2016-01-09
AVENTINO - PORTO
A MORTE SAIU À RUA NUM DIA ASSIM (Zeca Afonso, o querido Zeca Afonso)
CAPÍTULO PRIMEIRO
Vem-nos a notícia da morte. GERMANO NETO. Seminário, Palmeira e Avé-Marias.Ninguém se lembra do ANTES. O que foste antes de morrer, o que foste? Com que angústia esconjuraste a perda, com que dor?! Os braços da tua mãe, os teus irmãos e um lugar, aquele lugar de uma aldeia rural que te abraçou aos primeiros gritos do nascer. Com que dor se foi fazendo a vida se não à espera deste dia de morte!
Conheci GERMANO NETO há vinte e cinco, trinta anos. Advogados que éramos, combatentes pela justiça e pela verdade, encontrámo-nos muitas vezes em tribunais, nesses lugares fingidos de justiça; nós lutávamos pela dignidade do HOMEM; os tribunais portugueses nunca lutaram por nada.
Nem eu nem ele sabíamos dessa palmeira, do seminário, de uns padres e de um passado comum. Nem ele soube alguma vez que eu fui aquele puto enfezado e escanzelado, um dia encarcerado num dos mais belos lugares do silêncio, nem eu sabia que ali estava à minha frente um outro Redentorista, sem redenção. Mas, na verdade, os valores da nossa comum matriz ali estavam todos: a lealdade, a cultura, a dignidade e um qualquer sentir que voava para além do confronto dos homens. E eu honrava-o, na mesma dimensão, nesta grandeza de termos bebido num qualquer rio desaguado por esses lados de Cristo-Rei. Elevação, pureza, verdade e lealdade pautaram-me sempre no confronto da minha vida profissional.Com GERMANO NETO, ambos lutávamos pelo mesmo valor da humanidade: não pela justiça, valor dos homens, mas pelo justo.
O percurso de GERMANO NETO foi de molde a que há muitos anos jamais o tivesse encontrado na barra dos tribunais. A áurea de GERMANO NETO deu-me a saber, num dos recentes encontros da AAAR que, esse homem, advogado por Vizela/Guimarães, um tal GERMANO NETO, também tinha andado por este Seminário que, ainda que ténuamente, ainda nos une. AH!, exclamei. Sim, Tem sentido, sim. O sentir da grandeza. A morte dele não extingue NADA. Apenas o transforma em perenidade.
CAPÍTULO SEGUNDO
Encontrei por estes caminhos da vida, uns outros que tiveram o nosso comum passado. Os mais novos recordam-se dos mais velhos; os mais velhos fingem recordar-se dos mais novos:
Ah!, sim, sim, lembro-me de ti; jogavas bem à bola, cantavas bem ,oh! desenhavas! e aquele dia em que o padre te apanhou a espreitar as criadas?!
(Memórias construidas, verdades maquilhadas de felicidade. triste a nossa sina de não termos sina!)
Capítulo Terceiro
Um dia, no meu gabinete de advogado, a minha secretária, fala-me: está ao telefone um senhor que diz que andou consigo no Seminário!. Oh! passe, por favor, passe! És tu Aventino, do lado de lá do telefone?! Sim, sou. Eu sou o Castro, andei no Seminário contigo, lembras-te?!. Sim, sim, lembro-me bem (e eu sem qualquer imagem dele, tantos anos passados, tantas terapias que fiz para esquecer esses tempos de perda, tantas memórias de dias felizes e dos amores da minha mãe, do meu pai e dos meus irmãos, tantos dias que tinham sido ...e tudo era como se estivesse a nascer naquele instante). Sim, sim, Castro, claro, tu eras...Eu era do terceiro ano e tu do sexto ano... diz o Castro. oh! memória, pára, não queiras as minhas lágrimas!
Capítulo Quarto
Nestes anos que já lá vão, encontrei tantos outros AAAR'S nos meios judiciais. Advogados, procuradores, juízes. Quando, eu ou eles nos reconhecíamos com o nosso passado comum de meninos de sacristia, oh! cairam as barreiras, as formalidades,as honrarias do senhor doutor para cá, o senhor doutor para lá, e imperou sempre a grandeza dos grandes homens que somos os saídos de Cristo Rei.
Mas. como no melhor dos rebanhos e no melhor pano, lá vem sempre alguém que merece o nosso desprezo: um menino, fingido de juiz de direito, mais novo no Seminário, trabalhou muito comigo. Eu, como advogado; ele sentado no palanque do tribunal no lugar para o qual a sua dignidade nunca lhe deu passaporte. Ele conhecía-me bem. Ele sabia que tínhamos sido redentoristas em Cristo-rei. Eu, nem memória nem sinais dele na Quinta da Barrosa (aliás, quero confessar que adquiri, há muitos anos, um chip que instalei no cérebro para eliminar a voz e a imagem dos medíocres e, esse chip, àparte a mudança da pilha, é um instrumento de extraordinária utilidade e que recomendo. Compra-se nos berços, na família, no pensamento, à beira dos caminhos onde se forma o caráter).
Esse menino que também foi parar à BARROSA, jamais revelou que me conhecia, que tinha sido um menino de coro como eu, que tinha bebido essa dádiva dos Redentoristas. Socorreu-se do meu prestígio e da minha qualidade de advogado para o patrocínio de um seu familiar direto, foi juiz em muitos processos judiciais em que eu fui advogado, cruzou-se comigo em muito corredores dessas instituições mas jamais revelou que eu e ele tínhamos cruzado as mesmas fraldas de Cristo Rei. Vim a sabê-lo há muito pouco tempo, em conversa informal sobre esse tal menino, conhecido por uma alcunha que, na verdade, lhe faz juz e encaixa no seu caráter.
E eu, tristemente triste, aqui me confesso:
a morte saiu à rua num dia assim.