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2015-01-22

CICLOS DE VIDA

 Migrante acidental fiz-me vizinho de governantes que não amo e de caras que nunca vira. Sonho trazer comigo montes, florestas e bichos. Vai ser difícil. Vou pedir ajuda às nuvens e levar para terras pátrias famílias a sul inúteis e seus rebentos, mais difícil que o tormento de Sísifo. Injustamente estou condenado a não ouvir hinos da Natura ou murchar num senil deserto. Há sessenta anos poderia até prever, para os então vindos à luz, uma vida aos trambolhões, mas nunca que seríamos os últimos a criar filhos e, quando muito, algum neto mais temporão. Os pilares sociais sofreram um terramoto e possibilitaram uma qualidade de vida que obscureceu a dos progenitores, mas paga com a fuga da família e da pátria. É longe das origens que mais as recordamos e ouvimos Camões no Corno de África, protestando tristes dias, forçosos, maus e solitários. Convido os mais corajosos a visitar a caverna da infância, como Orfeu, e volver vivos à luz. Há sessenta anos todos os meses serviam para gerar filhos e nascerem. Nos campos o Outono tem motivos para reivindicar maior fecundidade. O grão enchera as tulhas, nas arcas lutavam por lugar os frutos da horta, da figueira, da nogueira. As maçãs perfumam a sala, penduradas em carrelos polimorfos. As batatas descansam na loja sobre palhinhas esperando a sua vez de matar a fome da família. É agora a vez da preferência pelas castanhas e vinho novo, mesmo a tempo de dar calor debaixo da manta. Por último, chega o azeite, os chouriços os rábanos e as pencas. Com tanta abundância pareceria natural ouvir mais choro de crianças de Junho a Agosto. De facto só devem nascer menos filhos em Fevereiro, por razões óbvias. Os filhos únicos eram exceção. Uma contabilidade exagerada de tentativas da parte masculina servia para esquecer misérias. Se tudo dependesse da mulher as estatísticas melhoravam. Ela é senhora do ciclo de fecundidade humana, em meses lunares. A regra é também ser a mulher a decidir se quer ou não ter filhos e quando. Amamentar no verão obrigaria a ficar em casa quando os campos clamam por cuidados. A fome é pior que não deixar herdeiros. O tempo frio para a mulher, que, mais que o homem, quer sentir-se limpa, obriga a água quente, luxo em tempos dos citadinos ricos. Em recurso, enchia o copo do companheiro e dizia-lhe para ir para a cama, ia deitar os filhos, aconchegava-os até adormecerem, tempo suficiente para o vinho cumprir a sua missão, só se aquecendo ao lado do par quando este já deambulava pelos reinos de Morfeu. Na primavera tudo ganha vida, a erva engorda os ruminantes, que se empenham no trabalho de dar aos donos vitelos, cordeiros e cabritos dali a meses. Bem tratadas, cabras e ovelhas podem parir duas vezes por ano, mas a regra é o alimento disponível garantir uma vez. Animais mais fracos, por vezes por doença, não fazem criação e se ficam prenhas costumam enjeitar o filho ao nascer. Em condições adversas também acontece com mães humanas. O país interior passou ao lado das revoluções industriais. O uso de máquinas agrícolas exclui trabalho manual e fez cair a pique a natalidade. Homens e mulheres em idade fecunda migraram e voltam agora em Agosto com filhos e netos que falam outras línguas. São as condições de vida que decidem ter filhos, mulheres e homens continuam a atrair-se. O estímulo da natureza na primavera não basta nos humanos para aumentar a fecundidade, nos campos a cama é mais bonita e menos a jeito. Pelas estatísticas a probabilidade de se nascer em cada mês (ou signo, se preferirem) é ao acaso, por muito que alguns leões lamentem que as mulheres não sejam todas virgens. O lado positivo é que todas as luas e marés são boas para fazer filhos e nascerem e que também as mulheres esquecem o futuros trabalhos em certos momentos. O lado menos bom é eu tentar provar não sei o quê, sem conseguir. Para a frente.

 

 MÃE E FILHO

 

 Na gestação começa a relação entre mãe e filho, o que ficou provado por observação em salas de maternidades com várias parturientes. Se durante a noite um bebé chora a regra é acordar só a respetiva mãe. É decisivo o contacto físico do bebé com o corpo da mãe, durante a amamentação e não só. Também são decisivas as conversas da mãe com o filho, o banho de palavras. De parte do bebé o reconhecimento da mãe faz-se mais pelo olfato. É perigoso a mãe mudar de perfume. Quando o bebé fica a cargo do pai ou de outra pessoa convém dar-lhe uma peça de roupa que a mãe tenha usado, para sossegar. As boas mães veem o filho cara a cara e este já reconhece a da mãe na primeira semana. Mais tarde reaje com choro à sua ausência. Nem todas as mães respondem aos cuidados do bebé nesses primeiros dias, podendo originar síndromes de carência afetiva e autismo, em casos extremos. Mães que não são amadas também não amam e o instinto maternal, de certeza a força mais criadora em homens e animais, por vezes não chega. São os futuros clientes de pediatras e psicólogos. Família e sociedade são corresponsáveis. No trabalho de um quarto de século com deficientes e suas famílias conheci de tudo: umas desintegraram-se outras redobraram o amor pelo filho deficiente. Ao oitavo mês os traços da personalidade estão definidos. Estudos recentes provaram que a criança aprende tanto no primeiro ano como no resto da vida. Antes ponha-se a barreira nos três. Aos três anos um bebé fala chinês e eu nem em toda a vida. A personalidade dos deficientes é mais guiada pelo afeto que a população geral. O motor que nos move a todos é afetivo. Em sociedades matriarcais e outras por vezes ditas menos desenvolvidas, as carências alimentares são mais visíveis que as doenças por carência afetiva, incluído o complexo de Édipo, que está longe de ser universal, desmentindo a tese de Sigmund Freud. Índias de muitas regiões trazem os filhos ao colo ou às costas. Pode faltar tudo menos afeto. A população dos estudos de Freud pertencia à nobreza, classe de moral mais que duvidosa, em que os filhos ficavam a cargo de criadas. O mesmo já faziam as donas romanas, tudo menos proletárias. Enquanto possível, o colo, a amamentação e o contacto físico devem fazer esperar o biberão e a cadeira de rodas. Quem cresceu nos campos e observou o mundo à sua volta, notou que os pintos, mal saem da casca, seguem a mãe galinha, que os chama e guia em segurança debaixo das asas para onde há comida, nunca os deixando afastar muito. Nos patos há um momento em que se ligam ao primeiro objeto que mexe, quase sempre a pata que os chcou. Conhecedores disso, os criadores de patos hasteiam por perto uma bandeira a ondular ao vento, que seguirão para onde o dono os levar a nadar e a comer. As ovelhas por vezes parem três cordeiros, mas não sabem contar até três. Limpam os filhos que vão nascendo e encaminhando para as tetas, cheirando-lhes o rabo quando mamam. Enquanto nasce o último pode quebrar-se o laço com os primeiros, passando a rejeitá-los. Um pastor atento assiste ao parto e evita que os cordeiros se afastem da mãe. Quando a mãe falta humanos e bichos ligam-se a quem os trata e alimenta. A mãe é também a defesa contra ameaças, arriscando a própria vida. Ninguém se deve aproximar da cama de uma cadela parida, se não for dono. A vaca mirandesa, quando pare, nem o dono quer por perto. Uma exceção: o cachorro quando abre os olhos faz também ligação ao dono, a quem segue para todo o lado durante a vida. Já deve ter muitos anos a ligação entre o homem e o seu fiel amigo.,

 

 Para demonstrar as síndromes de carência afetiva foram feitos estudos meticulosos em humanos, símios e outros animais. Nos humanos provou-se que o abandono extremo leva ao colapso físico e à morte, mesmo que sejam alimentados. Com os símios foram usados bonecos imitadores da mãe, sem as formas desta, que só davam leite, com resultados semelhantes. As deficiências sensoriais permitem um conhecimento do papel específico de cada sentido na aquisição de conhecimentos e no desenvolvimento da personalidade. O exame psicológico revela competências médias dos cegos em provas orais e abaixo da média em provas de orientação espacial através do tato. Contudo, cerca de dez por cento conseguem resultados acima da média. Nesta população a curva de distribuição de Gauss é bimodal, o que confirma as sentenças populares que atribuem aos cegos ou pouca ou grande inteligência. Nos surdos verifica-se o contrário. Numa sala de aulas o surdo está mais ausente que o cego. Muito do sucesso de aprendizagem depende da riqueza dos estímulos sensoriais, com muito trabalho da família e dos educadores. Conheci casos de homens cegos impotentes. Nos humanos os órgãos sexuais são os últimos a desenvolver-se e, tal como na ligação afetiva, há uma idade crítica, que, desaproveitada, torna a deficiência irreversível. É saudável que rapazes e raparigas convivam e aprendam a conhecer-se. A clausura e crescimento separado dificulta o futuro reencontro, por desconhecimento dos sinais emitidos pelo possível parceiro.   

 

 Vimos que já nascemos com comportamentos geneticamente programados e aperfeiçoados durante milénios, mais que os registados no Génesis, mas sem instruções escritas. Se concentrarmos num ano a história da vida na terra, o homem aparece entre o Natal e o Ano Novo. Comparando o homem com os outros animais é ultrapassado em competências em praticamente tudo. O título de rei vem-lhe da correlação mais positiva entre o tamanho cérebro e do físico. Parece ter concorrentes em cetáceos, elefantes, polvos e símios e outros. O genoma humano está mais próximo do chimpanzé que o deste do gorila. O cérebro humano cresceu, e continua a crescer, muito à custa da perda de dentes. Na nossa geração alguns já não têm os do ciso e noutros são raquíticos. Talvez venham tempos em que não tenhamos de ir ao dentista. Também se sabe que a esperança de vida dos nossos descendentes vai disparar com o avanço da ciência e adivinha-se a migração para outros astros, à medida que se descobrem e manipulam mais segredos da matéria. Religião e filosofia não podem ignorar que todos os seres vivos, plantas e animais, são formados por quatro bases e, por vezes, uma quinta. Os seres vivos não esgotam as de combinações possíveis.

 

 Ricardo Morais

 



Comentários


2015-01-28

Alexandre Gonçalves - Palmela

 

O ESPLENDOR DE UM OLHAR INAUGURAL

 

Meu Caro e Admirável Amigo Ricardo Morais

 

Bendita mãe que te criou, benditos seios que te amamentaram, bendita natureza que aturou o teu crescimento! Nunca disse isto de um homem e não tenho a certeza de o ter dito de alguma mulher. Se o não disse, podia tê-lo dito! À distância do que já escrevi, não o posso garantir. Mas posso seguramente asseverar que a tua exposição foi dos mais belos textos que os meus olhos despiram, em estado profundamente comovido, como quando, ainda devorados pelas hormonas, rasgávamos vestes femininas, atabalhoadamente, sem jeito nem pudor, quiçá sem um pingo de afecto.

E foi só de afectos que me ia lembrando, à medida que te lia. Já é tarde nesta noite de janeiro e mais tarde ainda na minha vida. Mas com uma lucidez que faísca nos meus sentidos e no tempo que já perdi pelos caminhos. Nesta vida conventual onde me refugio do ruído viscoso e repugnante da nossa época. No trato quotidiano que desenvolvo com os meus animais. Na percepção emocional que recruto duma infância cruel, onde o nome de deus não era pronunciado, nem sequer em vão. Nessa natureza de calhaus milenares, em que a haver ternura teríamos de a procurar nos rebanhos, na espécie canina, no olhar de mel que as vacas derramavam sobre os pastos ou na humildade viril e arcaica de um muar. Na praga masculinizante, que grassa nos modelos sociais, aniquilando o corpo, a dignidade e os sentimentos da mulher. Em todos esses campos, foram os afectos que morreram. Sem afectos, nada se cria que valha a pena. O nosso tempo morre precocemente, porque matámos o coração. Esta Europa, banhada pelas religiões, por rituais manipuladores, onde a única verdade revelada é o ódio e o desprezo por tudo quanto é verdadeiramente humano, esta Europa pode fazer filhos que não sejam monstros? Podem nascer flores brancas no ventre de uma jovem mulher, que não encontra onde encostar os ombros ou o rosto, ferida pelo medo, pela fome, pela solidão sem nome?

Tudo isto é dito, num ritmo épico e sereno, no teu texto, uno e indivisível. Não escrevo para te repetir. Apenas quero reforçar, com a minha intuição, quase obsessiva e angustiada, as tuas verificações antropológicas. Trago esta melancolia, quase doença, quase raiva, desse lugar que ficava no fim do mundo, a que alguns chamam docemente infância. Eu chamo-lhe inferno, sem culpa para o latim, mas para um país, que nutre um grande desprezo por cada criança que, contra tudo e contra todos, ainda vai nascendo. Poderás tu, Ricardo, nessas incursõe frequentes pela alma de Trás-os-Montes e Beiras, a duas, três horas da alienação litoral, encontrar vozes de crianças cantando um hino à paisagem ou à vida? Se encontrares, telefona-me! Irei ter contigo para me comover. 

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