pontos de vista

Espaço destinado a temas diversos....


2010-04-30

Pedofilia e Poder Sagrado

 

"Mas, qualquer um que fizer tropeçar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma pedra de moinho, e que o lançassem na profundeza do mar". (Palavra de Jesus em Mt 18,6 e textos paralelos: Mc 9,42 / Lc 17,2).

A minha intenção com este artigo não é somente aprofundar os testemunhos sobre a pedofilia na Igreja, mas ir às causas, raiz e consequências dessa perversidade. A pedofilia e outras iniquidades similares desencadearam uma crise na Igreja, que não é temporária, que possa ser ocultada e esquecida, mas uma crise profunda de credibilidade que pode levar muitas décadas para ser solucionada.

1. A Igreja entre a iniquidade e a libertação.

Um facto revelador é confrontar a atitude da Igreja diante da pedofilia e a atitude radicalmente diferente da mesma Igreja diante da Teologia da Libertação.Por um lado, a hierarquia foi permissiva, tolerante, legitimadora e encobridora da pedofilia. Por outro lado, quase ao mesmo tempo, a hierarquia da Igreja teve uma vigilância extrema sobre a Teologia da Libertação que levou a muitas condenações e medidas altamente repressivas e bem divulgadas nos média. Tivemos um modelo de Igreja onde se abusou das crianças e as prejudicou profundamente na sua natureza humana. Quase na mesma época, tivemos outro modelo de Igreja que optou pelos pobres e buscou a sua libertação. À Teologia da Libertação foi exigida fidelidade irrestrita ao dogma católico e obediência ao Sumo Pontífice. À Igreja que sofria com o problema dos clérigos pedófilos foi-lhe imposto guardar silêncio, ocultar os factos, inclusive em casos graves, guardar a informação como "segredo pontifício" (cf. Carta de Hans Küng aos bispos).  

2. Crise duma Igreja cujo poder é a instituição, a lei e o dogma.

Paulo de Tarso diz-nos: "Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei; da graça tendes caído. Quanto a nós, pelo Espírito da fé aguardamos a esperança da justiça" (Gal 5,4-5).Existe um modelo de Igreja que busca a justiça no cumprimento fiel da lei, da norma, do Cânon, do dogma, da doutrina, da rubrica e da estrutura hierárquica da Igreja. Existe outro modelo de Igreja que busca a justiça numa atitude crítica diante da lei, do dogma e da estrutura hierárquica da Igreja. Essa busca tornou-se efectiva numa nova maneira de fazer teologia (a teologia da Libertação), numa nova maneira de ser Igreja (as Comunidades de Base), numa nova maneira de interpretar a Bíblia (a leitura comunitária da Bíblia) e numa nova maneira de organizar os ministérios e de celebrar a liturgia, à margem da rubrica e da lei. A Igreja que buscou a justiça na defesa absoluta da lei "rompeu com Cristo e caiu em desgraça". A pedofilia é um signo dessa ruptura e dessa desgraça. A Igreja da lei já não é uma Igreja que busca a justiça por meio do Espírito e da prática da Fé."Porque do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda a impiedade e injustiça dos homens que detêm a verdade em injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou.Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto a sua eterna potência como a sua divindade, se entendem e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis; porquanto, tendo conhecido Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, nos seus discursos se desvaneceram e o seu coração insensato se entenebreceu..." (cf. Carta de Paulo aos Romanos 1, 18-30)."Nenhuma condenação existe para os que vivem em Cristo Jesus, porque a lei do espírito que dá vida em Jesus Cristo te libertou da lei do pecado e da morte (8, 1-2).

3. Leis, estruturas e dogmas que deram vida à perversão.

a) A lei do celibato obrigatórioO celibato obrigatório pode causar danos profundos à natureza humana. Uma excepção, à luz dos Evangelhos, seria o celibato assumido livremente por clérigos ou de leigos por causa do Reino de Deus. De facto, existem médicos, enfermeiras, educadores e muitas outras pessoas que entregam sua vida inteira ao serviço dos pobres, dentro ou fora da Igreja.Nos seminários e nos retiros espirituais aos sacerdotes, fala-se muito de "crucificar a sexualidade". Outras vezes diz-se que os desvios de tipo sexual são subjectivos e podem ser superados com a oração, com uma boa disciplina e orientação psicológica, que não é dada normalmente por psicólogos, mas por "directores espirituais", prejudicados eles mesmos pelo celibato obrigatório.

b) A própria lei que justifica o celibato e condena a homossexualidadeA homossexualidade é uma opção legítima, quando está guiada por uma ética de amor e fidelidade. Um problema frequente surge quando se utiliza a condição clerical para encobrir a homossexualidade. A perversão não é a homossexualidade, mas a utilização da instituição eclesial para a encobrir. A homossexualidade manipulada, reprimida e escondida pode ser causa de sérias perversões sexuais. O Cardeal Tarcisio Bertone, Secretário de Estado do Vaticano, na sua visita ao Chile, sentenciou que não existe uma relação entre o celibato e a pedofilia mas sim entre a homossexualidade e a pedofilia, e que esta constatação estaria fundada em sérias investigações científicas de psicólogos e psiquiatras. O Cardeal, numa só declaração, procurou justificar o celibato e condenar a homossexualidade, com o qual negou toda a culpabilidade da Igreja nos delitos de pedofilia e culpabilizou aos homossexuais por esses delitos.

c) A lei absoluta na Igreja de incluir somente homens na sua hierarquiaA Igreja católica é a instituição religiosa mais antiga e poderosa onde toda a sua estrutura hierárquica é composta exclusivamente por homens. Uma revista (Newsweek) falou do "clube masculino mais antigo e indestrutível em toda a história". O Papa, em Roma; o Bispo, na sua Diocese e o Pároco, na sua Paróquia são o poder sagrado masculino mais antigo na Igreja.A exclusão da mulher da estrutura hierárquica da Igreja Católica é a outra cara da masculinização absoluta do ministério clerical. Esta situação transforma a hierarquia eclesial num espaço onde tudo é discutido e decidido entre homens. Qual seria a posição da hierarquia se a pedofilia fosse discutida entre homens e mulheres? Como seria a Igreja Católica se o cargo actual de Secretário de Estado fosse exercido por uma mulher ordenada cardeal ou se uma mulher estivesse a cargo dum dicastério no Vaticano?

d) Confrontação da Igreja Católica com a modernidadeA Igreja, desde o século XIX, vê-se ameaçada pela modernidade. Por isso redigiu o "Sílabo dos erros modernos". O Concílio Vaticano I (1869-1870) enfrentou a "civilização moderna" que afirmava a autonomia da razão, do indivíduo, do Estado e das ciências frente à Igreja Católica.Algumas conclusões do Concilio Vaticano I:- que a Igreja é uma "sociedade verdadeira, perfeita, espiritual e sobrenatural";- que a Igreja é "indefectível" e "infalível".Define o primado do Pontífice Romano, a soberania temporal da Santa Sé e a função do Papa como juiz supremo de qualquer controvérsia eclesiástica, enquanto que ele não pode ser julgado por ninguém, nem sequer pelo Concílio. Finalmente, proclama-se  "como dogma divinamente revelado que o pontífice romano, quando fala ex catedra, goza de infalibilidade".Enquanto tivermos um modelo de Igreja marcado por essa tradição conservadora, a hierarquia católica será incapaz de aceitar os melhores avanços da modernidade, especialmente em matéria de sexualidade humana.e) A lei que une perversão sexual e poder sagradoO arcebispo de Pointers, D. Albert Rouet, no seu livro intitulado "J’amerais vous dire" (Bayard, 2009) escreve: "A Igreja Católica esteve sacudida durante vários meses pela revelação de escândalos de pedofilia. Isso tudo é uma surpresa? Quisera antes de tudo precisar uma coisa: para que exista pedofilia são necessárias duas condições: uma perversão profunda e um poder. Isso quer dizer que todo o sistema fechado, idealizado e sacralizado é um perigo. Quando uma instituição, incluída a Igreja, se fundamenta numa posição de direito privado e se afirma numa posição de força, os desvios financeiros e sexuais chegam a ser possíveis".

4. As vítimas da pedofilia e a credibilidade da Igreja.

É importante ver toda a realidade da pedofilia a partir de suas vítimas. Até há pouco, a Igreja considerou a pedofilia como um pecado e não como um delito. O pecado pode ficar oculto no segredo do sacramento da confissão; porém, o delito é um crime que deve ser levado a público, aos tribunais. A Igreja hierárquica rechaçou a culpabilização da pedofilia e ocultou o pedófilo para salvar como Igreja a sua credibilidade e prestígio. A Igreja também ocultou a criminalização da pedofilia para evitar ser condenada e obrigada a pagar uma indemnização monetária. Ocultar o delito e o delinquente para salvar o prestígio da Igreja é uma iniquidade e uma agressão às vítimas. Expressa também hipocrisia, farisaísmo e falta de solidariedade.A Igreja Hierárquica ocultou os padres pedófilos com o pretexto de tornar possível um seguimento psicológico. Traslada-os duma paróquia para outra ou envia-os para uma diocese fora do país com o pretexto duma reabilitação dos pedófilos de maneira a que a credibilidade e o prestígio da Igreja não sejam abalados. Argumentou-se que a pedofilia era uma "doença" que para ser "curada" devia evitar-se todo o escândalo público (entrevista ao Cardeal Darío Castrillón Hoyos, realizada por Patricia Janiot, na CNN).Um argumento utilizado para ocultar a pedofilia do clero era a prioridade que se devia dar à Instituição Eclesial sobre suas vítimas. A reabilitação do clero pedófilo era vista como necessária em função dos interesses da própria Igreja. Esta, além disso, não devia "perder" um sacerdote por causa de um "problema pessoal", como era considerada a pedofilia. Também se argumentou que o número de sacerdotes pedófilos era insignificante em comparação com a maioria dos sacerdotes que não o eram. E discutiu-se que a percentagem de pedofilia no clero era mínima quando comparada com a percentagem de pedofilia a nível social e mundial.Também a Igreja enfrentou os meios de comunicação que denunciavam a pedofilia na Igreja. Interpretou isso como uma campanha mediática perversa contra a Igreja Católica. A Igreja apresentava-se como vítima e ocultava as verdadeiras vítimas da pedofilia.Todos esses argumentos confirmam que a Igreja não via a pedofilia a partir das suas vítimas mas a partir dos seus interesses, especialmente a partir da defesa da sua credibilidade e autoridade.

5. Os gritos das vítimas e os prantos da hierarquia católica.

Não basta que a Igreja peça perdão pelos delitos de pedofilia cometidos pela sua hierarquia episcopal e presbiteral. Tampouco basta a condenação dos sacerdotes pedófilos e da assim chamada "tolerância zero". Tampouco basta que a Igreja tome as medidas disciplinares para que a prática da pedofilia desapareça para sempre. Não basta reconhecer que a Igreja se sinta ferida e arrependida. Não basta que os legionários de Cristo declarem que o seu fundador, o Padre Marcial Maciel, e alguns dos seus discípulos não são exemplos de vida cristã e sacerdotal.Tudo isso é justo e necessário. Porém, falta o mais importante: escutar o grito das vítimas. Toda a problemática da pedofilia deve ser analisada e julgada por eles mesmos e a partir de sua própria realidade. Os que têm sido vítimas têm direito a ser sujeitos de sua própria vida, sujeitos da reconstrução das suas vidas e sujeitos da reconstrução dos factos dos quais eles foram vítimas. Não desejam que sejam outros, inclusive os seus vitimadores, que falem por eles. Exigem eles mesmos uma explicação sobre o porquê a Igreja ocultou os clérigos e bispos pedófilos. Pedem pessoalmente uma condenação dos seus agressores e uma indemnização pelos danos infligidos. Eles, como sujeitos, querem ser solidários com outras vítimas de pedofilia, na Igreja e na sociedade que, todavia, ainda não puderam fazer a sua denúncia e levá-la a julgamento. O grito das vítimas já ressoa no mundo inteiro. Exige solidariedade como a exigem os 16 mil meninos que morrem de fome em cada dia.Sentimos hoje a actualidade das palavras que Deus disse a Moisés: "Vi a aflição de meu povo no Egipto; escutei o seu clamor contra seus opressores e conheço os seus sofrimentos. Vim para os libertar e conduzir a uma terra onde jorra leite e mel" (Êxodo 3, 7-8).

Pablo Richard. Teólogo e biblista chileno.

Adital -  26-04-10



Comentários

Ainda não existem comentários!
.: Valide os dados assinalados : mal formatados ou vazios.

Nome: *
E-mail: * Localidade: *
Comentário:
Enviar

Os campos assinalados com * são de preenchimento obrigatório.

Ver todas voltar
Copyright © Associação dos Antigos Alunos Redentoristas
Powered by Neweb Concept
Visitante nº