2015-03-26
alexandre gonçalves - palmela
BARROSAL IV /Cartas a um Amigo que Não Vem no Vento
No plaino abandonado
que a morna brisa aquece,
de balas traspassado
- duas de lado a lado-,
jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
alvo, louro, exangue,´
fita com olhar langue
e cego os céus perdidos.
Tão jovem!, que jovem era!
(Agora, que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
um nome e o mantivera:
"o menino de sua mãe".
F.Pessoa (CANCIONEIRO)
Estou sentado na confeitaria dos combatentes. É o céu do Porto, baço e triste. Uma neblina baixa e algum frio sugerem o conforto matinal de um galão e uma torrada. Cheguei cedo, muito cedo para os hábitos que pratico. Fui dos primeiros clientes a entrar. Procurei um recanto, recortado contra uma vidraça nublada. Mesmo não chovendo, eu senti a chuva a atravessar os vidros e a molhar-me a vida toda, como se eu andasse à chuva desde Vila Nova. A minha defesa, a minha gabardina, o meu chapéu de chuva é um caderno obssessivo, agora mais pequeno, que guardo no blusão. Ponho-o na mesa, como se o fosse usar. Não o usei, esperei que me servissem e fui olhando distraidamente para a manhã, que assim crescia. Pessoas que entram, que saem, que falam baixo, que não falam e apenas fazem tempo. Olhei mas não vi nada. Fiz tempo triste, como se o ar anunciasse para breve uma qualquer dor estranha e incómoda. No entanto, sobravam-me razões para gostar de estar ali, num ócio novo e lento, esperando por um encontro. No extremo oposto, alguém me procura sem me ver. E alguém me vê sem me procurar. E foi assim que esperámos sentados, cada qual com a sua distracção. A ponto de nenhum de nós ter levado telefone. Quando vou pagar, vejo pelas costas o António Pedro, que já se pirava em direcção incerta. Corro para ele, berro-lhe o nome e ele vira-se: "Ó boa, onde é que te meteste?", vociferou. Demos um abraço, rimo-nos de nós próprios e procurámos o meu carro. Ordens claras e indiscutíveis. "Em frente e logo à esquerda! Depois é só andar." Fomos rezar a um santuário de Matosinhos, junto à praia, onde é um dos devotos mais fiéis. Chegou e disse: "a dieta do costume!" A dieta foram três horas infinitas. As últimas, para o meu lado. Quando nos despedimos, o dia estava ganho, éramos contentes e nada sabíamos do futuro. Nem tempo tivemos para falar de melancolia, isto é, da neblina do Porto, mesmo quando não chove. Mas ainda me perguntou: "escreveste alguma coisa? Dormiste com a gaja?" Não escrevi, não dormi com ninguém mas ri-me até às lágrimas. A sua alegria contagiava e transformava em sol qualquer gota de chuva que assomasse nos olhos.
Do António Pedro falarei, por imperativo de consciência. Evitarei os elogios, porque ele não os suportava. Em cada elogio, há uma infidelidade à mais pura amizade da terra. Evitarei também qualquer forma de avaliação, porquanto rejeito liminarmente qualquer papel de juiz. Dele direi três coisas, extraídas dos actos da sua vida, por me ter sido possível conviver com ele nos últimos cinco anos. Primeiro, a alegria. A breve história referida mostra como ele bebia e comia a vida, como um banquete maravilhoso, abundante mas breve. Essa atitude dava-lhe o sentido da urgência, da festa, do encontro. Não era para fazer volume. Era para obrigar a matéria a pagar o imposto que deve à elevação espiritual, que resulta de alguns, muitos, todos se possível, se encontrarem num ritual de amizade. Em segundo lugar, a condição terrena. Nada do que é humano lhe era estranho. A transcendência pode esperar pela eternidade. O António Pedro não tinha tempo para isso. Cada dia tinha um sabor de último. Não o percas, diz ele. Agarra-o sem complexos ou falsas moralidades. Ninguém te vai perguntar por onde andaste ou por que chegaste atrasado. A questão é outra: que fazes tu da vida enquanto duras? Andas de pé, de cabeça erguida, ou vais a Fátima de joelhos, a cumprir uma promessa de suborno? Trabalha, meu filho, acredita na terra, se queres provar um pouco de alegria. Por fim, a bondade, a dádiva, o tempo disponível e o que for preciso, para nos sentarmos à mesa. A mesa é a solidariedade, os outros, amigos e inimigos. E não se precisa de um mandamento de caridade oficial, para distribuir gestos, sorrisos, verdades quotidianas, que até podem ser pequenas mas têm de ser frontais.
Quem é o António Pedro? É o amigo que deixou de vir no vento. Já não volta à confeitaria. Nem a este site. Não voltará a Matosinhos. Mas ele dura enquanto durarem as práticas que fazem da vida um lugar apetecível. Ele arrefeceu, porque duas balas o atravessaram: a argila da matéria corpórea e a solidão astral que governa o universo. Os céus perdidos é a tristeza ontológica de não termos pai, um Deus atento que à hora da morte nos disponibilizase qualquer continuidqade, que não fosse fabricada pelo homem. Não temos pai mas temos a grandeza de sermos "o menino da sua mãe". Isto é, a vida é a condição do amor. Trazemos uma criança no fundo do coração, Alguém disse que somos todos meninos enquanto tivermos mãe. Talvez fosse mais justo afirmar que somos meninos enquanto formos capazes de amar, de acreditar, de inventar gestos, palavras novas, um olhar novo por sobre a fragilidade insustentável da vida.
Meu bom amigo, tão jovem, em rigor que idade tens agora? Tens a eterna juventude de esperares num recanto de confeitaria um improvável encontro, num céu nublado e triste, a escorrer melancolia numa vidraça.