pontos de vista

Espaço destinado a temas diversos....


2018-09-09

Machina Mundi .romance em itálico de Manuel Freitas Escaleira

 

Esta noite sonhei que era D. Quixote de la Mancha. Onde é a Mancha, nesta azarada península. Eu não sabia onde era a Mancha e, na minha mente, tudo era muito confuso e embrulhado e todo o mundo me parecia distorcido, torto e de pernas para o ar. Eu era D. Quixote e queria restituir tudo ao seu devido lugar e à sua posição cabal, correcta e cristã. Assim percorria as terras áridas povoadas de indecentes e más figuras, monstros de toda a espécie, bárbaros inimigos e infiéis à minha fé e ao meu rei. Mas eu não sabia, nesse meu sonho parabólico, quem era o meu rei. Não sabia se já estava morto, ou se, vivo, pelejava ainda por causas justas como as que me absorviam. Eu andava então por essas terras de la Mancha que nem sabia onde era, percorria aqueles espaços abrasados de grande sol que caem coa calma as aves e derrete mesmo os miolos do mais destemido cavaleiro. E nesse meu sonho de D. Quixote, bem quisera eu lembrar-me da minha Dulcineia, mas também não via qual pudesse ser a direcção a seguir para chegar a El Toboso. Rais me partam que não entendo nada do que está a acontecer comigo, encafuava eu nesse sonho idiota e que parecia sem sentido. Mas pior fiquei quando, dando-me para olhar um pouco para as terrenas preocupações, medi a distância de mim ao chão e percebi que os meu pés iam praticamente a arrastar na erva, que nem era muito alta. E, como se uma luz se acendesse no meu esgotado cérebro de tanto procurar o sentido das coisas deste mundo, abri os olhos para uma realidade humilhante que eu quase nem a consigo descrever. Meus ilustres e nobres amigos, meus irmãos de andanças e de aventuras contra dragões de toda a casta, vede bem, esguardae-me isto, esta coisa que só a mim aconteceu em toda a história da vetusta cavalaria. Eu ia, nesse meu sonho sem cabresto, a cavalo do burro do meu aio estúpido, absolutamente materialista e pragmático Sancho Pança, Que é do meu Rocinante, gritei como um louco, naquele sonho mesmo louco. E ainda a minha voz se dirigia naquela direcção à regular velocidade do som, apesar de haver vento, quando, levantando os olhos por qualquer vontade de me distrair daquela aberração do burro de Sancho, vi a coisa mais inesperada que se pode. Sancho Pança, o meu servo, o meu criado, o meu sei lá o quê, ia, impante, brioso, gabarolas, montado no meu escanzelado cavalo, que, ainda para mais, lhe obedecia direitinho que nem a mim. E, para cúmulo da minha infelicidade e despersonalização, ia Sancho Pança, gordo e mal feito, que por isso lhe chamei Pança, vestido com a minha reluzente armadura, e até se rodava para que, exposta ao sol, faiscasse como espelho ou como água, esfregada que tivesse sido a areia fina até ficar tão brilhante que um homem pudesse ver nela o seu aspecto decadente e descomposto, Como é possível isto, voltei a gritar como um possesso. E Sancho, que ouviu os meus berros, veio ao meu encontro, montado no meu astuto cavalo, que, por ser montado por ele, perdeu o juízo e não reconheceu o dono. E então eu, com a cabeça a abanar tristemente para os lados ao mesmo tempo, falava-lhe, Ah Rocinante, Rocinante, que estás de juízo perdido, meu filho da puta. Vá eu agora arranjar quem te ponha esse caco direito de modo a pensares com dois dedos de testa e voltares a reconhecer o teu dono e senhor. Relinchou braviamente o cavalo que eu tão bem tinha domesticado e amestrado, começou a escavar na terra poeirenta com as patas dianteiras, fez depois que escoiceou e, empreendendo galope em minha direcção, o Sancho Pança, como se fosse um caubói, fazia círculos no ar com a soga da rédea que eu próprio tinha amaciado, passado a ferro e ensebado. E, ao ver aquele centauro mal feito vir em minha direcção de forma tão pouco escorreita e tão pouco nobre, desembainhei a minha espada e, com ela aos golpes a cortar o ar, só esperava que por um deles ficasse o Sancho sem cabeça, sem um braço, a berrar como um descosido, sem um pedaço de cara, sem uma perna, eu nem sei sem o quê. Brandi ali a minha espada como não me lembrava de algum dia o ter feito, nem contra moinhos, nem contra rebanhos. Mas o Sancho, estúpido que só ele, saiu-lhe a sorte grande e, num daqueles círculos com a soga pelo ar, enlaçou-me a espada já cansada e, quando a viu enlaçada, deu de esporas ao Rocinante que, com novo relincho, se pôs a galope na direcção oposta, e causou-me tamanho esticão que por pouco não ia eu caindo do burro atarracado ao chão. Foi a única vez que eu, nobre cavaleiro, vi vantagem em andar de burro em vez de cavalo, que sempre é mais brando o tombo quando se cai abaixo da montada. E então Sancho Pança correu, correu, galopou, galopou, sempre a afastar-se de mim e vi-o sumir-se lá no fundo, junto à miragem da linha do horizonte, e pensei cá para comigo, porra, andei eu toda a vida a lutar por ser protagonista duma lenda, e vai-me este estupor roubar esse prémio numa tarde de azar como esta. E, desanimado por não ser eu o herói, mirrado por me ver com tão magro futuro, disse mal da minha vida, arreneguei da cavalaria, maldisse ali mesmo o materialista, pragmático, ateu e blasfemo Sancho, que não respeitava as sagradas hierarquias da sociedade trinitária do antigo regime. Do antigo regime. Eu que disse. Eu estou a ficar louco, diabo, então eu ando a falar num tempo que ainda nem sequer deu entrada na história, eu ando a referir-me ao meu tempo como antigo regime quando nem sequer sei qual é e como virá a ser o novo. E, ferido por esta minha suspeita de loucura, dei um grito medonho e acordei. Acordei, e tinha ao meu lado a minha Dulcineia, dormia ela com uma paz invejável, e nem me atrevi sequer a tocar-lhe para não perturbar aquele sono que mais parecia de anjos do que de uma simples mortal. E como, sendo de noite, não se toca em Dulcineia, o melhor é de novo conciliar o sono. Assim me aconteceu e passei-me para o lado de lá de mim. Passei-me para o lado de lá de mim e engatei outra vez o obsessivo papel de D. Quixote.

 

Ia eu agora a cavalo do meu esbelto e obediente alazão, e ia o Sancho Pança, tal como mandava a sua reles condição, a trotear no desconchavado burro que o acompanhou durante toda a vida e que lhe foi ensinando os caminhos deste mundo, que o Sancho, ao invés de mim, aprendia com o burro, enquanto eu, nobre e bem educado cavaleiro, discípulo dos mais distintos da Mancha, ensinava ao meu cavalo tudo quanto ele pudesse aprender. Até de latim lhe disse versos dos poetas dos tempos áureos e recitei-lhe também frequentemente trechos de discursos de Marco Túlio, sobretudo contra Verres. O meu cavalo deve-me aquilo que é, bem formado, disciplinado, bem falante, sabedor de muita coisa, como convém a qualquer cortesão. Sancho olhava para mim por baixo do braço, como se quisesse por lá guardar a cabeça, roído de inveja, duma inveja tão funda que até se ouvia no rosnar dos brônquios dele, oprimidos por tanto esforço de me espiar sem mo dar a entender. Assim íamos os dois maldizendo por dentro um do outro, quando, para nosso espanto, atravessámos um pueblo com aspecto ainda mais miserável do que outros varridos por invasões ou por pestes. Dum dos tugúrios mal feitos e com as paredes a vergarem-se, umas para dentro, outras para fora, saiu uma figura que nem eu nem ele conseguimos saber que coisa seria. É Lúcifer, gritou ele, o Sancho, É nada, respondi-lhe eu, deve ser mas é uma alma do outro mundo que, por ter morrido com lepra, anda agora assim toda embiocada, É nada, disse-me ele, é mas é um aventesma perdido, um antepassado de alguém que vagueia à procura da família, É nada, berrei-lhe eu, haverá de ser mas é uma vítima dessas guerras terríveis que nosoutros travámos pela santa fé e que quase de nada valeram, e ele anda por aqui a pregar isso mesmo, É nada, teimava ainda o Sancho, haverá de ser alguém que ainda não morreu e nem sabe como é que isso se faz e quer que nós o mátemos, meu senhor, atire-se a ele e morra-o sem dó nem piedade. Ao ouvir eu aquele toque de trombeta da voz do Sancho, eis que me atiro de alma e coração contra a insólita figura e, com a lança afiada, atravessei-a de lado a lado. O Sancho, ao ver como eu matava tão facilmente e sem derramamento de sangue, gritou como um perdido, Eh senhor, vós soides o maior, vós soides o maior, vós se fôsseis a torneios dáveis cabo daqueles gajos todos em três tempos, não tardaria em serdes transferido por uma fortuna aí para outro reino onde a cavalaria dá muito mais dinheiro do que nesta terra miserável e ardida da Mancha. E estava eu a envaidecer-me destes elogios que Sancho me atirava, quando ouvi, ouvi eu e ouviu ele, um grito desabrido, berrado, longo, como se se rasgasse uma árvore de cima a baixo à nossa frente. O grito saiu de dentro daquele monte de trapos trespassado pela minha afiada lança. E continuou a gritar. Continuou a gritar e nós a estarrecer como perdidos, até que, em vez de gritos se começou a ouvir distintamente dizer, Ah ah ah ah ah, que eu sou a bruxa mais cara aqui deste pueblo e vou-vos converter naquilo que soides, meus safados. E então arrebanhou aqueles trapos que lhe cobriam a cabeça e viu-se uma coisa feia que nem uma caveira. Soltou os braços, pôs as mãos ao relento e viram-se umas unhas que lhe chegavam quase até ao joelho, levantou os saiotes até ao meio da perna e viram-se uns ossos mais descarnados do que as descarnadas patas do meu esfomeado Rocinante. Voltou a gritar e, levantando voo a cavalo do cajado que antes lhe servia de muleta, eis que passa por cima de mim, pára no ar, põe na minha miserável cabeça a manápula pesada como chumbo e começa de fazer força para baixo. Estava eu montado no meu esbelto Rocinante, e ele, ao sentir o meu decuplicado peso, arqueou a espinha, tanto que me parecia a mim estar sentado num u. E assim fiquei muito tempo, e o Rocinante também. Quando a bruxa, feia e má, tirou de cima da minha miserável cabeça a manápula pesada como chumbo, supus eu que regressaria à minha primitiva forma, mas, para minha desventura, assim fiquei, atarracado até onde começam as pernas, esguio e magricela dali para baixo, como se tivesse esticado em obediência a qualquer fortíssima gravidade. Ainda eu me chorava do enguiço que me tinha caído em cima e já via o Sancho a ser esticado, que a bruxa, pegando-lhe pelos poucos e desalinhados cabelos que ainda lhe flutuavam ao vento, naquela cabeça vazia, puxava-o para cima, até o Sancho quase sair de cima do burro, que, sentindo a ausência do peso habitual, desenvolvia uma enorme bossa, aparentando-se cada vez mais com os famosos guardadores de água dos desertos. Assim mos descreveu o meu autor e não menos louco homem, D. Miguel, que até combateu em Lepanto. Parou a bruxa de puxar pelo Sancho, e estava ele esticado da cinta para cima, enquanto que, para baixo, parecia um saco de grão, curto, atarracado, pesado, sem se saber onde começava uma perna e acabava a outra. E a bruxa, feito o trabalho, arrancou da lança com que eu lhe tinha vazado o corpo e, violentamente, arremessou-a contra nós, de modo que o Sancho, por ser mais pesado na parte inferior, eu mais pesado na parte superior, tememos bem ser feridos em partes do corpo bem diferentes. Logo que arremessou a lança, gargalhou como se fosse mesmo bruxa e desapareceu para dentro do tugúrio desalinhado. De lá de dentro, pelas frinchas da porta e pelos buracos das paredes, vinham os sons casquinados e de desprezo que a maldosa atirava contra nós. Desatou o Sancho a chorar como uma criança ao ver-se assim tão desconforme. E eu, que era cavaleiro e não queria chorar como o terceiro estado, mantive-me firme. Dei-lhe então ordem de acordar e de que, logo que acordado, me acordasse a mim. E assim foi. Quando os dois acordámos, olhei para todos os lados, mas só estava lá eu, o Sancho não existia fora do meu sonho. O que muito me aliviou, porque também não existia a bruxa que berrava como quando uma árvore se racha ao meio. Naquela noite, ainda era para adormecer outra vez, mas sendo quase horas de me levantar não pude sonhar mais. Agora vou pensar nisto durante algum tempo, vou tentar encontrar uma interpretação decente para estes meus sonhos tão sem jeito. Quando a tiver encontrado, escreverei o desenlace desta história. Vou ver se consigo tornar a sonhar que sou D. Quixote de la Mancha, para ter matéria para mais alguns capítulos, se não o livro fica muito pequeno. revi

 

Estou agora eu em condições, quer dizer, estou agora eu numa bonita idade para olhar para trás e fazer de conta que estou a ver cinema, e para me pôr a contar aquilo que me passar à frente dos olhos pela vida fora, ou em sonhos, tal e qual como se o estivesse a ver. As coisas assim existem só durante algum tempo, aquele em que a luz se mantém acesa e a máquina de motor ligado. Depois que se desliga a corrente, pára a máquina e deixa tudo de existir. De modo que a tendência das coisas é aparecerem e sumirem-se. Assim se passa com as sombras, quando alguma coisa está entre o foco de luz e a parede, o chão, a tela. Tanto pode fazer sombra, como produzir imagens nítidas, quer de dia, havendo sol, quer de noite, se houver uma luz acesa a projectar. As coisas que assim existem pouco valor têm, pouco ou nenhum, criam ilusões, nada mais. Nem se deve chorar por elas nem delas se deve ter medo. Ainda que, frequentemente, se vejam pessoas a gritar no cinema, verdadeiramente assustadas com o que lá vêem, e outras aliviadas ao saírem da sala porque aquilo não foi verdade e só existiu assim durante pouco tempo. Também se vêem lágrimas nos olhos das que se comoveram como se estivessem a assistir à vida e ao que na vida acontece. Há realidades que, de tão espessas ou opacas, não se deixam atravessar pela luz, e então projecta-se no chão ou nas paredes aquela sombra visível e de contornos bastante definidos. Há outras realidades, não tão consistentes, que se deixam atravessar pela luz um pouco, e geram-se penumbras e meias tintas. Prestam-se muito mais para que se possam ver ao mesmo tempo as coisas projectadas e as que lá existem. São as mais perigosas, por serem as que mais se misturam e as que mais difíceis se tornam de decifrar. E há realidades que são absolutamente transparentes, a luz atravessa-as e vai criar ilusões do outro lado. A gente vê essas ilusões criadas e, em pouco tempo, acredita nelas como se fossem reais, chega inclusivamente a perder a noção de que está perante meras ilusões. Sempre me pareceu a minha mente muito celulósica como as fitas que se usam no cinema, superfícies de distribuição irregular daquela camada que as torna mais ou menos opacas, mais ou menos transparentes. E assim se geram imagens, tento por vezes tocar-lhes com a mão, a mão atravessa-as e regressa vazia. Quanto se viu, quanto se perde, e acaba sempre tudo no escuro, até que outra luz se acenda e nos envie para o real em que estamos a viver. Temos nós os sonhos em que se nos movem mundos, temos nós a memória em que se reencontram espaços, pessoas, momentos dos melhores e dos piores, temos nós uma ponta de loucos, de visionários, dizem outros que de imaginação, e fazemos de conta que estamos a ver coisas a acontecerem à nossa frente. Podemos tratar de ir contando tudo o que parece que vemos. Ricas histórias, pensamos, com uma pitada de sorte bem podíamos escrever uns livros e, quem sabe, até podíamos ganhar dinheiro com isso, podíamos vir a ser famosos, conhecidos de toda a gente, cumprimentados na rua. Podíamos aparecer na televisão e muito mais, como dar entrevistas para revistas e jornais e podíamos dizer o que nos apetecesse, se não que não nos viessem entrevistar, que às vezes até deve ser uma chatice, um grande aborrecimento, um incómodo. revi

 

Eu não sei que diabo terá acontecido comigo para ter um sentimento de culpa tão entranhado no fundo da minha consciência, que só a sonhar é que me vem ao de cima. Às vezes os sonhos podem ser isso, outras vezes são associações mais ou menos ao calha, como quando um homem sonha que está a fazer amor com uma mulher que na vida real sempre lhe pareceu sem interesse nenhum. Aquela ou aquelas, porém, que uma pessoa deseja quando está bem acordada, porque são apetecíveis, é frequente nunca aparecerem nos sonhos. É pena. Mas vamos à história que tenho para contar e que se parece mesmo com um caso policial. Eu viajava numa camioneta de passageiros não sei para onde. A estrada dava muitas curvas, deslocava-se lentamente por causa disso, e havia árvores dum lado e do outro. O meu lugar era junto à janela, mais ou menos a meio da fila, do lado esquerdo de quem olha para a frente. Havia passageiros que dormiam a bom dormir, e eu não tinha ninguém com quem conversar, que é o que normalmente acontece quando viajo. Aliás, eu nas viagens de camioneta habituei-me a não conversar porque enjoava facilmente. Para que isso não sucedesse, ia muito quieto e calado, cruzava os braços sobre o estômago e apertava-o, a fim de o não deixar baloiçar dum lado para o outro, que é quando aquilo que lá vai dentro se agita, e vem tudo por aí fora, a carga toda para o mar. Eu creio que naquela viagem ia mesmo assim, a olhar para a frente, sempre para a frente, para não sentir o efeito das vertigens causadas por aquela sensação de serem as coisas cá fora a mover-se, enquanto eu, dentro da camioneta, parado como um peso. Depois o sonho teve um lapso. Teve um lapso ou houve coisas que a minha memória não fixou. E isto já foi há muito tempo. Um homem mais ou menos na casa dos trinta ergueu-se de repente do meio dos passageiros, de pistola em punho, e começou a disparar a torto e a direito, como fazem os sequestradores que desviam aviões, ou os assaltantes de comboios que certos filmes apresentam. Disparava continuamente, aquelas pessoas desataram aos gritos, se calhar um tiro feriu o motorista e então a camioneta desviou-se do recto caminho, pisou a berma que era mais funda e despenhou-se por uma ribanceira abaixo. Foi para o meu lado esquerdo que ela se despenhou, no meio de uma gritaria incrível. Depois o sonho teve outro lapso ou coisa que eu não fixei. Não me lembro de feridos, muito menos de mortos, não foi para isso que eu tive o sonho. A cena seguinte é a que mais me preocupa. Eu nunca fiz nada para sentir aquilo, mas o certo é que foi isso que me aconteceu. Eu estava de pé, com a impressão de que toda a gente olhava para mim, e tinha nas mãos nada mais nada menos do que uma pistola. Desatei a fugir. Não me lembro de ter sido perseguido por ninguém, mas lembro-me de correr com quanto força tinha para encontrar algum esconderijo. O melhor esconderijo que encontrei foi a minha casa. Entrei, subi as escadas de três em três ou de quatro em quatro e fui direito ao sótão. O sótão da minha casa não tem acesso directo, é preciso armar um escadote para se chegar até lá, mas eu não armei escadote nenhum, simplesmente apareci no sótão. Também não vi lá nada do que lá costuma estar, tendas e tendas, trapalhadas de toda a espécie que não têm lugar onde caibam dentro das divisões mais à mão. A minha casa é geminada com a do vizinho. Os construtores, para apoiarem qualquer coisa, furaram a parede dupla que, no sótão, separa a minha casa da do meu vizinho. E eu sabia desse furo por onde cabia o meu punho fechado, até já tinha espreitado por ele para ver se o meu vizinho também tinha tantas trapalhadas no sótão como eu. Naquele dia, não olhei nem espreitei, nem me interessou saber de trapalhada nenhuma. Também me não lembrei de fixar a cara do fulano que desatou aos tiros na camioneta. O meu maior interesse era desfazer-me daquela arma, que era a arma do crime. Fui então direito à parede, enfiei a pistola por aquele buraco e deixei-a cair no interior da parede dupla, naquele espaço a que chamam caixa de ar ou coisa parecida. Acordei aliviado, por um lado. Por outro, tremia. Tremia porque aquela arma era a do crime, e eu não sabia quem ma tinha posto nas mãos, porque eu nunca tinha tido uma pistola. Alguém se safou à minha custa, desfez-se da arma nalgum momento do meu sonho em que eu tive medo de ser eu. Acordei aliviado, porém, porque as minhas mãos estavam limpas, já não tinha nenhuma arma comigo, e naquele sítio do sótão só demolindo a parede é que encontrariam a arma. Quando eu a larguei, ela deslizou por ali abaixo, ouviram-se vários toques numa parede e noutra, e, rapidamente, o choque dela na trave mestra que sustenta as duas casas. Sei que acordei a transpirar. Pudera, não era para menos. Contei este sonho a muita gente. Ninguém percebeu nada do assunto. Todos me julgavam um paz-de-alma. Mas, logo que acordei, avaliei a importância do sonho, procurei memorizar as matérias de mais interesse para um dia o desenvolver num livro que viesse a escrever. Mas escrever um livro é coisa que dá cá uma trabalheira. Então o tempo foi passando e nunca mais pus mãos à obra. O livro seria um romance quase policial. Os enigmas a resolver, quem me colocou a arma nas mãos. E onde raio estava eu nessa altura para assim me deixar engaldromar. E que é que teria contra mim quem assim se aproveitou. E porque é que o cretino do homem desatou aos tiros na camioneta. E o sentimento de culpa que me andava no fundo da consciência. E porque seria. Que é que eu terei feito nalgum momento da minha vida, da minha inocência, e de que depois me esqueci, para agora, só a sonhar, emergir desse fundo escuro aonde eu nunca conseguia chegar acordado. revi

 

Tenho trabalhado muito ao longo de muitos anos. Ocupei muito do meu tempo a ganhar algum dinheiro para dar de comer aos filhos. Sou pobre, nunca tive esperança nem ambição de vir a ser rico. Isso obrigou-me a abandonar a grande e única aspiração da minha vida, ser escritor. As ideias que tive e que quis desenvolver foram ficando na gaveta, sarrabiscadas em alguns papéis, esquematizadas, desenhadas, como alguma gente diz. Nunca me sobrou tempo nem disposição para me dedicar só a isso. O tempo livre de que dispus era um tempo para recuperar do cansaço de ter trabalhado. E também me convenci de que, se escrevesse, não iria a lado nenhum. De modo que nunca escrevi coisa que se visse. Estou agora a tentar fazê-lo e, à falta de melhor, agarro-me a meia dúzia de sonhos. É que eu sonho muito e, de manhã, quando acordo e me lembro de ter sonhado, esfrego bem os olhos para acordar de vez e relembrar os sonhos que tive. Não sendo assim, esqueço-me muito depressa. Sempre desejei escrever um livro, porque, árvores já plantei, filhos já fiz, o livro é que ainda falta. Vamos lá a ver se desta sempre vai. Ainda sou muito novo, quer dizer, se me imaginar com a idade de pessoas que conheço e que andam por aí frescas como alfaces, ainda tenho muitos anos pela frente. Muito tempo para escrever este livro e muitos outros. Para quê, penso noutros momentos. Alguém sentirá necessidade de que eu escreva alguma coisa, de que eu diga alguma coisa. Não. O único a sentir necessidade de dizer alguma coisa sou eu. Pelas razões que já apresentei. Oh, belas razões. Isto é um livro só para mim, só para ser lido e relido por mim, e que fique entre os meus bens patrimoniais. Quero deixar alguma coisa aos meus filhos. Tenho cinco, três raparigas e dois rapazes. As raparigas são as mais velhas, os rapazes os mais novos. Elas já estão todas arrumadas, bem ou mal, eles é que não. Querem estudar muito e chegar a doutores ou engenheiros ou assim. Eu não passei de amanuense, nunca adquiri preparação para ocupar qualquer cargo de responsabilidade. O Gilberto, que é dos rapazes o mais velho, anda no quarto ano de engenharia de minas. Quer ser um técnico muito bem pago para chegar a ser rico. O Augusto, o mais novo, anda no segundo de direito. Quer ser juiz e meter na prisão essas malfeitorias todas. Já lhe disse tem calma rapaz que depois só arranjas inimigos e podem-te tornar a vida num inferno, mas ele tem lá a ideia de que há-de pôr este mundo direito. Deus o ajude e a mim também. Quando acabar de escrever este livro, se algum dia acabar, faço várias cópias, uma para cada um dos rapazes, outra para cada uma das raparigas, e pelo menos outra para ficar comigo em casa, numa prateleira, ao lado de outros livros que comprei, a ver como fico entre escritores que publicaram muito e venderam ainda muito mais. Pode ser que mais ninguém se aperceba disso, mas ao menos terei o prazer de olhar para a prateleira de vez em quando e dizer cá para os meus botões, não fazes assim tão má figura, homem. Tal como escreveste este, podias muito bem ter escrito outros. Não vou falar de nada do meu trabalho, que eu disse que é de amanuense, mas não é. Digo assim ao referir-me a coisas de escrever. Eu passo o dia a escrever coisas, mas não são minhas, são de outros. Como disse, não vou falar do meu trabalho. Outros que falem, se valer a pena. Vou falar dos sonhos que tive e vou pensar neles, assim como quem escreve para se explicar a si mesmo e mais nada. Não me interessa muito explicar os outros, a não ser aqueles que interferiram na minha vida, ainda que fosse para dar cabeçadas e não chegar a ser aquilo que sempre quis ser. Eu sempre quis ser escritor, repito. Não tive foi tempo para isso, e para andar a estudar essas coisas de como se escreve e de como se deve embelezar a frase, a expressão, usar figuras daquelas que os poetas usam quase sem querer, que é coisa que sempre me meteu muita confusão, verificar como é que os poetas, Camões, Bocage, e outros, escreveram tantos versos tão bem medidos sem terem de contar as sílabas pelos dedos. Nunca entendi muito bem como é que isso se consegue. Eu nem a contar pelos dedos sou capaz de fazer dois versos iguais, ou me falta uma sílaba ou me sobra outra, há ocasiões em que me sobram umas quantas. Então digo para mim mesmo, deixa essa porcaria, homem, isso não foi feito para ti, quer dizer, tenho consciência de que eu é que não nasci para elas. É isso e tocar por música, ou de ouvido, e acertar nas notas, seja qual for o instrumento. Está bem. Eu parece que tenho mesmo azar. Ponho as mãos seja onde for, num piano, num harmónio, num violão, oh raio, parece de propósito, não acerto numa. Começo a trautear isto e aquilo e, é na mesma, a nota há-de-me ir sempre ao lado. Pareço aqueles jogadores da bola que rematam, rematam, rematam e nunca acertam sequer num golo. Despedem-se da carreira de jogadores, penduram as chuteiras e são mesmo virgens, nunca gozaram dum momento de glória por um golo que metessem. Assim como nunca consegui espetar um prego direito. É como se o martelo tivesse vontade própria e espírito de contradição, vai bater sempre de modo a que o prego entorte. Depois, quanto mais se tenta endireitar o prego, mais difícil é espetá-lo, que ele, ora para a direita, ora para a esquerda, entorta cada vez mais e fica aquilo uma bosta. Não era bem assim que eu devia dizer estas coisas, mas não estou para andar a escolher as palavras pela limpeza e pela qualidade. Ou uso as que sei e vou escrevendo umas lérias, ou então é melhor desistir já. A escrita tem que ser, para mim, muito parecida ao ir falando, sozinho, que se tiver alguém ao lado, já não escrevo nada que preste, parece que não sou capaz de não escrever aquilo que ouço. E se escrever aquilo que ouço, então pouco mérito tem, é assim como um ditado. Para escrever tenho que estar sozinho e imaginar que sou eu que estou a falar alto, e então vou escrevendo o que falo. Outra coisa que me complica tudo isto é que eu, no pouco tempo livre de que disponho, não sei fazer qualquer outra coisa. Habituei-me a fazer o que me mandavam lá no trabalho, tinha o ordenado, pouco, mas garantido ao fim do mês, não me dediquei a mais nada. Qualquer maquineta que avarie em casa, chama-se o técnico, ou leva-se ao técnico. Qualquer coisa que faça falta, compra-se. Nunca senti assim grande vontade nem tive grande jeito para arranjar, consertar, ser eu a fazer. Até me dizem, ó pá, então que é que fazes, nada, compras tudo feito. E é verdade. Chego a casa, depois das seis ou sete da tarde, enterro-me num sofá, ligo a televisão, encosto-me ou reclino-me e em pouco tempo estou a dormir. Acordam-me para jantar, a mulher lá vai desenrascando as coisas na cozinha, engulo o que ela preparar, levanto-me da mesa, vou para o sofá, enterro-me outra vez e continuo a olhar para a televisão. Se dá algum programa que me interesse, um jogo da bola, uma telenovela, um número de variedades, um concurso, um filmezito de acção, ainda aguento os olhos naquilo. Caso contrário, não tardo a ressonar outra vez. O Gilberto, que é mais dinâmico, sai à mãe, até me diz, ó pai, caramba, pai, não fazes nadinha, pega num jornal, lê um livro, só dormes, caramba. E tem razão. Nos fins-de-semana, aí é que as coisas se complicam. O tempo é muito. A gente passa-o à espera do fim-de-semana porque está farta do raio do trabalho que também não dá gostinho nenhum, mas chega a casa e, ainda é sexta-feira à noite e já parece que o tempo sobra, que não há mesmo nadinha que apeteça fazer. Os meus rapazes ainda tentaram meter-me no corpo o vício do computador e da internete e dos games, mas eu tinha lá paciência para me sentar diante da engenhoca e ficar à espera que ela fizesse as coisas para mim. Se mexia numa tecla saía logo asneira, ó pai, já me desconfiguraste essa porcaria, ó pai, tem cuidado que ainda me apagas o trabalho que tenho aí gravado, e por aí adiante. Também, com estas ajudas, quem é que está para aprender computador. Depois é a idade. Cada idade tem as suas características. O computador é para os novos, que já nasceram quase por computador, agora eu, e não me considero velho não senhor, mas eu nasci no tempo da pedra, aprendi a escrever à mão ou quando muito à máquina. E agora, se escrevo no computador, já não sei sair donde estou. Para mim não há mais programas além da página dos textos. Uma ciência que o meu Gilberto estuda é fazer explosivos. Sabe tudo a esse respeito. Eu nem acho bem que ele estude daquilo, nem que seja tão fácil como ele diz fabricar explosivos. Com essa bandidagem toda que anda por aí, é mesmo pôr-lhes à mão de semear o que eles querem para fazerem as asneiras que fazem. Depois queixam-se de que haja bombistas e assim. Que não vendam os produtos pelas drogarias, que não ensinem nos livros a fazer essas coisas que são perigosas. Isso devia ser só para meia dúzia de pessoas que tivessem obrigação de guardar segredo. Qual segredo. Agora parece que toda a gente tem prazer em mostrar logo como é que tudo se faz. Já me passou pela cabeça que o Gilberto, lá porque quer ser engenheiro de minas, se lembre de ganhar dinheiro a fabricar explosivos e a vendê-los aos que os utilizam. Até se pode dar o caso de depois ser o Augusto, que quer ser juiz, a julgá-lo. Eu não sei se a lei permite uma coisa dessas. Ainda era pior do que sonhar com a pistola, ver o triste espectáculo de um dos meus filhos julgar o outro e ter que o condenar a uma dúzia de anos de prisão ou mais. Nesse ponto, melhor fizeram as raparigas, que não puderam nem quiseram estudar. Também, coitadas, e não é que eu goste menos delas do que deles, mas não iam longe. Nunca gostaram nada de andar na escola, o que fizeram foi passar por lá uns anos, pouco proveito tiraram. Queriam trabalhar. Que trabalhem. Ganham pouco mais do que o salário mínimo nacional, mas dizem que estão bem e que são felizes. Eu digo isto porque ainda estou no começo do livro que ando a escrever. Lá mais para a frente é que se vai ver. Custa-me a acreditar. Com pouco dinheiro, raras vezes se é feliz. E nunca por muito tempo. revi

 

Também já sonhei comigo morto. Eu estava morto e pronto para entrar no caixão, mas, não sei como é que isso seria possível, eu assistia a tudo de um ponto distante, e estava a ver como se procedia com as últimas honras que se costumam prestar aos que morrem. Não admira. Nisso saio ao meu pai. Ele também teve um sonho assim. Sonhou que tinha morrido e que assistia ao funeral dele. Ia ele morto, transportado por uns quantos homens e, entre a multidão que tinha comparecido ao funeral, também constava ele, como observador do modo como as coisas tinham sido organizadas. Sabia-lhe bem ver tanta gente a acompanhá-lo à igreja e ao cemitério, só lhe meteu impressão que, de fora da multidão, os garotos mais malcriados lá da terra fossem constantemente a olhar para ele, a rirem-se, a fazerem-lhe figas, a atirarem-lhe pedras. O meu pai contava isto quando estava adoentado, de cama, muito antes de ter a doença de que veio a morrer. Tal pai, tal filho, diz o ditado. E parece verdade. Também o meu pai era um sorna dos diabos. Se lhe dessem o tempo todo para estar diante duma mesa de café com mais três a jogar a sueca, não precisava de mais nada. Minto, precisava de molhar a boca de vez em quando, mas até a beber era lento e preguiçoso. E jogava as cartas com pachorra, tanta que tinha dificuldade em encontrar companheiros de jogo, que se impacientavam com o modo de ele jogar, pensava, pensava, e, na maior parte dos casos, acabava por atirar para cima da mesa com a carta menos recomendada. Dava cabo da paciência dos que costumava ter como parceiros. Por isso havia dias em que nem tinha quem quisesse jogar com ele. Mas, como ia dizendo, sonhou que tinha morrido e que aqueles garotos, fedelhos ranhosos e malcriados, o gozavam durante o funeral, faziam figas e atiravam pedras. Foi então que o meu pai, o que assistia ao funeral, se baixou de repente, pegou numa pedra e fez que atirou. Os fedelhos, pensando que atiraria mesmo contra eles, puseram-se à distância, e então pôde morrer em paz. Foi assim até o caixão estar pronto para descer à cova. Nesse momento acordou. Acordei, contava-me ele, e disse cá para mim, bem, ainda não foi desta, mas também não deve tardar assim tanto. Mas tardou. Eu não assisti ao enterro do meu pai, tive que o imaginar, e, na minha imaginação, ainda andei a olhar de lado a ver se via algum fedelho a fazer-lhe figas, mas não vi nenhum. Ia tudo muito sério, tudo a pensar quando seria a vez de cada um. Eu, quando sonhei comigo morto, a coisa foi pior, sonhei que estava todo a abanar, o corpo todo a tremer, tanto que a carne se me separava dos ossos, e o cérebro dentro do crânio andava autenticamente aos saltos, e não aguentei aquela agitação que tinha todas as características duma epilepsia, mas não devia ser, eu não me lembrava de algum dia ter tido um ataque de epilepsia. Seria então o quê, procurei saber. Bem, também não interessa, porque, depois desse sonho estuporado, nunca mais tive nenhum que se lhe parecesse. E também nunca me senti assim a estrebuchar em convulsões. Mas lá que sonhei que morri disso, é verdade. Morri e fiquei igualmente a ver como a coisa corria. Não tive ideia de eternidade nenhuma, também não avistei ninguém que se parecesse com Deus, nem vi céu nem vi inferno. Uma imagem, no entanto, me ficou gravada. Quando era garoto, assisti a uma representação teatral. Já não sei como se chamava a peça. Sei é que entrava um diabo vestido de vermelho, muito feio e com cornos, que se movimentava no palco sempre dobrado, como se tivesse uma tremenda corcunda. Falava com o focinho de lado, quase como se quisesse virar a bocarra para o ar. Fiquei com aquela imagem retorcida do diabo. E, quando me vi morto, o filho da puta andava às voltas, nem cheguei nunca a perceber o que é que ele fazia ali nem o que é que queria de mim. Aprendi muito cedo que o diabo é assim uma espécie de contrário de Deus. Nunca acreditei muito nem num nem noutro, nem a minha vida se desenrolou em obediência estrita a um nem a outro. Mas que o diabo anda sempre atrás das almas, isso aprendi eu muito bem, só mais tarde é que virei a minha cabeça do avesso, um pouco por dar mais ouvidos à voz da razão, outro pouco por conveniência, porque isso de acreditar num deus cheio de mandamentos proibitivos incomodava bastante a vida, e acreditar que andam diabos atrás de desencaminhados incomodava outro tanto. O melhor era, portanto, não viver nem dum nem do outro. Mas ensinaram-mo logo que nasci, creio que até mo ensinaram antes, quando ainda me alimentava do sangue da minha mãe. A minha mãe tinha medo do diabo, considerava-o tão poderoso como Deus, e isso foi uma coisa que eu nunca consegui encaixar muito bem, porque, se ambos podiam o mesmo, haveria então dois deuses. Mais tarde ainda me ensinaram que os diabos eram muitos, organizados numa espécie de sociedade de malfeitores, hierarquizadíssimos, e que tinham um chefe com os cornos muito maiores do que qualquer súbdito. Fui crescendo, crescendo, até que me convenci de que isso dos diabos era mais coisa de representações teatrais do bem e do mal, do mau da fita e do herói, necessárias a toda a gente para se ocupar o tempo quando ainda não havia ecrãs de televisão com telecomando para se poder viajar por muitas e muitas inutilidades. Quando a minha mãe falava do diabo, descrevia-o como se fosse um bandido, um ladrão, sempre à espera de que a gente se ausentasse para ele assaltar a casa e levar tudo o que de melhor possuíamos. Eu não compreendia bem isso porque, como éramos pobres, viesse que ladrão viesse, de pouco lhe valia. Mas a minha mãe falava por comparações, para eu entender. Foi assim que aprendi que isso de uma pessoa se ausentar era o mesmo que dizer que se desviava dos rectos caminhos, e então deixava a casa, ou seja, a alma, entregue a quem a quisesse assaltar. Mas a minha mãe também contrapunha o diabo a muitos santos da sua devoção, santo antónio, são judas tadeu e santa quitéria, por exemplo. Eu sempre pensei que os santos são uma espécie de antidiabos, e quantos mais diabos existirem, mais santos têm que se proclamar. E quantos mais santos se conhecem, mais diabos têm que se inventar. Nisto de aprender religião e diferenças entre o bem e o mal, a minha mãe foi a minha primeira e grande mestra. Depois de ela me ter ensinado coisas de Deus e do diabo, quase me neguei a aprender com qualquer outra pessoa. Porém, e para que todos saibam se evoluí alguma coisa ou não, nunca deixei completamente de acreditar em Deus, porque me parece que faz falta, enquanto que no diabo deixei de acreditar quase por completo. Por isso é que escrevo Deus com maiúscula e diabo com minúscula. Nos sonhos, as imagens aparecem e desaparecem. Como por encanto. O diabo também. Estas coisas são todas verdade. Tão verdade como estar agora a escrever. Eu escrevo muito devagar, é o meu grande problema. Pensar penso eu depressa, mas a escrever pareço um arado puxado por bois molengões. Nunca me treinei para poder escrever com os dedos todos, só pico o teclado com dois dedos, um de cada mão. Demoro um ror de tempo a pôr no monitor meia dúzia de palavras. Fico com mais para pensar, mas perco muita coisa por não ser capaz de escrever mais depressa. As coisas que penso parecem-se muito com as imagens dos sonhos, tão depressa se vêem como deixam de se ver. Quando me dou conta, já esqueci mais de metade. Depois permaneço longo tempo de olhos no vazio a ver se elas regressam. Raro é que regressem. Os escritores que se lembram de tudo o que escreveram, depois de terem escrito tanto, que ainda se lembram do que fez este ou aquele logo nos primeiros capítulos, e falam disso quando estão a acabar de escrever o romance, sempre me causaram uma grande admiração. Nisso, quem eu gostava de ser era o Camilo Castelo Branco, que escrevia à mão e, em quinze dias, ou nem tanto, punha uma obra cá fora com uma história danada. Se ele tivesse um computador como este, que é do meu filho, e escrevesse com os dedos todos, aquilo era quase um romance por dia. E depois misturava o que via com mais umas coisas que inventava, ensarilhava os acontecimentos a que tinha assistido com mais meia dúzia de retoques, e já estava feito outro romance. Assim, sim, dá gosto tanta facilidade. Já eu, para escrever meia dúzia de folhas, quase tenho de bater à porta do meu vizinho a pedir-lhe que me conte alguma coisa interessante da vida dele, que eu, com alguma manha, faço passar aquilo como se se tivesse verificado comigo. Sou de imaginação bastante trôpega. O meu emprego, longe de me desenvolver a imaginação, tolheu-ma. Obrigou-me a fazer todos os dias a mesma coisa, a quase nem ter que pensar, a fazer tudo mecanicamente, e, quando assim é, a gente perde o jeito para inventar seja o que for. Eu, se tivesse que inventar uma história, precisava de estar muito tempo a olhar para o tecto, e, mesmo assim, era mais fácil que me caísse o tecto em cima do que eu ter inventado fosse o que fosse. Por isso é que me valho dos sonhos e de algumas coisas que aconteceram comigo, com os filhos, com a mulher, com os meus pais ou os dela, enfim, com gente conhecida. Dizem os entendidos que os escritores que escrevem muito também lêem muito. E que a imaginação dos que escreveram puxa pela imaginação dos que lêem. E que até há escritores que outra coisa não fazem senão pegar num livro e escrever outro paralelo ao que leram. A gente é que não sabe em que livro pegaram, para depois fazer a comparação. Ainda hei-de experimentar fazer uma coisa parecida. Imaginemos, por exemplo, que leio um livro do Zé Saramago, e que, sem ninguém saber, troco os nomes que ele usa por outros, troco os acontecimentos por outros, troco as descrições e assim, vou indo por ali adiante e, ao fim, tenho um livro. Se quiser disfarçar mais um bocadinho a marosca, ordeno aquela tralha toda doutra maneira, começo mais à frente ou mais atrás. A maioria dos leitores não está atenta a nada disso, lê, e o que quer é ir conhecendo e saboreando uma história, como quem vê um filme. Não está para se maçar a pensar se aquilo é original ou não, se as imagens são parecidas às de outro filme ou não. Isso de seguir um livro e escrever outro paralelamente ainda tem outra vantagem. As palavras são a bem dizer as mesmas, portanto, já não há aquela preocupação de uma pessoa ter que andar a resolver dúvidas que aparecem, escreve-se assim ou doutro modo, como é que se diz, desta maneira ou daquela, e outro pormenores de ordem técnica. Não sei se isto será verdade. Comigo acontece outra coisa, e é que, se leio um livro, ao começar a escrever parece que só me aparece facilmente aquilo que li. Ora, contar o que já está contado pouco interesse tem, a não ser que seja para deixar alguma coisa escrita por mim aos filhos e eles achem aquilo tão sem personalidade que, em vez de lhe darem algum valor como coisa da minha lavra, lho dêem por me ter pertencido, como eu dou valor à garlopa do meu pai, que tenho para ali guardada numa gaveta dum armário velho. As raparigas, essas nem sequer se devem interessar em ter um livro meu lá em casa. A Rosa não lê mesmo nada. Diz que não tem paciência e que não é capaz de estar com atenção. Foge-lhe logo para coisas mais fixes. Também estudou pouco. Fez meia dúzia de anos de escola, foi trabalhar, creio que até deitou os livros fora de propósito. Um estudante, seja rapaz ou rapariga, que ande na escola e que não goste daquilo, que tire más notas, passa a vida a ouvir ralhar. Ralham-lhe os professores na escola, ralham-lhe os pais em casa, ralha-lhe toda a gente, e, ainda por cima, comparam-no com os outros, com os que são aplicados, que são disciplinados, que tiram boas notas. Aquilo é um somar de humilhações. Eu dei-me conta muito cedo de que a Rosa era uma dessas alunas. Chegava a casa, atirava com a mochila, Estuda as lições, Rosa, dizia-lhe eu, dizia-lhe a mãe, Estou farta disto tudo, respondia, se me vejo livre dos livros até emagreço sem dieta, Que é que aconteceu hoje, filha, perguntava-lhe. E ela desabava num choro impossível de conter, que o professor de português, que a professora de matemática, que este e que aquele. Quando fazia testes, escondia-mos. Eu é que ia ter com ela e dizia-lhe, Mostra cá, filha, não fiques triste, eu quando tinha a tua idade também era só negas, e eu não te vou ralhar mais. Então ela lá pegava naquela papelada e mostrava-ma. Era medíocre nesta, fraco naquela, mau na noutra, satisfaz pouco, suficiente menos, insuficiente, e por aí adiante. Coitada da Rosa, o que ela não sofreu com tanto atestado de estupidez que os professores lhe passaram. Parece impossível. Cheguei mesmo a ter pena e a dizer-lhe, Acaba lá este ano e pronto, ficas em casa algum tempo, ajudas a tua mãe na loja e, calhando bem, vai-se vendo se arranjas um lugarzito onde ganhes ao menos para ti. Apareceu um emprego de balconista. Ao princípio custou-lhe. Eram horas e horas a aturar a loja sem ninguém, com a patroa sempre a dizer-lhe, Se não há clientes faz qualquer coisa, rapariga, não fiques aí especada que adormeces. E era arrumar roupas nas prateleiras, limpar o chão, fazer de tudo, até dar massagens nas costas à patroa que se queixava todo o dia de dores cervicais. Quando havia clientes, era o que era, desmantelavam aquilo tudo e não levavam a bem dizer nada. Lá tinha ela que restituir as peças ao respectivo lugar. Mas foi-se fazendo uma boa empregada. A patroa morreu prematuramente e ela, que namorava e pensava em casar-se, falou com o namorado e tomaram a loja por conta deles. Têm vivido sempre com dívidas, mas também podem ao menos gabar-se de que fazem o que querem e não o que lhes mandam. A Rosa é muito boa filha, mimalha e carinhosa, mas para essas coisas de estudos e de escola nunca foi prendada. E tiraram-lhe, com aquelas manias das classificações e das comparações, a pouca vontade que pudesse ter de aprender. Há uma coisa que ela faz muito bem. Cozinha que é uma maravilha, sempre a inventar receitas novas. Dá gosto ir a casa dela almoçar ou jantar. São uns sabores que não encontro em mais lado nenhum. E depois, deu-me dois netos, um menino e uma menina. E eu fico todo babado quando eles estão comigo e me chamam Bunelo. Bunelo é Avô Manuel. Bunelo é um nome bonito, se calhar até o vou adoptar como pseudónimo para assinar esta obra. É carinhoso, e tem alguma semelhança com nomes italianos. A Goreti foi mais longe. Ainda fez o secundário, mas com médias baixas. Desanimou e disse que não estudava mais. Dinheiro para a pôr a estudar na privada também nunca houve. Paciência. Lá foi a Goreti para o mundo do trabalho. Está nos escritórios duma fábrica. Ainda não se casou. Parece que até nem namorado certo tem. Nem lhe vejo grande vontade. Gosta é de viajar. Do que ganha, nunca o pai nem a mãe lhe pediram nenhum, de modo que vai juntando o que pode e, nas férias, desaparece por quinze dias para algum país estrangeiro com um grupo de pessoas amigas. Regressa sempre muito eufórica, traz lembranças para todos, fala do que viu e do que ouviu, do que encontrou de novidade por toda a parte, do que comeu e do que gozou. E contenta-se com isso. Parece que se contenta com isso, mas a Goreti, lá bem no fundo dela própria, é triste. Eu sei que é triste. E pressinto que ela sente que há coisas boas nesta vida que não foram criadas para ela. A Virgínia é gémea da Goreti, coisas que acontecem sem a gente querer. Em vez duma apareceram duas. São iguaizinhas por fora. Durante muitos anos vestiram-se exactamente da mesma maneira, e até parecia que pensavam da mesma maneira, mas, lá pelos dezassete, as coisas mudaram. A Virgínia tornou-se mais independente, mais afoita, mesmo mais atrevida. Começou a andar aí com uns rapazes que não eram nada do nosso gosto. Não se sentia bem em casa. Um dia foi-se e nunca mais voltou. Abalou de vez. Nunca mais manteve contactos regulares, nem com os pais nem com as irmãs nem com os irmãos. Nos estudos era preguiçosa, mas podia muito bem ter feito pela vida. Os conselhos que demos às outras e aos outros foram os mesmos. Ela é que trazia alguma coisa diferente. Quando a Virgínia se foi embora, a Goreti sentiu-se invadida duma grande moleza, duma grande desilusão, parecia que tinha perdido mais de metade dela própria. Fechou-se mais, deixou de ter amizades como tinha tido até ali, tornou-se mais prática, deixou de alimentar grandes sonhos. Como as coisas são. A Virgínia, quando a recordo, o que acontece frequentemente, aparece-me como a minha maior frustração, o meu maior falhanço, o meu fracasso. Intranquiliza-me a consciência, caio numa melancolia de incapacidade. Às vezes até faço por nem pensar nela. Neste momento, não sei onde anda a Virgínia, nem o que faz, nem com quem vive. Mas tenho a irmã gémea em casa comigo a lembrar-me constantemente as feições dela. Quando eram mais pequeninas, pegava nas duas ao colo, dava de comer às duas, adormecia as duas, contava de vez em quando uma história às duas. Hoje penso nisso e sinto que talvez a tenha tratado, involuntariamente, de modo diferente. Há qualquer coisa de que me culpo sempre que as coisas não correm como deveriam correr, como gostaríamos que corressem. O sonho do homem da pistola. Será que tem alguma coisa a ver com isto. Oh, sei lá. Já me lembrei de um dia ir a um desses médicos que resolvem os problemas da alma, mas são caros que tresandam, e nunca se fica bom com uma consulta, é sempre necessário um número razoável delas, e o dinheiro não dá para tudo. Não fosse isso e ainda gostava de falar destas coisas com um especialista, a ver que explicação me encontraria. Que terei eu a ver com o desatino da Virgínia. Penso se não será, ainda que sem eu o querer, culpa minha. Ou será que, apesar de gémeas, as pessoas seguem cada uma um rumo diferente. Elas frequentaram ambas as mesmas escolas, nas mesmas turmas, tiveram os mesmos professores, as mesmas professoras. Porque é que a Virgínia saiu assim, o nosso desgosto. Já se passaram festas de Natal sem que ela desse sinal, sem nós podermos dirigir-nos a ela, que não sabíamos onde estava. Depois, um dia, quando lhe dá na real gana, lá vem um telefonema, um postal. Nunca do mesmo sítio. A Benedita, que é a minha mulher, já um dia disse que ela deve andar na vida, quer dizer, na prostituição. Um dia em que falei com ela ao telefone, disse-lhe, quase a chorar, que voltasse para casa. Desligou-me o telefone. Nunca mais lhe voltei a falar nisso. revi

 

O homem da pistola não usava barba, disso lembro-me muito bem. E ainda era novo, andaria na casa dos trinta, não mais. Apresentava já umas entraditas, a caminho de uma calvície precoce. Magro, mais alto do que eu perto de um palmo. A cara dele, penso às vezes, não me era de todo estranha. Mas não tenho a certeza. Acontece por vezes nos sonhos aparecer um rosto que nos vem não se sabe donde, que nos faz pensar que nunca o tínhamos visto. Mas eu acho que isso é impossível. Os sonhos não são propriamente criativos. Os sonhos são o resultado de coisas que se gravaram no nosso cérebro, não são coisas tiradas do nada. Mas também acontece que, depois, na vida real, vemos uma pessoa e dizemos, porra, eu já vi este fulano, esta fulana, em qualquer sítio. E não. Ou então, pegamos naquela imagem do sonho e começamos a trabalhá-la no sentido de a decifrarmos, de a identificarmos com alguém que tenhamos conhecido e com quem nos tenhamos cruzado. E então, nesse labor de decifração, modificamos-lhe os traços em direcção a alguém que conheçamos. Creio que foi o que me aconteceu com o homem da pistola. Fui-o aproximando de alguém que conheci ou que conheço, mas não sou capaz de definir nada disso com precisão. Só posso dizer que era uma presença



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