VIAGEM
― Meu amor, vamos então amanhã vamos então á cidade? Ela concordou e, no dia seguinte de manhã, um sábado carrancudo a ameaçar chuva, fui acabar os meus últimos trabalhos da semana e, logo mais, proceder aos arranjos pessoais para ir ao encontro da minha amada Elisa e seguir com ela até á cidade em festa do São João, que era no tempo dos chamados santos populares. Barbeado e já pronto de todo, quando precisamente me dirigia á estação dos autocarros, começaram a cair os primeiros chuviscos que foram engrossando com mais intensidade dali até ao local e, por fim, se desencadearam numa forte e contínua chuvada. No entanto, raciocinei de mim para mim: “... isto deve parar daqui a pouco porque é chuva de verão.” E, na verdade, o verão começava mesmo nesse dia 23 de Junho. Cheguei apressado á ca- mioneta e avistei logo a minha companheira dentro dela. Depois de a cumprimentar sentei-me no lugar pegado ao seu no mesmo banco, pondo-se o carro em marcha logo de imediato. Pelo caminho fomos conversando coisas banais e sem interesse algum, sobre diversos assuntos, somente para matar o tempo e não estarmos calados ou mostrando cara de enjoo.
No começo da viagem a estrada subia coleando pela montanha em curvas e contracurvas. Ao longo da encosta e em socalcos alinhados descansavam campinas cheias de erva muito verde onde pastavam algumas rezes e, bem no fundo, no leito de um apertado córrego cavado no desfiladeiro corriam as buliçosas águas do Vade até ao Lima do esquecimento. Toda essa paisagem que se ia desenrolando diante de nós, semelhante á maqueta de um presépio gigantesco, dava a maravilhosa sensação de uma viagem aérea. Quem sobe tem forçosamente que descer e nós, chegados ao alto da Portela, começamos a descida para o Pico de Regalados. A visão continuou a mesma só que lá ao longe o horizonte estava tapado pelas corcovas monstruosas e escuras das montanhas do Gerês, ainda por cima diluídas pela atmosfera nevoenta e sombria. Dentro dum pouco mais de tempo dávamos entrada na cidade. A chuva continuava a cair, monótona, aborrecida, persistente, dizendo então para a minha amada companheira:
— afinal, parece que me enganei quando afirmei que este aguaceiro seria de curta duração.
Depois, meio arreliado com o incidente, ainda me lamentei:
— pronto, tudo estragado; o passeio e a festa!
Nessa noite realizava-se também uma verbena ao ar livre e, como se depreende, tudo ficou sem efeito. Sobre esta lembrei-me então de inquirir a minha amada:
— vamos logo á verbena, meu amor? Será a noite mais bela da minha vida. Dançar contigo lânguidos tangos, trepidantes boleros, meneantes valsas, poderá existir maior ventura para mim?
Com leve tom de censura, ela retorquiu:
— porque não o disseste há mais tempo? Compreendi então que a culpa tinha sido mi- nha, por isso nunca perdoarei a mim próprio. Pouca gente passeava pelas ruas da cidade que toda se tinha metido nos cafés e nas cervejarias e nós fizemos o mesmo. Entramos numa pastelaria e lá nos deixamos ficar até quase á hora do regresso. Pelas vitrinas compridas e largas podíamos observar, ora ranchos que passavam, indi- ferentes á chuva, ora bandas de música, ora diversas pessoas em correrias, toda uma movimentação que, apesar de tudo, se fazia sentir. Sentados comodamente num sofá da confeitaria, continuamos com a nossa conversa. Sobre quê? Sobre nada, sobre temas da viagem, sobre o tempo, sobre paisagens, sobre terras onde nascemos e outras futilidades. Não achais que tudo isto é ridículo? Também assim julguei, mas quando não nos atrevemos a abordar assuntos de transcendência como os que tocam as afeiçoes ou a importância da vida, sentimos medo, falta de coragem e discorremos, certamente, sobre temas desconexos e sem sentido chegando mesmo a falar da vida alheia. Que interessa, sim, tudo aquilo que nos rodeia se nos sentimos cegos por um amor imenso, delicioso, absorvente, fora do qual tudo nos abstrai e enfada? O que nos satisfaz é somente a fruição da sua delícia.
Continuava a chover, cada vez com mais insistência e, duma forma ou doutra, tivemos que abandonar o café, pois estava quase na hora do regresso. Dava pena ver aquelas frágeis ornamentações de papel e tinta de água, esborratadas e desvanecidas pela chuva. Toda aquela cidade engalanada me fez lembrar então as pessoas que se vestem com falsos adornos, quer de beleza corporal quer de espírito, que ao menor salpico de verdade se estragam e desbotam, ficando em miserável estado, desfeitas e rotas, mostrando toda a sua deplorável fealdade. Tudo engano, tudo pintura, tudo escalavrada porcaria.
— Meu amor, temos que sair.
— É verdade, eu também preciso de fazer ainda umas compras, sugeriu ela, e como isto não está em jeitos de parar, temos de nos aventurar.
Saímos então para a rua principal, sempre encostados aos prédios para nos abrigarmos da intempérie. Entramos em várias lojas comprando o que desejávamos e voltamos á estação dos carros para o regresso ás nossas casas. Naquela altura gerou-se tal atrapalhação, tal balbúrdia e confusão, tal movimento que tudo se transtornou. Sendo a minha adorada Elisa muito sensível á desordem, mostrou-se bastante agitada e um tanto desorientada. Em várias voltas para conseguir os bilhetes do transporte fiquei com a roupa do corpo toda encharcada; mas julgais que eu me importei? É claro que não, pois o calor do amor mais me aquecia e secava.
Por fim, já sentados, pudemos relaxar de todo aquele atropelo. O regresso foi divino, estonteante, inesquecível. Junto dela, sentindo-a perto de mim numa estreita proximidade, numa sincera comunhão, parecia alheio a todas as tristezas da vida. Que fortuna haverá, que prazer poderá existir capaz de nos trazer tanta felicidade? Confesso que ansiei por outro dia mais inesquecível ainda ao viver com ela para sempre. Isto não devia dizê-lo porque, parece-me bem, só as mulheres o desejam verdadeiramente. E os homens porque não hão-de ambicioná-lo também? Ah! Mas uma íntima voz, uma voz que não ouvia mas sentia, me alertava:
— não te iludas, rapaz, o que estás a arquitectar no teu pensamento não passa duma refinada mentira, olha que as mulheres são falsas e traidoras.
E eu bem o sabia; melhor, bem o adivinhava, porém, hemos de convir, não é sublime a ilusão, não é venenosa a mentira? Por isso me deixei embriagar pelo vinho dessa perdição e me abandonei á perfídia da fatalidade.
Em dado momento do percurso o carro onde seguíamos fez uma paragem para dar entrada a um grupo de soldados que regressavam da sua vida militar. Vinham alegres, faziam grande rebuliço, cantavam e tocavam harmónica e concertina. Recordei também a minha tropa, mas nesse momento passei a detestá-la por a achar uma estupidez. Tanto tocaram, tanto cantaram que acabou por se me formar uma dor de cabeça verdadeiramente lancinante. Desejava ardentemente que os malfadados militares chegassem ao termo da sua viagem que só veio a acontecer um pouco antes do meu.
Mal chegados, fui acompanhar a minha amada até casa e, ao despedir-me, ainda lhe bradei com fingido bom humor:
— meu amor, vamos á verbena?
Sorriu com indiferença e eu nunca me perdoarei pelo descuido de ter perdido tão propícia ocasião de poder dançar com ela. Tão má disposição exprimia no meu semblante que o motorista do autocarro, reparando nela quando se cruzou comigo na rua, me foi dizendo:
— amigo, vai incomodado?
— Foram aqueles magalas, respondi.
Meteu a mão no bolso, tirou um “português” e estendeu-mo com o costumeiro e marcado gesto:
— Olhe, fume que o dispõe bem.
Não notei qualquer acentuada melhoria, contudo, ainda lhe pude agradecer o amável cuidado:
— Obrigado pelo seu cigarro!
Entrado em casa tomei um chá quentinho e meti-me na cama. Deixei-me adormecer e sonhei. Primeiro tive sonhos lindos, depois agitados e revoltos. Quando despertei tocavam os sinos para a missa num domingo que sorria de vez em quando com algumas réstias de sol, mas pouco me animei porque a dor de cabeça tinha deixado profundos vestígios de entontecimento e cansaço.
☁
Arcos, 4 de Julho de 1957
1
1)- Neste episódio já o namoro com Elisa tinha acabado, ficando apenas desengano, frustração e saudade.
BARROSAL XXV - Até Deus Eu Trocava
por Uma Gota de Suor
No tempo em que Deus comandava os meus actos, descobri um dia que Ele, além de vingativo, era divinamente ciumento. Não me deixava olhar para o lado. Espreitava pelas ranhuras da porta, na hora do banho. Porém, nada me incomodava tanto como o assédio que me fazia nas férias. Chegava a entrar no meu quarto de verão, para ver o que ali acontecia. Isso era um problema para a missa diária. A D. Gracinda, que velava zelosa pela minha infeliz alma, avisou-me sem mais aquelas: Deus não dorme, sabe muito bem o que andas a fazer. Eu também sabia. E começou aí a minha culpa e o dito Salmo Cinquenta. Foram cinco dias de pecados enormes. Procurei longe um sacerdote, já de idade avançada, que nada de mim soubesse e assim me tornasse mais alvo do que a neve. Quando levíssimo regressava a casa, uma voz sinistra acusou-me de mentiroso: tanto esforço para tão pouco! Só assumiste meias verdades. Ainda não percebeste que meia verdade é mentira inteira? Fiquei de rastos. Perdi o sono. Minha mãe, que tudo faria para ter um filho padre, também notou: então, António, andas triste? Não, não andava. Era apenas cansaço.
Tive de fugir à pergunta. Em rigor, era um atrito permanente com o vizinho do andar de cima, a quem à época eu reconhecia como Deus. Uma suspeita de que talvez se tratasse de um vigarista. Ou antes, de uma série de intrusos que actuavam em seu nome e que devassavam com frequência o meu território. Um rectângulo irrelevante, já se sabe, e de certo modo desprezível. Mas era exclusivamente meu. E precisava dele para ser António. Era um tempo muito confuso. Em setembro, num retiro a sério, com pregadores especialistas em teologia do pecado, e com rasgos oratórios que bradavam ao céu, eu esquecia as suspeitas e acreditava que Deus era boa pessoa. E eu rezava. Eu ajoelhava. E até sonhava. Eu aqui vou longe. Tenho futuro assegurado. Umas pequenas desavenças espirituais. Uma inconfessável tristeza em dias de chuva. Algumas ausências incómodas. Pequenas fricções de culpa. Enfim, nada que eu não pudesse vencer. Doce ilusão, que até me fará rir algum tempo depois.
Foi num verão qualquer. Nem eu sei datá-lo. Mas os factos não são meias verdades. É o caso de me terem convidado para integrar uma brigada redentora. Missão: levar um pouco de cristianismo aos pagãos alentejanos. A iniciativa não foi minha. Eu, que já pertencia ao grupo dos chamados, passei a prestar provas no terreno. Uma comunidade rústica de contratados apanhavam de dia tomate e ao fim da tarde recebiam apoio cultural, religioso e recreativo. Quinze dias depois era a festa final. A brigada era ampla e cultivava com aplicação uma grande variedade de interesses. Alguns iniciaram com êxito a vida amorosa. Outros levaram à cena uma peça de teatro. Outros fizeram o que lhes apeteceu. Eu fiquei fora. O pároco, principal responsável por esta onda de evangelização, reservou para mim a mais nobre das tarefas: dar de beber a quem tem sede. E nomeou para minha ajudante a sobrinha, um ser etéreo, de rosto branco e diáfano, cabelos negros e longos, e um corpo mais flexível que ramo de salgueiro. E uma voz que se colava a ela bem melhor do que a túnica branca e folgada que vestia. Era um verão de fogo. Tudo ardia na paisagem. Os sobreiros gritavam por água. A terra vermelha abria-se em fendas ou feridas, como se morresse. Da torre da igreja, uma coluna de som espalhava melancolia até doer. O Padre João explicou: vocês os dois encarregam-se das bebidas. Não ia ser fácil, mas confiava em nós.
A Idalina era o ser mais belo que Deus fizera até esse dia. Já nos tínhamos visto e até falado. Mas ela sorria muito e ao sorrir eu tremia. Se ela me tocasse, mesmo sem querer, pulverizava-me. Quando o tio me escolheu para o bar, eu não podia alegar qualquer recusaa. Intimamente, dei glória a Deus por tanta perfeição. O máximo aperto foi por volta das três da tarde. Aí o calor alentejano atravessou os nossos corpos. Ela inclinava-se com agilidade mas com tanta inocência que me proibia o desejo. Eu fazia por não olhar, para não tremer, para não cair em cima fosse do que fosse. E não ter que pedir perdão a Deus, que tudo espiava. Mas houve um segundo de fraqueza e ao mesmo tempo de lucidez. Os meus olhos perseguiram uma gota de suor, que descia inadvertidamente do rosto dela. Acompanhei a lentidão do percurso, até a translúcida gota se perder entre duas suaves elevações. Um fio de água cristalina, pensei, a deslizar entre dunas de areia finíssima, onde nem o sol se atrevera a deixar as suas impressões digitais. Por fim, a gota, ou o fio, ou outra coisa qualquer sumiu na rebentação do mar. Ambos notámos que estávamos nus e que nenhum deus nos podia proibir as maçãs.
Quando um pôr-de-sol alentejano nos corou de ouro velho, entre medos e desejo, fomos apresentar contas à capela da ermida. Ela entrou e ajoelhou-se, como quem reza. Eu fiz o mesmo, ao lado esquerdo e tão perto que o seu perfume me atravessou a vida toda que eu tivera até então. Fechei os olhos e concentrei-me num pedido: Senhor, dei-Te glória por tanta perfeição... Se de facto me chamaste, peço-te duas coisas: primeiro, não me escolhas. Como ficou provado, eu nem vocação tenho. E às vezes duvido até de Ti. Segundo, em nome da fé que hoje tenho em abundância, concede-me que eu ame a Idalina para sempre e que ela me ame para sempre a mim. É mais sensato do que ser padre.
No dia seguinte acabava a missão. Eu ofereci-me para ir à residência paroquial a apresentar cumprimentos de despedida e mostrar o nosso agradecimento. Bato à porta. A voz, a Idalina inteira na voz, ainda pergunta quem é. Entro. O tio não está. Trememos os dois no abraço que demos e cobrimos de lágrimas a idade que tínhamos, ela pelos dezoito e eu aí pelos vinte e dois. E ambos sabíamos claramente que as maçãs eram proibidas. E que o nosso amor morria no próprio acto que o viu nascer.
Boa noite, amigos da AAAR, familiares incluidos.
Depois de ter visto a bela obra do Martins Ribeiro e de haver lido as vossas mensagens, venho hoje para agradecer as vossas amáveis palavras.
Não fizemos nada de especial além do que era nosso dever: receber-vos como vós nos recebeis, quando vamos à casa dos amigos que sois, com a única finalidade que a todos nos enriquece, fortalecer os laços de amizade que a todos nos ligam. As favas são tão somente um pretexto para esse fortalecimento de amizade.
Somos, pois, nós quem vos deve estar gratos pela vossa vinda até nós. Deixastes os vossos afazeres e até os vossos entes queridos. Percorrestes bastantes quilómetros, alguns mesmo muitos, proporcionando-nos momentos fraternos muito agradáveis. Bem-hajais, pois, pela vossa disponibilidade e gentileza. Apenas vos posso dizer que podeis vir sempre que desejardes. A porta estará sempre aberta para vos receber. Só vos peço que, num futuro encontro, venhais mais leves para que pessoalmente eu não tenha de comer as sobras por tanto tempo. É que não gosto, como bem sabeis, de desperdiçar... (sorriso).
Uma palavrinha também de agradecimento a quantos manifestaram o desejo de ter participado no encontro do passado dia 18 mas que, por motivo de saúde ou outro, não puderam comparecer, assim como aos que enviaram sua mensagem com votos de bom êxito.
Bem-hajais todos.
O nosso abraço fraterno
Belquice e Assis
PS - Ainda um bem-haja às senhoras que se dignaram estar presentes e ao nosso maravilhoso mestre cozinheiro Nevieira.
Pareceu que sacudi com uma curiosa tacada a que o Gaudêncio chamou de "boutade" ou tirada espirituosa, o texto do nosso colega Castro ao aperceber-se na igreja do Foco que afinal o Velho Testamento ainda merece uso litúrgico desacompanhado do manual de instruções.
Sacudi estrategicamente o conteúdo para poder abordar a favada, a tal que levou os deuses até aos altos de Orbacém para "in loco" sentirem os aromas terrenos e observarem como os humanos se convertem à roda de uma panela.
Já tão crescido e senhor de celestiais escolhas trazidas do Pinhão e graciosamente partilhadas, o Castro desassossegou com as palavras loucas do Velho Testamento que, se hoje nos assombram, nos tempos do Elias, porventura também belicoso como a mente daquela era e também do deus castigador e desumanamente vingativo, não deveriam ser texto para os púlpitos atuais da madre Igreja.
Não fiquei indiferente, de forma alguma mas não revi o meu Deus naquele filme.
Acabo de ver-vos na lauta, variada e suculenta favada. Lamento não ter comparecido mas evitei um excesso que, na prática, me está proíbido.
Que no próximo ano possa repetir-se e eu invejar-vos e desejar-vos uma óptima digestão.
António Manuel Rodrigues
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