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2010-04-05

Um ovo de Páscoa...

O corpo alimenta-se de comida. A alma alimenta-se de palavras. Quem disse isso foi Jesus, no seu conhecido debate com o Tentador. A comida engorda e faz o corpo pesar. E o peso o faz afundar. As palavras, ao contrário. tornam leve a alma e a fazem voar.

Eu estava a chegar ao meu escritório. Ele, maltrapilho, aproximou-se e disse: “O senhor tem uma feliz Páscoa para mim?” Respondi: “Tenho. Mas eu gostaria que você respondesse a  uma pergunta: Páscoa, o que é?” Ele me olhou com um sorriso e disse: “Páscoa é o dia em que a gente come chocolate...” Essa era a feliz Páscoa que ele me pedia: chocolate.

Não foi a resposta de um ignorante; foi a resposta simples, imediata e universal que as nossas crianças e os seus pais dariam. Páscoa não é um dia de ouvir histórias. É um dia de comer chocolate (ou bacalhau... Por que bacalhau?). As histórias não são mais contadas porque as esquecemos. Somos um povo que perdeu a memória. E porque perdemos a memória, perdemos também a experiência de transcendência.

Você entenderá o que é transcendência olhando para um pássaro em voo. Fernando Pessoa olhou, sentiu e escreveu:

“Ah, quanta vez,
Na hora suave em que me esqueço,
Vejo passar um voo de ave
E me entristeço!
Porque é ligeiro, leve, certo
No ar do amavio?
Porque vai sob a céu aberto
Sem um desvio?
Porque ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade um horror de me ter
Que cobre como uma cheia meu coração,
E entorna sobre minh’alma alheia
Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder ter não sei que do voo suave
Dentro do meu ser.”

Vou repetir uma história que já contei. Alguns acham que um escritor não deveria repetir coisas que já escreveu. Mas tenho a alma de músico e a minha alma deseja sempre a repetição das melodias que já ouvi. Os jornais e suas notícias não suportam a repetição. Mas a beleza pede para ser repetida. A história é esta:

“Era uma vez um bando de patos selvagens que voavam nas alturas. Lá em cima era o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos. Tudo tão bonito! Mas era uma beleza que doía. O cansaço do bater das asas, o não ter casa fixa, o estar sempre voando e as espingardas dos caçadores... Foi então que um dos patos selvagens, olhando lá das alturas para a terra aqui em baixo viu um bando de patos domésticos. Eram muitos. Estavam tranquilamente deitados à sombra de uma árvore. Não precisavam voar. Não havia caçadores. Não precisavam buscar o que comer: o seu dono lhes dava milho diariamente. E o pato selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos seus companheiros, baixou seu voo e passou a viver a vida mansa que pedira a Deus. E assim viveu por muitos anos. Até que... Até que, num ano como os outros chegou de novo o tempo da migração dos patos. Eles passavam nas alturas, no fundo do azul do céu, grasnando, um grupo após o outro. Aquelas visões dos patos em voo, as memórias de alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado, o lugar chamado saudade. Uma nostalgia pela vida selvagem, pelas belezas que só se vêem nas alturas, pelo fascínio do perigo... Até que não foi mais possível aguentar a saudade. Resolveu voltar a ser o pato selvagem que fora. Abriu suas asas, bateu-as para voar, como outrora... mas não voou. Caiu. Esborrachou-se no chão. Estava gordo demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, gordo de barriga cheia, protegido pelas cercas e triste por não poder voar... Um dia fora pato selvagem. Agora era pato doméstico.”

Talvez essa pudesse ser uma história a ser contada na manhã de hoje, na hora do café. Mas sei que será difícil. Há tantos ovos de Páscoa a serem trocados, há tantos ovos de Páscoa a serem descobertos pelas crianças! O fascínio do chocolate é maior que o fascínio da história. E assim a alma fica com fome...

A Páscoa é o capítulo final da história de um homem que jamais se deixou intimidar, nunca se deixou domesticar e morreu selvagem. Por fidelidade à sua verdade fez-se uma contradição em cada encruzilhada e um escândalo em cada esquina! Por isso o mataram. Os gordos patos domésticos o mataram. Não puderam suportar a sua leveza e a sua liberdade.

Há muito os estudiosos da alma do nosso mundo notaram que ela estava passando por um processo a que deram o nome de “desencantamento do mundo.” Para explicar o que isso significa vou me valer de uma outra história a que volto sempre... O Pequeno Príncipe se encontrou com a raposa. A raposa lhe pediu: “Me cative, vá...” “O que é cativar?”, perguntou o principezinho. “É assim: eu me assento lá longe e você se assenta aqui. Aí nós olhamos um para o outro. No dia seguinte nos assentamos mais perto, depois mais perto, até estarmos juntinhos...” O Pequeno Príncipe cativou a raposa. Mas chegou o dia da partida e a raposa disse: “Vou chorar...” O Pequeno Príncipe retrucou: “A culpa é sua. Foi você que quis que eu a cativasse. Agora você vai chorar. O que é que você ganhou com isso?” “Ganhei os campos de trigo... Você sabe, sou uma raposa, como galinhas, os campos de trigo nada significam para mim. Mas agora, porque você me cativou, ao olhar para os campos dourados de trigo pensarei nos seus cabelos louros e ficarei feliz...”

Os campos de trigo deixaram de ser simples campos de trigo. Tornaram-se o lugar de uma ausência. É isso que é encantamento. E porque os campos de trigo ficaram encantados a raposa ganhou asas na imaginação que a faziam voar para o Pequeno Príncipe, ausente. O trigo deixou de ser trigo. Ficou transparente. Transformou-se em metáfora poética.

Desencantar é fazer com que o trigo seja apenas trigo, coisa para se fazer pão para o corpo! Desencantar é tirar a poesia do mundo...

As histórias que se contavam, e eram tantas, incluindo as histórias da Páscoa e do Natal, cobriam o mundo inteiro com as nostalgias dos homens e das mulheres. A raposa via o Pequeno Príncipe ao ver os campos de trigo. Que coisas as nossas crianças vêem ao comer um ovo de chocolate? Mundo bobo. Do tamanho de um ovo de chocolate.

Rubem Alves



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