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2010-04-13

Tentando entender Bento XVI

Há cinco anos que Ratzinger se tornou Papa, contra a vontade e as esperanças de muitos católicos. A sua actuação, durante longos anos, à frente da Congregação vaticana para a Doutrina da Fé, fizera dele uma figura demasiado controversa para poder ser o Papa que muitos esperavam.

 Eleito Papa, não parece ter mudado. Diz-se que, quando ainda jovem professor, o padre Joseph Ratzinger escolheu como seu modelo intelectual o cardeal Newman, aquele que escreveu: “Aqui em baixo, viver é mudar, e ser perfeito é ter mudado bastante”.

 Dele é também a afirmação de que a consciência individual é mais decisiva que a autoridade da Igreja.

Inspirado nos textos do cardeal, Ratzinger foi um defensor das decisões reformistas do concílio Vaticano II. Até 1968. Então, um bando de estudantes blasfemos invadiu a Universidade de Tübingen, onde ele ensinava. E ele ficou abalado. Retirando-se para um ambiente mais tranquilo, o da Universidade de Regensburg, ali se dispôs a trabalhar não tanto pela mudança como pelo conservadorismo.

 Entendeu que, se a Igreja quisesse sobreviver à irrupção do relativismo, do socialismo, da anarquia e do secularismo, ela devia ser clara e definida e manter-se sempre a mesma. Continuou, no entanto, a reverenciar Newman e a apoiar os decretos do concílio Vaticano II, mas afirmando que Newman e o Concílio tinham sido mal compreendidos pelos católicos liberais.

Quando já Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé no pontificado de João Paulo II, Ratzinger teve de intervir nos casos que iam surgindo de abusos sexuais de crianças por parte de membros do clero. Eram casos pontuais que, a princípio, não impressionaram nem João Paulo II nem o seu grande colaborador.

 A única preocupação de então era e continuaria a ser a de salvaguardar a reputação da Igreja e proteger os abusadores. As vítimas eram injustamente esquecidas ou encobertas, passando assim a ser duplamente vítimas: vítimas dos abusos sexuais e vítimas sacrificadas em prol do bem e da autoridade moral da Igreja.

Feito Papa, Ratzinger vê agora a Igreja Católica mergulhada em profunda crise, com a revelação dos muitos abusos sexuais de crianças e adolescentes praticados por elementos do clero católico.

 Não são casos pontuais, são milhares, e ele, por muito que o queiram isentar de responsabilidades, teve parte no encobrimento dessa mancha que foi crescendo na Igreja.

Numa entrevista ao Spiegel Online de 07.04.2010, conduzida por Maria Marquart, um dos seus discípulos, o teólogo alemão Wolfgang Beinert explica onde é que o Pontífice errou e a razão por que a crítica quase não o atinge.

 

 P: Professor Beinert, segundo uma sondagem, só um terço dos alemães considera bom o trabalho de Bento XVI. Dos católicos, 45% dão-lhe uma nota má. O senhor julga que o Pontífice tem condições de vencer a actual crise da Igreja Católica?

 

R: Na realidade a Igreja atravessa uma crise gravíssima, uma crise como há muito não sofria. Mas penso que, sob a chefia do Papa, ela será superada. No entanto, há que dizer que, para a vencer, a Igreja tem pela frente grandes dificuldades. Até hoje, ela sentia-se naturalmente capaz de resolver os problemas internos por si só. Mas agora os abusos de crianças não são só problemas da Igreja: atingem outros âmbitos

 

P: No caso do escândalo dos abusos sexuais, o senhor acha que a Igreja esteja disposta a consentir na ajuda externa?

 

R: Entre os próprios bispos, aumentam os clamores por uma instância neutral. Isso representa uma grande mudança na Igreja. E o mudar de uma atitude ou de uma ideia secular para uma nova visão do mundo é coisa que exige tempo. Eu creio que, com o tempo, se compreenderá que nisso se necessitam modos e atitudes mais abertos.

 

P: O Papa manifestou-se em relação ao escândalo dos abusos na Irlanda, mas não se referiu directamente aos da Alemanha. Com isso não terá melindrado as pessoas?

 

R: Temos de levar em conta a personalidade de Bento XVI. Como homem de ciência e pensador arguto, ele não tenderá nunca a precipitar-se. E isso pode ser visto pelo público como hesitação ou inaptidão. Mas eu creio que se há de deixar a cada um o direito de reagir a seu modo. Em relação à Carta Pastoral aos Irlandeses, eu não senti que se possa dizer que nós, alemães, não fomos afectados, pois, basicamente, o Papa denunciou os abusos publicamente.

 

P: Não obstante, muitos perderam a confiança na Igreja. Por reprovarem os abusos, muitos católicos debandaram. Como é que Roma encara esse processo?

 

R: Em Roma constatam seguramente tais défices. Lá existe o pensamento do retraimento saudável, conforme o mote: mesmo assim, não foi nenhum dos membros dedicados da nossa comunidade. Nisto, Roma devia pensar de outra maneira. Nós não podemos ver só as perspectivas alemãs. Na África e na Ásia são muitos os que aderem. Vista globalmente, a Igreja está a crescer, segundo o anuário estatístico.

 

P: Há cinco anos, quando Bento XVI foi eleito, dizia-se: “Quem é brilhante como pensador, também o pode ser como orientador das coisas num outro sentido”. O senhor nota que tenha havido mudança em aspectos importantes?

 

R: Quem é capaz de pensar de forma brilhante, também é capaz de orientar brilhantemente seu pensamento noutro sentido. Mas ele não é obrigado. Bento XVI mudou o curso das coisas, mas não na direcção que a maioria esperava. Afinal, foi escolhido pelos cardeais que esperavam pela continuação do curso impresso por João Paulo II. Eles não o escolheram para mudar bruscamente o rumo da barca da Igreja.

 

P: Muitos católicos debatem os temas do ecumenismo, do celibato e da moral sexual. Que peso tem para o Papa a opinião das bases?

 

R: Eu sei que Bento XVI reflecte intensamente sobre esses temas. Mas quanto a mudanças que ele ainda possa introduzir, prefiro ser céptico. Bento XVI possui uma personalidade essencialmente conservadora. Por conseguinte, tentará conservar as coisas pelo maior tempo possível. Ele, no entanto, não é fundamentalista. Avançará, mas cuidadosamente. É da sua natureza.

 

P: Com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, ele mostrou-se absolutamente aberto. Será ele um Papa dos conservadores?

 

R: A história com a Fraternidade Sacerdotal – sei-o de conversas pessoais –  tirou-lhe o sono. Foi para ele um caso muito sério. Preservar a unidade da Igreja é a essência do seu ministério. E, penso eu, isto era um desejo íntimo dele: que o único grupo que até agora se afastou da Igreja por causa das decisões do concílio Vaticano II, se reconciliasse com ela. Mas não acredito que ele esteja disposto a pagar qualquer preço para viver em paz com a Fraternidade.

 

P: A readmissão do contestador do Holocausto, bispo Richard Williamson, causou espanto em todo o mundo. Com isso a Igreja não pagou já um alto preço?

 

R: Eu acho que o grande problema do pontificado de Bento XVI são os membros da Fraternidade. Se eu quiser ter uma coisa, devo perguntar-me se o preço é razoável. Para o dizer em termos de economia: nessa história da Fraternidade Sacerdotal Pio X, o Papa talvez não tenha calculado correctamente a relação de custo e benefício.

 

P: Isso não terá dependido também de que o Papa, no Vaticano, vive em seu próprio planeta e os que o cercam não permitem o acesso de críticos?

 

R: Esse pode ser o caso, humanamente compreensível. Todo o detentor de poder vive naturalmente num mundo à parte. Mas seguramente nenhum chefe supremo de Estado democrático moderno tem menos possiblidades de estar totalmente isolado do que o Papa. E, nas audiências, a maioria dos que se encontram com Bento XVI simpatizam com ele. A própria correspondência e as questões que lhe chegam, são coisas que ele só não pode controlar. Isto é, o Papa vive sempre de ar filtrado.

 

P: O senhor fez a habilitação de professor universitário com Ratzinger e já o conhece há muito. Ele mudou com o pontificado?

 

R: Ratzinger era antes um homem muito distante e quase taciturno; dificilmente se acercava a qualquer pessoa abertamente. Aí ele realmente mudou. É de braços abertos que recebe o povo. Isso também mostra a mudança. Eu tenho o ensejo de o ver todos os anos, no verão, por ocasião do encontro do círculo de discípulos. Então sou testemunha de um homem admirável em sua tranquila e feliz humanidade.

 

P: Nesses encontros de discípulos, os senhores também lhe apresentam questões críticas da base católica?

 

R: Não. Estes encontros são encontros de um professor com os seus alunos. Neles são tratados temas científicos, segundo o método dos seminários universitários. Não há espaço para outros temas. Por desejo dos discípulos, no próximo encontro trataremos do tema concílio. E então é de prever que, tendo em conta as reformas do concílio Vaticano II, questões explosivas venham à baila.

 

P: Portanto ele também aceita críticas dos discípulos?

 

R: Eu conheço pouca gente no campo científico que esteja tão disposta à discussão e ao diálogo como ele. Isso pode observar-se nas discussões do círculo de discípulos. Mas é preciso dizê-lo: são discussões que não gravitam em torno de temas de política eclesiástica.

 

P: Isto é, ele separa então os dois papéis, o do Papa e o do homem da ciência?

 

R: Ele é feliz, quando faz o papel de professor. É muito importante para ele poder, uma vez ao ano, dar continuidade à sua primeva vocação e pôr de parte, por breve tempo, o fardo da chefia da Igreja.

 

Fonte: SPIEGEL ONLINE de 07.04.2010 /// Tradução e apresentação: Irene e Luís Guerreiro

 

 



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