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2017-08-18

A Estação de S.Bento

Era já primavera, lembro-me bem. Tinha havido terrorismo pela Europa e eleições nos Estados Unidos da América. E se disso me lembro é porque a minha memória resiste a esse esforço de esquecer com que tenho lutado. Quero esquecer o bom e esquecer o mau porque qualquer um deles, quando se me aflora, aflora-se-me em sofrimento: o da perda, o de não mais o poder ter.

 

Ele era alto, silencioso umas vezes e, outras, outras tantas, conversador, num diálogo suave sem que impusesse a sua voz ou o seu tema, mas introduzindo-o e deixando que eu também o conduzisse. Já lhe sabia o to que, a introdução o modus como ele me olhava, apenas para me fazer falar e expressar as minhas ideias: calava-se, calava-se tanto que o seu silêncio espicaçava-me. E eu falava.

 

 

Nesse ano foi a última vez, das tantas e tantas que ali me levou. Ele gostava do cheiro a espiche, do chiar das rodas nas linhas, do adivinhar a alegria ou a tristeza pelo rosto das pessoas que partiam e chegavam. Mas o que ele procurava sempre era reviver os dias em que fez aquele mesmo percurso naquela máquina enorme que,  se lhe meteu medo e terror no primeiro encontro, o veio a seduzir e a encantar  pelo resto dos dias que foram os longos dias da sua vida.

 

Dez anos de idade, a mãe e o pai percorreram os oitos quilómetros que os distanciavam da estação. A mala à cabeça da mãe, o saco nos braços do pai. E assim vieram, princípios de outubro, a pé, por monte e carreiros abaixo, uma hora antes chegaram, não fosse o transporte partir sem ele.

 

As instruções que os pais lhe deram fixou-as bem: senta-te à janela, não fales com ninguém e quando ouvires o altifalante “Estação de São Bento”. É aí. É aí.

 

E ele a contar-me tudo como se tudo tivesse sido nesse mesmo instante em que me dizia: “a linha era esta, os travões chiavam tanto que até arrepiavam, eu tapava os ouvidos para não sofrer e lá descia aqueles três degraus tão altos para as minhas pernas tão pequeninas”. Contava-me tudo nas muitas vezes que ali fomos passear, eu agarrado à mão dele, firme, grande e forte e ele tão protetor e tão encantado pela minha companhia e infantilidade. Foi o grande amor da minha vida, é o grande amor da minha vida, nem sei descrevê-lo, nem sequer há factos, acontecimentos ou razões objetivas que me tenha construído e mantido esta profundidade do afecto. É. Ama-se alguém, sem razões de contabilidade. Nada mais há acrescentar. Dois companheiros que fomos sempre enquanto o tive vivo, velhinho, mas sempre  a lutar contra a idade, só para me acompanhar nas brincadeiras que eu criança inventava como se o puxasse para a vida.

 

E foi assim, disse-me ele, o que custou foi a primeira vez, eu cheio de medo de um comboio tão grande. Tinha dez de idade e feita a comunhão solene, haveria de chegar no dia sete de outubro. Pelo caminho deixei-me  deslumbrar por as árvores a andarem, os campos a andarem para trás, as vacas que pastavam nos campos sem se mexerem também andavam ao contrário do movimento do comboio. Era a minha primeira vez e se a princípio cheguei até a esfregar os olhos para me certificar que estava a ver bem, logo, logo, uns quilómetros andados, apurei que tudo estava certo. Nem as árvores andavam para trás, nem eu tinha qualquer perda de visão ou cegado mesmo. Era o movimento do comboio que me criava uma nova vida, um novo movimento da terra, um novo sentir de que os longos vales de pastos e milhos que avistava de minha casa, alguma vez me tinham deixado imaginar.

 

“E como cheguei num instante a essa certeza”? perguntou-me ele não sei se para testar a minha atenção ou para testar o meu raciocínio. Foi simples, disse-me ele antes que eu respondesse. Apercebi-me que quando o comboio acelerava também as árvores e as vacas aceleram e quando ele abrandava ou parava, a terra que eu da janela avistava, também fazia o mesmo.

 

Da estação da sua aldeia á estação de São Bento foi cerca de hora e meia, numa carruagem com quatro tropas que iam para a guerra, uma casal de idosos com uma cesta de galinhas e mais dois ou três operários que iam pegar ao trabalho na Fábrica do Cobre na Circunvalação.

 

“Quando vier um senhor fardado pedir-te o bilhete, tu mostra-lho”, advertiu-o o pai por duas vezes, receoso que ele o perdesse ou o estragasse e o revisor multasse a criança logo na sua viagem inaugural. A meio da viagem lá apareceu o homem que ele aguardava. Levantou-se e respeitosamente estendeu-lhe o bilhete. O revisor fez um furo e agradeceu-lhe: “obrigado, meu menino”. “Quando chegarmos a São Bento, eu aviso-te”.

 

 

Perdeu o medo e ganhou segurança. Afinal não ia nunca enganar-se no seu destino.

 

Das paragens nas estações houve algumas que guardou para sempre na sua memória. A de Penafiel por já ter ouvido este nome, a de Ermesinde pelas muitas linhas que ali se cruzavam, a de Contumil pelos tubos ao alto e a de Campanhã pela algazarra dos altifalantes.

 

Quando chegares a São Bento, o comboio não anda mais. Para porque a linha termina ali. Sais na porta em frente e mesmo á saída da estação pergunta onde para o trollei 36, explicou-lhe bem o pai, uns dias antes da partida e na hora da despedida. O 36, não esqueças. Depois mostra este papelinho ao revisor que ele diz-te onde tens de sair. 

 

Depois deste tão simples e tão singelo explicar, o meu avô não mais voltou  a este assunto. Eu queria, quis sempre, perguntei-lhe como eram esses tempos de gentes vindas da Linha do Douro, que destino buscavam numa cidade sem silêncio nem abraços, numa cidade onde o aguardar dos regos de água eram apenas as torneiras de quem tinha água canalizada a pagar ao fim do mês na conta com que a Câmara enfurecia os seus munícipes. Fiz-lhe perguntas, dei respostas,

 

avô como sobreviveu à ausência dos afetos da sua mãe e do seu pai? E ele chorava. Punha-me a mão por sobre o meu ombro frágil e respondia-me sempre: tu és a minha eternidade. Que importa o que já não existe?. E lá íamos nós. Azulejos do teto e das paredes da estação, o grito da composição a sair da linha 4, senhores passageiros vai sair da linha 4 a composição com destino à Régua. Tem paragem nas estações de  e de  e de e por ali além, mas o meu avô já só tinha ouvidos para  o sentido contrário. A composição que vai entrar na linha número 1 provém da Régua e chegou ao seu destino.

 

E foi assim, muitos anos, várias vezes ao ano, até fevereiro de 2017.

 

Um dia o meu avô reuniu um grupo de antigos alunos do seminário para irem em busca de um qualquer resquício da memória na Estação de São Bento. Não me revelou o porquê  nem o sentir desse dia, mas percebi bem que estávamos chegados ao fim. Na véspera, foi a casa dos meus pais e disse-me: Francisco, amanhã vamos á estação de São Bento? Pergunta assim, linear, simples, sem qualquer outro tom ou interrogação que pudesse deixar à minha alma adolescente que estávamos, quem sabe, ali tão próximo do que é o fim de todos os sentires.

 

Sim, avô, sim, vou.

 

E fomos. 19 ex-seminaristas de Cristo Rei. Encontro marcado na Jardim Botânico do Porto, mais conhecido pela casa da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen. Foram chegando, os de mais longe, como sempre são sempre os primeiros, depois os da cidade, depois o meu avô. Foi o último dos nossos encontros. Poesia, Museu Romântico, a estátua a “ Dor” de António Teixeira Lopes e depois, como o tempo corre pelo repicar festivo dos relógios da cidade, lá fomos nós em passo morno como nos impôs as pernas cansadas daqueles homens de tantas décadas.

 

Foi a última vez que o ouvi falar. Não recitou poesia, não chorou sobre a sua adorada mãe, não recomendou nada a ninguém: apenas que cada um visse o mundo e a arte pelos seus próprios olhos.

 

Hoje. com o retrato dele por sobre a minha mesinha de cabeceira, beijo-o todos os dias antes de dizer adeus ao dia para um sonho que a minha juventude ainda aplaude. E lá vou eu feliz. Noites felizes são sempre estas em que parto agarrado aos olhos negros com que ele se despede de mim, em todas as noites.

 

Aventino

 

 

 

 

 

 

 

 

 



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