2016-04-18
A. Martins Ribeiro - Terras de Valdevez

Toda a gente sonha, sonhos deleitáveis ou pesadelos, só que, depois de acordar, ninguém os guarda e ninguém se lembra deles. Entendo que será bom relembrar um dia todos os sonhos que sonhamos. Pelo contrário, tenho a bizarra fantasia de guardar muitos dos meus sonhos dentro de um velho arcaz que venero como se fosse um sacro relicário para mais tarde, quando necessitar, acudir com o seu simbolismo a penosas aflições. Tornei-me, dessa forma, num guardador de sonhos.
Uma vez sonhei que era ainda criança irrequieta, que brincava com outros meninos pelos bisonhos carreiros do meu lugarejo, com brinquedos feitos por nós a fio de navalha, jogando ao pião, rodando o arco, deslizando por encostas de montado num carrinho de sabão guiado por um cordel. Depois, dali me levaram para uma casa senhorial na Barrosa sombreada por frondosa palmeira de cujo tronco pendiam grandes cachos de tâmaras. Este sonho resolvi guardá-lo na minha arca porque marcava o início duma longa caminhada.
Doutra vez, veio-me um sonho no qual fazia um poema tão sublime e encantador que vieram os anjos do céu para o recitar em todos os auditórios do Planeta. De seguida, escrevia um livro tão profundo e transcendente que me tornei admirado e famoso, recebido nos areópagos de todas as nações onde era acarinhado e aclamado com prolongadas e estrondosas salvas de palmas. Também este meti num gavetão da arca porque exaltava a minha personalidade.
Numa ocasião tive um sonho em que granjeava uma incomensurável fortuna que fez de mim um homem rico e poderoso. Com ela tornei-me num bom samaritano socorrendo todos os infelizes do universo, matando-lhes a fome, sarando-lhes chagas, enxugando-lhes lágrimas, dando-lhes um laivo de esperança. E quanto mais gastava nessas andanças mais incontável ficava essa fortuna. Claro que este sonho também ficou guardado porque era o atributo da misericórdia.
Noutra altura, dei-me a sonhar que era um obstinado viandante percorrendo todas as veredas da Terra, navegando mares desconhecidos e remotos, visitando as mais exóticas paragens, embrenhado em selvas aterradoras, jornadeando através de desertos ressequidos por sóis ardentes, calcorreando regiões imensas e geladas. Também este meti na arca para relembrar o espírito aventureiro.
Veio outro sonho em que tentava subir ao Céu para falar com Deus mas dei comigo no cimo duma sagrada montanha donde abarcava todos os confins do Mundo. Lá me foi dado contemplar o misterioso Aleph de Borges e com ele todo o Cosmos a fundir-se na Eternidade. Este sonho foi guardado junto dos outros porque concedia á minha alma uma esotérica e profunda transcendência.
Até que certa noite, ó almas penadas, senti-me envolvido num sonho em tinha nos braços a suspirada mulher que eu amei um dia e lhe saboreava o amor num tresvariado deleite. Fora a menina dos meus olhos, um sonho dentro de outro sonho, o meu desejo, a minha perdição. Mas foi um sonho breve! Mal despertei e abri os olhos logo percebi que este era um sonho errado e falso, um sonho de mentira, um sonho impossível que nunca deveria ter sonhado, pois nos dias reais essa mulher que tinha amado era uma mulher ruim, uma mulher agreste e dura, uma mulher agressiva, uma mulher que só infundia desconsolo e miséria. Entendi que não merecia um sonho desses e era forçoso esquecê-lo. Um sonho desses, não; era um sonho funesto que só trazia mágoa e desencanto, desgosto e fracasso, raiva e frustração. Um sonho desses, nunca; tinha de rejeitá-lo e deitá-lo fora para longe das minhas recordações. Um sonho desses, não: tinha de esconjurá-lo por só trazer maldição. Um sonho assim nunca o poderia guardar e antes o lancei-o na escuridão das trevas. Por isso, um sonho destes não, não o guardei na arca-relicário dos outros sonhos meus.
Fátima, Fevereiro 2016