Um Postal de Natal para a Câmara da Cidade
A minha amiga Nani não vai ter Natal.
Vive sozinha desde que o marido lhe morreu há já uns quantos anos.
Vive sozinha… é como quem diz! Vivia muito bem acompanhada pelas suas plantas com quem conversava longamente a certas horas do dia na sua marquise solarenga… mas já não vive.
É que os homens da Câmara bateram-lhe à porta num dia destes e gritaram:
- Vamos deitar essa marquise abaixo!
- Mas porquê? Já a tenho há mais de 30 anos e nunca fez mal a ninguém!
- Não interessa. Foi construída sem licença! Tem que ir abaixo. São leis. A Câmara tem que pôr a cidade linda!
Marcaram um dia e lá apareceram com as ferramentas todas.
Roubaram-lhe a marquise num instante e as suas plantas ficaram sem casa. E a Nani, sem as suas amigas.
E a minha amiga entrou em depressão. Chora com saudade das suas plantas e diz que não vai ter Natal. Que nem à casa do filho quer ir comer o bacalhau. Que lhe deitaram abaixo a vida ao lhe roubarem a sua marquise. Que os seus dias já não fazem sentido. Que se não fosse por não sei o quê… até lhe apetecia acabar com tudo.
- Os homens da Câmara cumprem leis – dizemos-lhe nós, os amigos. Mesmo sem respeitarem a Lei do Usucapião, eles avançam com a espada da Lei nas mãos! Lei injusta e dura… mas Lei. Que a Lei foi feita só para os pobres! Que os ricos nunca precisaram de respeitar as leis. Que por isso mesmo é que são ricos. Que isto e que aquilo…
Mas ela é que não quer saber de nada. Que não sabe quem são eles, que nunca lhes viu a cara, que nunca votou nem nunca votará “em gente desta raça”, diz desconsolada.
Amigos, quem arranja uma nova marquise para a minha amiga?
Plantas… ela ainda conservou algumas na esperança, talvez, de que eles, os da Câmara, se arrependam e, quem sabe?, voltem a colocar lá a sua marquise.
P.S. Juro que esta história é verdadeira!
Durante o dia, idosa que é, a Nani vai até ao Centro de Dia para Idosos do nosso bairro “fazer mimos para eles”, como ela diz. Faz umas pataniscas de bacalhau como ninguém. Daquelas que se serviam nas tascas da ribeira de Gaia e se empurravam com um copo de vinho do Porto espetado a respingar encima dum balcão de madeira.
Foi ela quem me contou a desgraça que aqui vos deixo.
Acreditem.
Se puderem!
O nosso colega Delfim tem andado entusiasmado com este Natal ao convidar por mensagem electrónica muitos dos nossos colegas a contribuir com 10 euros a troco de um DVD gravado pelo Martins Ribeiro, para ofertar ao padre Henri le Boursicaud que vive num bairro de lata nos arrabaldes de Fortaleza.
O assunto não foge às pinhas mansas pois hoje fartou-se de "descascar" ao saber que apenas 9 dos colegas responderam positivamente ao seu convite, transferindo aquele valor ou mais para uma conta do Assis.
Já lhe respondi dizendo que é normal esta atitude acomodada perante o desafio para ser solidário com um homem que bem conhecemos e admiramos. !0 euros não será problema para nenhum dos colegas que recebeu a mensagem do Delfim e eu já tive o cuidado de dar o meu contributo, já recebi o DVD mas ainda não o vi porque esta última parte será cumprida num dos meus dias de ócio.
É como a pinha mansa com as gulosas sementes; se cada um oferecer um pinhão ao Padre Henri ele vai sorrir e perceber que os seus amigos de além mar se esforçaram e juntaram para lhe proporcionar um melhor Natal. Já sabemos como ele vai partilhar, mas aquele homem é assim!
Andam por aqui os meus caros companheiros e amigos a alardear com as célebres pinhas mansas, trazidas á baila pelo Arsénio e eu, claro, também as tive e por isso não quero ficar atrás no meu depoimento. Assim sendo e em jeito de balada, aqui vos vou falar agora do que foram os meus Natais.
Já por mim foram passando muitos Natais, em épocas mais felizes uns, outros nas mais atribuladas, mas todos eles com o seu espírito de amor e paz, rudes, genuínos e humildes. Poderia estar para aqui a recordar muitos deles mas hoje só vou lembrar o Natal de quando eu era pequenino, da minha infância, da minha mocidade, de quando ia descalço para a escola, em dias de geada e frio, porque achávamos giro tirar os tamancos com solas de pau de amieiro cardadas com tacholas. Foram Natais emblemáticos pela magia que irradiavam, Natais onde faltava tudo num tempo de guerra mundial e de extrema penúria em todos os povos. Ninguém tinha nada e todos tinham tudo porque se repartia pelos vizinhos, com alegria e bondade, o pouco que havia.
No canto da sala da casa de meus pais era armado um singelo presépio, uma cabana tosca feita de gravatos e palha metida no meio de pedras cobertas de musgo e onde estava deitado um Menino Jesus de barro, sorridente e de braços abertos, rodeado por S.José e pela Virgem Nossa Senhora, sua mãe, também do tradicional jumento e da mansa vaquinha. Nessa noite santa, vinham outros irmãos que estavam longe, vinham tios e primos, vinham outras crianças e amigos e, á hora da ceia nunca faltou o peculiar bacalhau com batatas e couves galegas, o polvo colorido e fumegante, tudo regado com generoso vinho carrascão do meu adorado Minho. No fim eram servidos os doces: rabanadas tostadas polvilhadas com canela e açúcar amarelo, as borrachonas ásperas e de acre sabor, os bolinhos de jerimu e as filhoses de massa doce de farinha, fritas em azeite puro do lavrador. No fim de tudo e até altas horas da noite era-nos permitido jogar ao rapa com pinhões descascados de pinhas mansas abertas numa fogueira que nos deixava as mãos e as caras ensarranhadas.
Nesse tempo não havia brinquedos nem prendas: os que existiam eram feitos por nós á navalha com pedaços de tabuínhas de madeira, diversos paus e arames. E que lindos que eles ficavam! Eram carrinhos singelos, barcos e aviões, bicicletas e carros de bois, até um combóio com muitas carruagens. Na manhã de Natal fazíamos uma bola de trapos com meias velhas e logo de seguida espantávamos o frio num jogo renhido entre toda a rapaziada.
A vida era difícil, com muitas carências, em certos casos com alguma fome. Havia o Salazar e o Carmona, mas tudo era pobre, possivelmente alguns remediados. Nessa altura começava a aparecer a luz eléctrica em certos lugares. Lembro-me de a minha aldeia ter sido uma das primeiras onde ela foi ligada e o meu pai comprou então um rádio muito pequeno, com uma potência mais fraca que a de um telemóvel de hoje e que nós colocávamos numa janela quando aos domingos dava os relatos de futebol e o púnhamos no máximo para que os golos do Benfica se pudessem ouvir no outro lado da Galiza que só tinha o rio Minho de permeio. Grande ilusão das nossas mentes infantis que julgavam ser o mundo um pequeno quintal pois, na verdade, esses gritos de triunfo mal se conseguiam ouvir na própria sala onde nos encontrávamos.
Porque se tornaram então tão inesquecíveis esses Natais da minha juventude? Porque irradiava deles uma essência de paz e fraternidade, uma força divina capaz de parar uma batalha tão mortífera e feroz como a de Estalinegrado, na frente russa, numa trégua tão ingente e avassaladora que invadia as mentes retorcidas pelo ódio. Fui desse tempo e embora lá não tenha estado sei do acontecimento porque dele reza a História. Mesmo nessa noite infernal da refrega a força do Natal fez deter a horrorosa chacina, chamando ao respeito e á piedade a razão humana, podendo então ouvir-se o som dum piano tocando a irreal melodia do "Stille Nacht" que irrompia solitária do fundo dos escombros e do morticínio
Mais tarde, enquanto fui crescendo, outros sóis e outras luas de Natal aconteceram. Vieram os Natais do seminário, diferentes mas belos, vieram os da tropa, os da minha fase de solteiro, os passados depois com meus filhos e netos, todos eles deixando sempre e de uma forma geral a sua intrínseca magia, os eflúvios da sua força infinita e divina, espalhando a caridade e a paz. E durante toda a minha existência, ingénuo de mim, nunca concebi nem imaginei sequer que algum dia pudesse acontecer um Natal como o deste fatídico ano de 2011. Um Natal abominável e atrabiliário, esvoaçado por avejões tenebrosos que zunem á nossa volta em cimérios pesadelos de trevas e fatalidade, onde sobressaem demónios, um Natal povoado de cínicos e rapaces ladrões que numa desvergonha sem nome escolheram precisamente esta santa Quadra para roubar, de forma ignominiosa e agressiva, os parcos recursos que milhões de pobres e miseráveis tinham angariado durante anos a fio com árduo trabalho e com o esforçado suor do seu rosto, extorquidos em nome dum suposto e maldito privilégio, só para enriquecer os seus covis,
Por isso aqui estou nesta santa hora a desejar sinceramente a todos vós um Natal, se não melhor, ao menos como aqueles que citei do meu passado, todos eles imbuídos de apreço e consideração. Felizmente que ainda me restam na memória esses Natais passados para os poder sentir e oferecer, pois Natais como o presente não os posso nem quero desejar a ninguém. Seria um desaforo e um insulto porque esse não é o meu Natal!
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