2013-10-29
AVENTINO - PORTO
PALAVRAS PARA UMA VOZ SÓ
Perfiz, há dias, o dia de aniversário. Durante muitos anos, essa data era-me de nostalgia e saudade, de tristeza e desencanto, de memória da pessoa que não fui, do filho que não fui, das pessoas a quem não amei ou não amei o quantum. Como quem fazia o inventário do seu armazém, também eu baixava às profundezas do passado e deixava-me ir pelos campos da memória real ou imaginada.Depois, ano após ano, lá fui conquistando a serenidade até chegar ao lugar onde hoje posso conviver com esse dia fatídico ou maravilhoso de "o dia do nosso aniversário" .
Neste Outubro de 2013, as prendas que recebi mergulharam, (como sempre), à volta dos livros, esse objecto divino que tudo nos transmite e a tudo nos interpela. Alexandre O'neill, O Livro do Desassossego (mais um), um carrinho de folheta e, surpresa das surpresas, "O Livro da Primeira Classe" e "O Livro da Segunda Classe", exactamente iguais àqueles que tivemos nos dias da nossa infância. E lá dentro, a bandeira nacional, as vogais, a águia para o "a", o ovo para o "o", o "i" para a igreja. E tudo isto desencadeia um torrencial de dor, de emoção, da memória dos dias em que tinha sonhos e era criança. O colo dos meus pais, a felicidade da vida com os meus irmãos, um mundo todo que não era este mundo. Depois desses tempos em que os meus livros era o meu "Livro da Primeira Classe", tive muitos outros livros, viagens, países e continentes , uma vida intensa de fazer e de sentir. Mas nunca mais houve a beleza das primeiras palavras que nos ensinaram a soletrar.
Este gesto com que me honraram neste aniversário não é um gesto tão simples e pueril como, aparentemente, parece revelar. Ele pressupõe o conhecimento da alma do aniversariante, do querer e do não querer, do que é um valor e do que é apenas um valor material.
Assim correspondi, pois, dando também a minha prenda. Uma prenda a cada um do círculo intimo da minha família. E que felicidade há neste dar e pedir.