2020-02-16
alexandre gonçalves - palmela
VIAGEM AO VERDE V(M)INHO
Saúdo o sete de março e ao fazê-lo lavro a minha inscrição. Não só porque é março e afasta a cortina da nuvem e dos perniciosos ventos, mas sobretudo porque rasga uma estrada para norte. O norte é memória, é a primeira viagem da vida, é a verde fecundidade dos campos. O sol e a chuva, numa harmonia conjugal exemplar, resgatam as areias do sul, por onde marrocos já espalha o deserto e a secura das cordas vocais. É imperioso não perder o norte. Nem permitir que a boca arda em vão. Martins Ribeiro, não esqueças que um dia nos introduziste, de boa fé, nos vinosos prazeres dos arcos, onde o vinhão corria, como sangue de boi, pelas ruas abaixo. Nem só de lampreia, seja lá o que isso for, vive o coração do homem. Se falhar o vinhão, o Zé que se previna, este norte provoca uma secura irreparável.
Mas o norte, porque é memória, é por isso mesmo altamente afectivo. Ninguém troca o sedentário conforto por um efémero prazer, por legítimo que seja. Esta viagem ao verde vinho não é razoável, à luz de critérios utilitários. Suspendam qualquer tentação de justificar com argumentos ou cálculos esta nobérrima ideia. Os afectos não pagam imposto à razão. Eles brotam deste passado comum, desta linguagem que perdura, destes rostos tisnados pela fadiga do tempo. Tudo se foi perdendo. Sobra agora o regresso ao local onde pela primeira vez conjugámos o verbo amar, mesmo quando o fizemos clandestinamente. Precisamos de rever esse itinerário, de o comentar serenamente, e às vezes (quem sabe?) de o repudiar. No comprido lenho, entre palavras abundantes, entre risos bem sonoros, entre excessos que ninguém condenará, aí , no alvoroço da festa, nós sentimos mil cumplicidades. Provamos uma alegria que teima em fugir-nos. Os anos já incomodam muita gente. E a consciência, quase assustada, flutua ambiguamente em ondulações melancólicas. Nestes encontros, filhos de ideias locais, ficamos menos sós nos dias seguintes, multiplicamos as notícias e prometemo-nos a nós próprios que havemos de vir mais vezes.
(Em nota de pé de página, convém lembrar que este norte também flutua, conforme a origem geográfica do convite. Assim, o norte começa em Viena e acaba em Faro....Para que conste....)