas.

O problema é de periodicamente o homem ter coragem e serenidade para tentar desfazer-se da sobrecarga que se foi agregando à estrutura primitiva. Talvez haja peças apodrecidas a substituir. Quem sabe, a estrutura há de mudar de todo, desde que o homem saiba e admita que não é o humano que escapa inteiramente de uma estrutura razoável e funcional.

Ponderei ainda que entendia a colocação deles: se a Igreja não tiver coragem de tocar nas próprias estruturas, lhe faltará a força moral de criticar estruturas da sociedade. Mas apressava-me em pedir que, pelo amor de Deus, não se afogassem apenas em problemas internos da Igreja, enquanto lá fora nos desafiam os verdadeiros grandes e urgentes problemas da Humanidade. Avisei, inclusive que, se girássemos apenas em torno de miúdas querelas internas, os jovens dariam de ombros e partiriam. E nos entendemos em torno da necessidade, como lembrava no Concílio Ecumênico Vaticano II o grande Cardeal Suenens, de enfrentar, simultaneamente, problemas ad intra e problemas ad extra da Igreja. E há sinais de sobrecarga perigosa nas estruturas eclesiásticas.

 

1.2. Sintomas de estruturas pesadas

 

1.2.1. Grandes textos quase inaplicados

Um dos sinais alarmantes de que é tempo de uma raspagem em regra no limo que se foi juntando no casco da barca de Pedro – barca de Cristo, com Pedro ao leme – é ver grandes e admiráveis textos, proclamados solenemente pela Igreja, ficarem praticamente sem aplicação. Quantas dioceses levam realmente à prática as grandes lições do Vaticano II ou de Encíclicas como “Pacem in terris”, “Mater et magistra”, “Populorum progressio”? O que é mais grave é que se tem a impressão de sabotagem ao Concilio Vaticano II, partindo de onde pareceria absurdo que ela pudesse surgir.

 

1.2.2. Escândalo antievangélico

Temos ainda um sintoma mais alarmante: o escândalo antievangélico e profundamente constrangedor de ser cristã, ao menos de origem, a minoria de menos de 10% da humanidade que retém, egoisticamente, nas mãos mais de 80% dos recursos da terra. Aí sim: como teremos força moral para abrir a boca, a não ser para um sincero ato de contrição, com medidas concretas de profunda e rápida conversão?...

 

2. Olhar sobre algumas estruturas eclesiásticas

 

2.1. Paróquia

Chega a ser cruel recomeçar a ver o processo da paróquia para concluir que, nos termos em que tradicionalmente se realiza, ela tem os dias contados. Como esquecemos que o Concílio de Trento estabelece que a paróquia deve ter tamanho tal que o pároco possa conhecer pessoalmente todos os seus habitantes? Já que o próprio Concílio de Trento anteviu e desejou as Comunidades de Base, deixemos em paz a paróquia e vejamos, de modo positivo, como as Comunidades de Base corrigem, quando bem realizadas, o que se foi tornando inaceitável na estrutura paroquial.

A Comunidade de Base tem dimensão humana, o que permite que todos conheçam a todos. Os problemas não são casos de moral, extraídos dos livros, mas acontecimentos reais que saltam da vida.

Na Comunidade de Base, para que o diálogo seja efetivo e válido, todos aprendem a falar e a calar-se e a ouvir, alegrando-se vendo o próprio pensamento enriquecer-se com os pontos de vista e até com as discordâncias dos irmãos. Não há monopólios da verdade e do Espírito Santo. O Padre participa dos estudos, mas não necessariamente dando a última palavra ou trazendo a contribuição mais válida: ele aprendeu que não há lugar, nos nossos tempos, para autoridades absolutas, mas, sim e apenas, para autoridades dialogantes.

Na Comunidade de Base, os irmãos se apoiam mutuamente, cada um guardando a própria liberdade e o grupo renunciando expressamente a exercer pressões sobre os seus. Na Comunidade de Base, estão superadas discussões acadêmicas sobre sentido horizontal e sentido vertical, humanização, evangelização e sacramentalização. Não são termos que se excluem, mas atividades que se completam e mutuamente se enriquecem, como na Missa a Liturgia da Palavra e a Liturgia Eucarística são o mesmo Cristo, recebido de duas maneiras.

Na Comunidade de Base, em general todas trabalham ou procuram trabalho, inclusive o Padre que, à imitação de S. Paulo, não quer ser pesado para ninguém e se sustenta com trabalho de suas próprias mãos. Daí, as atividades da Comunidade de Base se concentram nos períodos da noite e sobretudo nos fins de semana.

O grande espanto para quem não conta com as surpresas de Deus e da ação permanente do Espírito Santo, é indagar: quando não há Padres nem para as paróquias, como sonhar ter Padres para Comunidades de Base? O engano está no clericalismo que não imagina e, sobretudo, não admite atividades eclesiásticas sem Padre, ou ao menos um diácono, ou em última análise uma religiosa. Jamais um leigo.

Nas Comunidades de Base move-se liberamente o povo de Deus- Leigos, Religiosas, Padre e Bispo- povo de Deus que cresce em volta do altar. Os Leigos anunciam a Palavra de Deus. Preparam e, quando preciso, promovem o batizado, ceremônia viva, comunitária, de alegre recepção de mais um membro na família. Os Leigos promovem atos penitenciais, evidentemente não dão absolvisão, mas nada os impede de levar o povo a pedir o perdão de Deus. Os Leigos preparam os noivos e, quando necessária, são os representantes da Igreja e tansmissores das bençãos de Deus. Os Leigos visitam os doentes e lhes levam, quando preciso, a Unção dos Enfermos.

Acabaram-se, então, os limites entre o sacerdocio comum dos fiéis e o ministério próprio dos Padres? O Padre que entende os sinais dos tempos e sinais de Deus, logo percebe que está havendo um reajuste tornado necessário pelo avanço desmedido do clericalismo. Em lugar de sentir-se frustrado e reabrir, ingloriamente, a discussão dos apóstolos para saber quem é o maior, alegrar-se-á em ver divididas com irmãos leigos tarefas que jamais poderá realizar sozinho. Descobre maneiras antigas e novas de servir, ajudado pela floração de novos carismas, de novos ministérios. O papel principal do Padre, além de realizar a Eucaristia, em nome do Espírito Santo, consiste em ser o animador das Comunidades de Base, colaborador qualificado da formação dos leigos, membro ativo do presbitério, que deve ser o apoio, a inspiração, conselho do Bispo.

Vê-se então, que é possível, com um número bem menor dos sacerdotes, desde que haja efetiva confiança nos leigos, realizar um trabalho profundo e vasto à altura das necessidades dos nossos tempos.

 

2.2. Diocese

Ao contemplarmos as estruturas eclesiais, a nível diocesano, adotemos o mesmo método de ver dioceses já renovadas ou em pleno trabalho de renovação.

Quando o Bispo abre mão de títulos pomposos, de roupas vistosas e de residências senhoriais, isto corresponde a uma atitude interior de despojamento e de pobreza, ele está em condições de entender as Comunidades de Base.

Quando o Bispo vê a Igreja muito mais como mistério e como Corpo Místico de Cristo, do que como sociedade perfeita, preocupada com direitos e privilégios, quando o Bispo troca feliz a mentalidade jurídica por uma atitude pastoral, ele pode entender Padres que confiam, efetivamente, nos Leigos e dividem com eles responsabilidade de anunciar a Palavra de Deus.

Quando o Bispo ama, de fato, o diálogo e o adota como meio de contato com todos- com seus Padres, suas Religiosas e seus Leigos, com Intelectuais e com Trabalhadores, com Adultos e com Jovens- algo importante e profundo está mudando nas estruturas diocesanas.

Quando o Bispo se acostuma a ouvir a Palavra do Senhor, não somente nas Escrituras, mas nos acontecimentos de cada dia, ele está preparado para assumir, em nome do Cristo, as injustiças que esmagam mais de 2/3 dos homens nos dias de hoje.Quando o Bispo procura viver e fazer viver a constituição Pastoral do Vaticano II sobre presença da Igreja no mundo de hoje, ele não admite que pretendem trancar a Igreja na sacristia, reduzir a religião somente ao culto e ao evangelizar de modo desencarnado, transformando a mensagem de Cristo em ópio para o Povo

 

2.3. Conferência Episcopal

Bispos e dioceses em plena forma, claro que existem. Será razoável querer esperar milagres de compreensão e de atitude profética por parte de Conferências Episcopais inteiras? Não, sobretudo se é grande o número de Bispos que congregam.

Também quem disse que são as maiorias que decidem os acontecimentos e conduzem a história?

O possível e o desejável da parte de Conferências Episcopais é:

obter unanimidade em face do Credo, da primeira à última verdade, ali proclamada, o que é facílimo;

em face de questões abertas, tentar conseguir que cada Bispo ou grupo de bispos tenha clima para manifestar seu pensamento inteiro, havendo respeito mútuo e efetivo em face das várias posições assumidas e salvando-se ao máximo, o afeto fraterno.

 

Quando uma Conferência Episcopal atinge este ponto de amadurecimento e vive a variedade na unidade, saiba que atingiu a posição ideal- lastimável seria que ela fosse dominado por um grupo que impusesse aos outros suas posições, mesmo que se tratasse de grupo que se julgasse aberto e afinado com Vaticano II.

 

2.4. Cúria Romana

 

Cúria Romana ideal seria a que deixasse de existir? Não. Há lugar para um órgão centralizador de informações, de trocas de experiências, de apoio mútuo em horas difíceis.

É mistério, provação, humiliação notar que na Cúria Romana, pessoas a quem não temos direito de julgar e de cuja sinceridade não nos cabe duvidar, dão impressão dolorosa de não entender o espírito do Vaticano II, de temer o Concílio e, na prática, não raro sabotá-lo.

 

Como levá-las a entender que o esforço missionário, encorajado por Roma, conduzido com extrema dedicação e até heroísmo, foi terrível nos seus efeitos por importar um colonialismo espiritual, pelo desprezo pelos valores culturais locais e pela imposição dos modelos europeus e romanos!...

Como levá-las a entender que o esforço vocacional, conduzido pelas Sagradas Congregações – e que praticamente impunha ou aconselhava ao máximo, além do Seminário maior e Seminário menor, ainda o Seminário de férias e o pré-Seminário – já não responde aos tempo de hoje!

Cortados os exessos do clericalismo, admitidos os novos ministérios, refeita a imagem do Padre para hoje e amanhã, não faltarão vocações para o sacerdócio ministerial na Igreja de Cristo.

Para não estar insistindo em aspectos negativos – quando há aspectos positivos em Roma e figuras admiráveis assessorando o Santo Padre – devemos perguntar nos como evitar o pessimismo em certos setores da Cúria que, na pratica dão impressão de perder a esperança, julgando que continuando, o que lhes parece, a presente derrocada, os adversários de Cristo cantarão funerais a sua Igreja?...

 

3. Minorias Abraâmicas a serviço da mudança de estruturas eclesiásticas

 

3.1. Minorias Abraâmicas e Paróquias

As minorias Abraâmicas sentem, pressentem que o segredo para mudança das estruturas da Igreja está nas Comunidades de Base que tentam concretizar os grandes textos e as belas conclusões do Vaticano II.

Na medida em que, radicados em humildade autêntica (sem se julgarem maiores, nem melhores do que irmãos que pensam e agem de modo diferente) e, em caridade evangélica (sair da caridade é sair de Deus), formos obtendo meios e modos de suscitar e animar Comunidades de Base sem chocar-se com Párocos, nem com o Bispo, estaremos preparando a mudança das estruturas paroquiais.

 

3.2. Minorias Abraâmicas e Diocese

 

Quando em uma diocese sem deslealdades vão surgindo Comunidades de Base, com liberdade evangélica de viver os ensinamentos do Evangelho e os ensinamentos da vida, já está em marcha a mudança das estruturas diocesanas.

Mas é fundamental – as minorias Abraâmicas não podem esquecer – ajudar ao Bispo a salvar-se do isolamento, da bajulação, de intrigas, do pseudo – diálogo, da prudência da carne; ajudá-lo a ser, sempre mais, um com seu presbitério, um com todo o Povo do Deus, aberto a todos os grandes problemas humanos, homem de fé, de esperança e o amor...

 

3.3. Minorias Abraâmicas e Conferência dos Bispos

Em cada país, é urgente obter minoria abraâmica de Bispos, que tente viver e fazer viver o clima de unidade no Credo, respeito mútuo em face de posições diversas no tocante a questões abertas e salvaguarda plena do afeto colegial.

Claro que seria ideal conseguir – salvo o respeito às posições divergentes – que a minoria abraâmica de Bispos assumisse a posição profética de lembrar que a Igreja de Cristo não pode servir de suporte a estruturas de opressão e encorajasse tentativas pacíficas, mas corajosas de educação libertadora e de promoção humana.

 

3.4. Minorias Abraâmicas e Cúria Romana

 

Quem conhece a Cúria Romana sabe que já existe, dentro dela, uma esplêndida minoria abraâmica. Sem julgar-se mais lúcida, nem mais corajosa, nem mais cristã, aceitaria qualquer sacrifício para ajudar o Papa e os Bispos do Mundo inteiro a concretizar os grandes e belos ensinamentos da Igreja. Falta apenas quem se decida a articular a minoria , sem o mais leve espírito de grupo fechado ou de complô.

Um dos cuidados mais importantes e urgentes da minoria abraâmica da Cúria Romana é dar o mínimo do apoio à Pontíficia Comissão Justiça e Paz, que não pode, de modo algum transformar-se em uma frustração a mais, sobretudo para os jovens e para os homens de boa vontade....

 

4. Aprender, provavelmente, muito mais do que ensinar

 

Estamos todos começando, ensaiando, entendo. É ridículo alguém chegar dizendo ou pensando ter, no bolso, soluções. Todos tateamos na sombra.

Claro que o Espírito de Deus vela sobre a Igreja de Cristo. E sopra onde quer.

Tenhamos a humildade de reconhecer que todos temos o que aprender e o que ensinar.

Abri o coração. Falei fraternalmente. Falem agora, contando o que o Espírito do Senhor anda soprando aqui.

 

Nota:

Uma tradução do texto para o alemão foi posto à disposição na internet pela Senhora Elisabeth Wöckel, que está em posse do manuscrito original em português. Ela transcreveu o texto para o computador para “RUMOS”.

A Senhora Woeckel, que nasceu em 1937, obteve um diploma de “Master” do Instituto de Catequética e Homilética em Munique nos anos 1960. Como Missionária Beneditina e colaboradora teológica de Dom Helder Câmara em Olinda-Recife estava presente na fundação das Comunidades de Base de 1969 até 1971, trabalhou na composição das “instruções” para as Comunidades de Base, era professora no ITER, Recife, Professora na Universidade Filosófica  Fafire no Recife. Em 1971 foi demitida da Congregação das Missionárias Benedetinas por causa de perigo político para o priorado que ela significava.

 

De 1971-1974 trabalhava na Missio de Munique. Casou-se em 1973. Com o seu marido que era Embaixador da Alemanha em vários países, ela estava de 1977 – 1981 em Sri Lanka como Professora de Exegese no seminário de sacerdotes em Kandu, 1980 era Palestrante sobre Teologia de Libertação na conferência dos bispos da Asia sud-oeste em Trivandrum, India. Morou de 1981 a 1986 na Síria , de 1986 a 1990 no Senegal, 1990 a 1993 na Colômbia. Desde 1993 na Alemanha. De 2007 a 2010 era professora na Arabio-europeia Universidade de Damasco. Desde 2010 reside de novo na Alemanha.

 

Texto enviado por Irene e Luís Guerreiro

 

 



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