Andam por aqui os meus caros companheiros e amigos a alardear com as célebres pinhas mansas, trazidas á baila pelo Arsénio e eu, claro, também as tive e por isso não quero ficar atrás no meu depoimento. Assim sendo e em jeito de balada, aqui vos vou falar agora do que foram os meus Natais.
Já por mim foram passando muitos Natais, em épocas mais felizes uns, outros nas mais atribuladas, mas todos eles com o seu espírito de amor e paz, rudes, genuínos e humildes. Poderia estar para aqui a recordar muitos deles mas hoje só vou lembrar o Natal de quando eu era pequenino, da minha infância, da minha mocidade, de quando ia descalço para a escola, em dias de geada e frio, porque achávamos giro tirar os tamancos com solas de pau de amieiro cardadas com tacholas. Foram Natais emblemáticos pela magia que irradiavam, Natais onde faltava tudo num tempo de guerra mundial e de extrema penúria em todos os povos. Ninguém tinha nada e todos tinham tudo porque se repartia pelos vizinhos, com alegria e bondade, o pouco que havia.
No canto da sala da casa de meus pais era armado um singelo presépio, uma cabana tosca feita de gravatos e palha metida no meio de pedras cobertas de musgo e onde estava deitado um Menino Jesus de barro, sorridente e de braços abertos, rodeado por S.José e pela Virgem Nossa Senhora, sua mãe, também do tradicional jumento e da mansa vaquinha. Nessa noite santa, vinham outros irmãos que estavam longe, vinham tios e primos, vinham outras crianças e amigos e, á hora da ceia nunca faltou o peculiar bacalhau com batatas e couves galegas, o polvo colorido e fumegante, tudo regado com generoso vinho carrascão do meu adorado Minho. No fim eram servidos os doces: rabanadas tostadas polvilhadas com canela e açúcar amarelo, as borrachonas ásperas e de acre sabor, os bolinhos de jerimu e as filhoses de massa doce de farinha, fritas em azeite puro do lavrador. No fim de tudo e até altas horas da noite era-nos permitido jogar ao rapa com pinhões descascados de pinhas mansas abertas numa fogueira que nos deixava as mãos e as caras ensarranhadas.
Nesse tempo não havia brinquedos nem prendas: os que existiam eram feitos por nós á navalha com pedaços de tabuínhas de madeira, diversos paus e arames. E que lindos que eles ficavam! Eram carrinhos singelos, barcos e aviões, bicicletas e carros de bois, até um combóio com muitas carruagens. Na manhã de Natal fazíamos uma bola de trapos com meias velhas e logo de seguida espantávamos o frio num jogo renhido entre toda a rapaziada.
A vida era difícil, com muitas carências, em certos casos com alguma fome. Havia o Salazar e o Carmona, mas tudo era pobre, possivelmente alguns remediados. Nessa altura começava a aparecer a luz eléctrica em certos lugares. Lembro-me de a minha aldeia ter sido uma das primeiras onde ela foi ligada e o meu pai comprou então um rádio muito pequeno, com uma potência mais fraca que a de um telemóvel de hoje e que nós colocávamos numa janela quando aos domingos dava os relatos de futebol e o púnhamos no máximo para que os golos do Benfica se pudessem ouvir no outro lado da Galiza que só tinha o rio Minho de permeio. Grande ilusão das nossas mentes infantis que julgavam ser o mundo um pequeno quintal pois, na verdade, esses gritos de triunfo mal se conseguiam ouvir na própria sala onde nos encontrávamos.
Porque se tornaram então tão inesquecíveis esses Natais da minha juventude? Porque irradiava deles uma essência de paz e fraternidade, uma força divina capaz de parar uma batalha tão mortífera e feroz como a de Estalinegrado, na frente russa, numa trégua tão ingente e avassaladora que invadia as mentes retorcidas pelo ódio. Fui desse tempo e embora lá não tenha estado sei do acontecimento porque dele reza a História. Mesmo nessa noite infernal da refrega a força do Natal fez deter a horrorosa chacina, chamando ao respeito e á piedade a razão humana, podendo então ouvir-se o som dum piano tocando a irreal melodia do "Stille Nacht" que irrompia solitária do fundo dos escombros e do morticínio
Mais tarde, enquanto fui crescendo, outros sóis e outras luas de Natal aconteceram. Vieram os Natais do seminário, diferentes mas belos, vieram os da tropa, os da minha fase de solteiro, os passados depois com meus filhos e netos, todos eles deixando sempre e de uma forma geral a sua intrínseca magia, os eflúvios da sua força infinita e divina, espalhando a caridade e a paz. E durante toda a minha existência, ingénuo de mim, nunca concebi nem imaginei sequer que algum dia pudesse acontecer um Natal como o deste fatídico ano de 2011. Um Natal abominável e atrabiliário, esvoaçado por avejões tenebrosos que zunem á nossa volta em cimérios pesadelos de trevas e fatalidade, onde sobressaem demónios, um Natal povoado de cínicos e rapaces ladrões que numa desvergonha sem nome escolheram precisamente esta santa Quadra para roubar, de forma ignominiosa e agressiva, os parcos recursos que milhões de pobres e miseráveis tinham angariado durante anos a fio com árduo trabalho e com o esforçado suor do seu rosto, extorquidos em nome dum suposto e maldito privilégio, só para enriquecer os seus covis,
Por isso aqui estou nesta santa hora a desejar sinceramente a todos vós um Natal, se não melhor, ao menos como aqueles que citei do meu passado, todos eles imbuídos de apreço e consideração. Felizmente que ainda me restam na memória esses Natais passados para os poder sentir e oferecer, pois Natais como o presente não os posso nem quero desejar a ninguém. Seria um desaforo e um insulto porque esse não é o meu Natal!
Ora, saiam então uns pinhões p'rá roda...
Pois é José Rodrigues. Como na tua, também na minha aldeia havia um único Pinheiro Manso, um enorme pinheiro que dava nome à região em que o mesmo se encontrava.
Digo que havia, pois deixou de haver há já alguns anos. Um maldito incêndio acabou com ele.
Todavia, o nome continua lá, mesmo sem ele. Já me lembrei de levar para o local alguns pinhões e, pela calada da noite à semelhança do inimigo evangélico, lançar àquela terra a boa semente, não a cizânia...
Lembro-me, de garoto, ter apanhado bastantes vezes os pinhões que caiam do Pinheiro Manso - com maiúscula, sim, tal era o porte da árvore - pinhões que ao toro do mesmo partia e com eles me regalava.
Não recordo todavia de jogar ao "Par ou Pernão" ou mesmo ao "Rapa-Tira-Deixa e Põe" com os ditos pinhões já que só no verão eles apareciam naquele bendito chão. Jogava-se com as amêndoas que muito abundavam em Cedovim. - Como não ter saudades desses jogos simples, aconchegados no calor da lareira? Nessa noite, até nós, os mais pequenos, tínhamos dereito a um dedal de jeropiga, bebida carinhosamente feita e distribuída pela mão do meu pai. Vejo-me ainda a lamber os lábios de tão gostosa que era. A melhor jeropiga do mundo, diria o Alex. Para mim era: a melhor do mundo e dos arredores. Mas não era essa a melhor prenda de Natal. No gostinho das laranjas que nos chegavam do Vesúvio encontrava eu o meu melhor presente. Era pelo Natal que elas apareciam por vez primeira em Cedovim. Vinham do Vesúvio. E o Vesúvio ficava cá a uma lonjura...Na nossa cabeça de miúdos, essa não se media em metros, nem em Kms. Media-se pelo tempo que uma pessoa levava a ir até ao Vesúvio e de lá regressar e chegar a Cedovim: um dia inteiro. Ia-se a pé, de burro, de macho ou égua, ou ainda de mula. De cavalo iam apenas dois ou três ricos lá da aldeia. Então de carro de bois, era quase um dia e meio: o tempo que o pai das minhas tias demorava sempre que carrejava as pipas de vinho fino para os barcos rabelos que do Vesúvio partiam em direcção ao Porto.
As laranjas foram vários anos o melhor presente de Natal que eu recebi. As rabanadas e as filhóseram realmente gostosas e bem docinhas, mas aquele gostinho das laranjas era muito especial... Houve, contudo, um Natal que me troxe uma outra prenda especial. Devia eu ter os meus 4/5 anos. O meu tio Manuel, um artista a fazer sapatos, apareceu-nos em casa com duas pequenas camionetas de madeira, pintadas com cores vivas, uma para mim e a outra para o meu irmão, peças que ele próprio laborara. Os nossos olhos arregalaram-se de contentes.
Tudo mais, mesmo as laranjas do Vesúvio, ficaram de lado nesse Natal. - Coisas de miúdo... cada um de nós fomos esse miúdo e hoje, voltámos a brincar com ele. Obrigado a todos aqueles que me ajudaram a arrancar de cima dos ombros algumas dezenas de anos. E, para todos, Feliz Natal!...
Quando falei no mercado negro dos pinhões reforçava a sua importância económica e lembrava a península de Setúbal como região privilegiada de desenvolvimento da espécie.
Mas foi o José Rodrigues a associar-se às memórias transmontanas do Arsénio, num regresso que eu já ansiava depois de um silêncio espesso.
É curioso como a similitude de hábitos anima as emoções que suportam tantas memórias.
Também o cerimonial do descasque da pinha, do processo de aquecimento ao lume que se revê no processo natural causado pelo sol nas horas de meio dia, todo o ritual da memória dos sabores pronunciados das sementes, tudo isso se incrustou nas telas da vida.
Muitos dos nossos colegas que assentam ainda nas bancadas estão a pensar descer os degraus, até por uma questão de desconforto no cóxis.
Estão a ajardinar as memórias e em breve não faltarão testemunhos da "serena infância", como dizia o José Rodrigues, a quem agradeço os votos de Boas Festas e retribuo com um grande abraço.
Não sei bem se estamos a mudar de tema pois a condição económica também proporciona grandes diferenças naquilo a que chamamos prenda.
Quando o Arsénio lembra as pinhas mansas lançadas ao lume de Natal para mais facilmente lhes retirar os pinhões gulosos, enquadro no tempo de carências e limitações num mundo que ainda não era consumista.
Provavelmente nos dias de hoje as mesmas pinhas teriam uma valorização razoável em bolsa pois os ditos pinhões comercializam-se hoje no mercado negro a cerca de 40 euros o quilograma, dando-lhe o toque de oiro a umas sementes graciosas que se encasularam na memória privilegiada do Arsénio.
Não tenho lembranças privilegiadas de prendas de Natal mas sim de quem mas deu, com o carinho enfeitiçado dos gestos maternais.
Também não lembro as prendas nos sapatinhos de criança pois os não tinha, mas recordo nostalgicamente os figos secos de ceira, as avelãs, talvez as nozes e os amendoins numa miscelânea embrulhada em cartucho da loja.
Eram subtilmente deixados debaixo da cama com colchão de palha de centeio, com travesseiros de folhelho de milho cardados pelo suor, onde dormíamos 4 e onde os pés cansados se travestiam de negrume da terra arregaçada pelas brincadeiras do buliçoso dia.
Isso eu lembro, isso eu nunca esqueço e ainda hoje olho os figos de ceira encastelados, como se o tempo se esquecesse de avançar.
Essa mitigação em mesas pobres, essa sombra dos tempos de invernos frios de criança com sonhos fartos e felizes eram o meu Natal, eram os natais da altura.
As pinhas do Arsénio, dos pinheiros mansos enramalhados que eu trepava, dessas também eu lembro bem. Mas nada me marcou tanto como a singeleza desses dias.
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