2013-09-21
A. Martins Ribeiro - Terras de Valdevez
21 DE SETEMBRO
Faz hoje 57 anos, já eu me encontrava em Arcos de Valdevez a trabalhar, que recebi uma convocação para me apresentar no quartel de Tancos a fim de tomar parte numas manobras militares de rotina que todos os anos se realizavam no campo de Santa Margarida.
Lá compareci, como não podia deixar de ser, com outros companheiros do meu tempo de tropa. Logo então formamos grupos de seis, quantos cabiam numa de diversas e belas tendas de campanha, forradas interiormente com tecido de escumilha e equipadas com pequenas e articuladas camas individuais e respectivos armários para guardar as nossas coisas. Como pouco tínhamos que fazer íamos matando o tempo com conversas brejeiras ou com atitudes extravagantes e bizarras.
Tempos esses de saudade porque não voltam mais e também tempos sãos de camaradagem e de franca amizade. Cada um manifestava os seus dotes e habilidades pessoais: um desenhava muito bem e logo espalhou pelo interior da tenda diversas imagens de mulheres em poses deveras sugestivas e de belo efeito; outro contava anedotas e chistes de tal maneira que passávamos horas a fio rindo de forma destemperada; mais aquele narrava histórias e peripécias que nos deixavam admirados; ainda um outro tocava deliciosas melodias numa guitarra, que nos tornavam calmos e sonhadores; a mim, e como logo todos me perceberam o jeito para a poesia, coube-me fazer versos.
Namorava eu, nessa altura, com uma rapariga aqui dos Arcos, felizmente ainda viva, mas como nesse tempo os namoros eram muito diferentes dos de hoje, usavam-se muito as chamadas cartas de amor. Recebendo-as eu á hora da distribuição do correio logo os meus camaradas se aperceberam da frieza e pouca retribuição á paixão que eu declarava inflamada e eterna. Então um deles, o Gomes, rapaz baixinho, patusco e espirituoso, garantiu-me com fingida seriedade e marcada convicção que a minha adorada correspondente sentia por mim um verdadeiro afecto, só não o manifestando por timidez e prudência.
-Feitio e truques de mulher! Entendes? E eu digo-te: tens casamento certo, mas para que tal suceda terás de escrever um soneto e pregá-lo aqui na tela da barraca. Ora vamos lá!
Claro que foi mesmo e era assim:
Vinte e um, Setembro, onde cheguei, penoso,
A forçadas manobras militares;
Um dia morno, escuro e doloroso;
Que fizeste p'ra sempre me lembrares?
Ou que fiz eu? Que facto me acontece?
Sinto a dúvida insana e cruciante
D'um amor que procuro, como em prece,
Sem ser correspondido um só instante.
E eis, súbito, no meu anelo incerto
Alguém como profeta me assegura:
O amor dela, crê, p'ra ti é certo;
Mas um soneto escreve que te acorde
sempre, mesmo p'ra além da sepultura,
De cinquenta e seis o vinte e um do nove!
Era evidente que tudo isso fazia parte das nossas travessuras e servia para o escorrichar do tempo com boa disposição. Mas o convicto adivinho não esperou pela demora pois logo eu, com semblante de censura, lhe respondi, advertindo-o:
Veremos se se cumpre a profecia,
Ó caro amigo e sibilino Gomes:
Lembra também que chegará o dia
Em que hei-de chamar-te os mais feios nomes.
Se nada disso acontecer, garanto
Que de psicologia nada sabes
E não serás tão grande como um santo
P'ra eu acreditar que são milagres!
Vais assinar este papel que escrevo:
Se der certo, terás a recompensa;
O convite p'rás bodas eu te entrego.
Mas se um dia p'ra mim ler esta sina
E falsa tenha sido tua sentença,
Juro-te eu que hei-de usá-lo na sentina!
Não me recordo se o Gomes assinou os versos ou não. O que afirmo é que a profecia nunca se cumpriu.
De facto, era uma mocidade estouvada que vivia alegremente todos os pedaços de vida.
Faz também agora anos que eu passei por Santa Margarida e me foi permitido rever o campo militar como visitante civil. Encontrei algumas modificações, é verdade, mas o essencial era ainda o mesmo.
Arcos, 21 de Setembro de 2013