pontos de vista

Espaço destinado a temas diversos....


2010-08-02

Democracia na Igreja, porque não?

Democracia na Igreja, porque não?

- “Que não se imponha ao povo um bispo que o povo não deseje”.

- “Aquele que deve presidir a todos deve ser eleito por todos”.

- “Não se deve ordenar ninguém bispo contra o desejo dos cristãos mas sim consultá-los expressamente a respeito dessa nomeação”.

Certamente que não poucos leitores pensarão que estas três afirmações estão tiradas de algum documento dos movimentos cristãos de base ou do grupo de teólogas e teólogos contrários ao actual sistema de nomeação de bispos. Mas não. São textos dos séculos III e V.

O primeiro pertence a São Cipriano (princípios do século III-258), bispo de Cartago, que considerava "de origem divina" o direito do povo de eleger os seus pastores. A sua própria eleição episcopal foi muito discutida.

Os dois seguintes correspondem a Leão Magno, papa de 440 a 461, o mais importante do século V, que conteve o ataque de Átila a Roma. E não são excepção na literatura teológica da época, nem se limitam a reflectir um ideal a procurar. Cito-os como uma brevíssima antologia que poderia ampliar com outras muitas testemunhas na mesma direcção. A eleição dos bispos pelo povo foi uma prática habitual na história da Igreja durante o primeiro milénio, como demonstra o prestigioso teólogo holandês recentemente falecido Edward Schillebeeckx, no seu livro El ministerio eclesial. Agostinho (354- 430) e Ambrósio (340-397) viram-se obrigados a aceitar a sua eleição como bispos de Hipona e de Milão, respectivamente, inclusive contra a sua vontade, porque foram aclamados pela comunidade cristã. Também Paulino de Nola (355-431), amigo de Agostinho, Ambrósio e Jerónimo, foi eleito bispo pela aclamação popular, sendo presbítero casado.

O concílio de Calcedónia (ano 451) opôs-se à ordenação daqueles candidatos que não estiveram vinculados a uma comunidade, até ao ponto de declarar inválida essa ordenação. O bispo ou presbítero que deixava de presidir a uma comunidade voltava ao estado laical.Às vezes, a eleição era muito disputada e produziam-se discussões se não se respeitava a vontade do povo.

Algo parecido acontece hoje, mas não porque a comunidade cristã participe na eleição dos bispos, mas sim porque esta é feita à sua margem, inclusive contra os seus desejos. A oposição da maioria do clero de Guipúzcoa à nomeação de José Ignacio Munilla como bispo da diocese não é um fenómeno isolado na história recente da Igreja. Um caso similar foi produzido por motivo da ordenação episcopal de Alfonso López Trujillo como bispo auxiliar de Bogotá (Colômbia), em 1971. Então, não foi só o clero que se opôs, mas sim uma parte importante do povo, que mostrou a sua desconformidade através do lançamento de santinhos durante a cerimónia da ordenação episcopal.

Presbíteros de Barcelona fizeram um protesto no pátio do palácio episcopal, por estarem em desacordo com a maneira de dirigir a diocese de D. Marcelo González, vindo de Astorga. Há uns anos, foram produzidas reacções de protesto similares pela nomeação de Jaume Pujol, membro do Opus Dei, como arcebispo de Tarragona. Frequentes são também as campanhas de presbíteros e de grupos cristãos quando surge o rumor da nomeação de um bispo que não consideram idóneo para a sua diocese. Muitas vezes, conseguem que não se nomeie o candidato in pectore.

A propósito do conflito provocado pela nomeação de D. Munilla, pôde ler-se estes dias que o que está em jogo são dois modelos de Igreja: o de Uriarte, mais democrático, e o de Munilla, mais autoritário. Acredito que este projecto é teologicamente incorrecto e, na prática, enganoso. Os dois devem obediência ao Papa, que é quem os nomeou. Os dois caracterizaram-se por práticas autoritárias, cada um na sua diocese. Uriarte vetou vários professores da Escola de Teologia, vinculada à Universidade de Deusto. Munilla impôs a mudança do seminário de Palência para Madrid contra a opinião de um sector importante do clero palentino. O despotismo é a patologia episcopal mais comum.

O problema consolida-se, em minha opinião, no sistema de nomeação dos bispos. Daí derivamdois modelos de Igreja: o hierárquico-patriarcal, que se apoia na eleição dos bispos pelo Papa sem intervenção do povo cristão, e o democrático-igualitário, que se baseia na eleição dos dirigentes religiosos conforme o princípio "um cristão, uma cristã, um voto". Uma prática conforme com a tradição da Igreja, que tem o seu fundamento teológico na dimensão comunitária do cristianismo e que está em sintonia com os processos eleitorais das sociedades democráticas. Far-me-ão a objecção que a Igreja é de instituição divina. Ainda nessa hipótese, que é muito pressupor, não entendo porque a democracia tenha que ser contrária à vontade divina nem porque o Papa e os bispos a defendem na sociedade e não a praticam na Igreja.

Como pode Deus querer a eleição democrática dos governantes a nível político e opor-se a ela na comunidade cristã?

Juan José Tamayo. Teólogo. (El País, 07-01-2010.)

(tradução de Arsénio Pires)



Comentários

Ainda não existem comentários!
.: Valide os dados assinalados : mal formatados ou vazios.

Nome: *
E-mail: * Localidade: *
Comentário:
Enviar

Os campos assinalados com * são de preenchimento obrigatório.

Ver todas voltar
Copyright © Associação dos Antigos Alunos Redentoristas
Powered by Neweb Concept
Visitante nº