Este post do Aventino levantou-me da modorra em que bocejava frente ao computador.
Sempre o Aventino, o saudavelmente provocador.
E aqui vou eu.
Haverá diferença entre interior e exterior?
Serão o mesmo ou haverá túneis ignorados entre eles?
Serão espelho um do outro?
Qual deles será o mais importante?
Existirá um interior e um exterior?
Interior ou exterior a quê ou a quem?
Poderíamos filosofar até ao tédio final. Nego-me a inutilidades.
Mas, como estamos em maré de citações, aqui vão duas que muito aprecio e muito me têm orientado ao longo dos dias. Ei-las:
“É por dentro das coisas que as coisas são.” (Sebastião da Gama)
“O essencial é invisível aos olhos.” (Saint Exupéry)
Vem isto a propósito do exterior com que os tais “do Seminário” foram acompanhar o que restava do seu amigo (o exterior dele?). E éramos 25… Les Misérables.
Destes 25, pelo menos 5 (que me lembre) acompanharam o interior do nosso amigo. No hospital. Lá onde o interior se vai desfazendo e um aperto de mão, com palavras quentes prometendo próximas lampreiadas e favadas, representa o que de mais belo, sincero e importante há no mundo que se adivinha cada vez mais distante através da janela que se fecha escura logo que as visitas vão para casa… e o silêncio cai como granito. Alguns daqueles 5 Misérables (ou todos?) saiam com lágrimas a assomarem-se ao exterior borbulhando a partir do tal interior.
Eles… sem gravata preta. Sem fato ao rigor. Com o fado que canta: “Quando eu morrer, rosas brancas/ ninguém mas venha of’recer.”
Que frágeis e curtos são os nossos dias e noites.
O pó cobrirá as nossas vestes.
E o vento levantará o pó sobre as lápides do tempo.
Dos nossos tempos.
15 horas. Março. Igreja de Santo António das Antas. Porto.
Dos longos silêncios se ouvia tudo. Aves sobrevoavam. Vozes surdidas surdiam sentimentos, "os meus sentimentos" repetidamente. Aqui e ali lágrimas contidas, flores, sinos vazios, o momento já não espera a morte. A um canto uns, noutro canto outros, AAR´s como se fossem saídos do Les Misérables de Victor Hugo ou das catacumbas do Fantasma da Ópera. Triste a nossa figura em momento solene,
(e os padres, do alto da Quinta da Barrosa, "o exterior reflecte o interior"),
AAR´s de camisa aberta, os casacos e os Kispos desbotados, calças enrodilhadas, séculos de ferro de engomar sem por ali passar, sapatos conspurcados, sujos, envergonhando alguns outros que também são AAR´s e souberam estar à altura da nobreza que o momento impõe.
"O exterior reflecte o interior" e a barba por fazer, os olhos enxarcados, o cabelo desgrenhado. Triste a figura em dia de despedida.Que alma nos corre? desiludida, vazia, miserável? Como poderemos dizer que somos REDENTORISTAS, filósofos, teólogos, poetas, escritores, advogados, intelectuais elevados á categoria de imortais, se passeamos esta triste figura exterior de abandonados do desencanto?!
(Ensinaram-nos que é preciso respeitar os vivos e honrar os mortos ou qualquer outra coisa assim ou o seu contrário!) Ou não ensinaram?!
Quando a missa acabou, aportámos à porta da igreja. O sol inclinado perturbava o olhar. Ao portão havia pessoas, gente acumulada, diálogos. Um grupo destacava-se:
maltrapilhos, velhos, em cavaqueira de café como se o momento fosse de cavaqueira de café.
"Arrumadores de carros nesta hora"? alguém disse ao meu lado, surpreendido pela visão do número que compunha o lote. Não, respondeu outrem. São do Seminário. E fez-se novamente silêncio.
Quando eu morrer quero ver-vos assim, de novo. Para que vos possa dizer "queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável"?(Fernando Pessoa), Levanto-me do caixão, pego nas moedas que ali me deixaram para pagar ao barqueiro e dou-vos. Haverá sempre algum adeleiro por ali perto.
Um pouco mais de luz e eu era belo;
" um pouco mais de sol - eu era brasa". (Mário de Sá-Carneiro)
BARROSAL IV /Cartas a um Amigo que Não Vem no Vento
No plaino abandonado
que a morna brisa aquece,
de balas traspassado
- duas de lado a lado-,
jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
alvo, louro, exangue,´
fita com olhar langue
e cego os céus perdidos.
Tão jovem!, que jovem era!
(Agora, que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
um nome e o mantivera:
"o menino de sua mãe".
F.Pessoa (CANCIONEIRO)
Estou sentado na confeitaria dos combatentes. É o céu do Porto, baço e triste. Uma neblina baixa e algum frio sugerem o conforto matinal de um galão e uma torrada. Cheguei cedo, muito cedo para os hábitos que pratico. Fui dos primeiros clientes a entrar. Procurei um recanto, recortado contra uma vidraça nublada. Mesmo não chovendo, eu senti a chuva a atravessar os vidros e a molhar-me a vida toda, como se eu andasse à chuva desde Vila Nova. A minha defesa, a minha gabardina, o meu chapéu de chuva é um caderno obssessivo, agora mais pequeno, que guardo no blusão. Ponho-o na mesa, como se o fosse usar. Não o usei, esperei que me servissem e fui olhando distraidamente para a manhã, que assim crescia. Pessoas que entram, que saem, que falam baixo, que não falam e apenas fazem tempo. Olhei mas não vi nada. Fiz tempo triste, como se o ar anunciasse para breve uma qualquer dor estranha e incómoda. No entanto, sobravam-me razões para gostar de estar ali, num ócio novo e lento, esperando por um encontro. No extremo oposto, alguém me procura sem me ver. E alguém me vê sem me procurar. E foi assim que esperámos sentados, cada qual com a sua distracção. A ponto de nenhum de nós ter levado telefone. Quando vou pagar, vejo pelas costas o António Pedro, que já se pirava em direcção incerta. Corro para ele, berro-lhe o nome e ele vira-se: "Ó boa, onde é que te meteste?", vociferou. Demos um abraço, rimo-nos de nós próprios e procurámos o meu carro. Ordens claras e indiscutíveis. "Em frente e logo à esquerda! Depois é só andar." Fomos rezar a um santuário de Matosinhos, junto à praia, onde é um dos devotos mais fiéis. Chegou e disse: "a dieta do costume!" A dieta foram três horas infinitas. As últimas, para o meu lado. Quando nos despedimos, o dia estava ganho, éramos contentes e nada sabíamos do futuro. Nem tempo tivemos para falar de melancolia, isto é, da neblina do Porto, mesmo quando não chove. Mas ainda me perguntou: "escreveste alguma coisa? Dormiste com a gaja?" Não escrevi, não dormi com ninguém mas ri-me até às lágrimas. A sua alegria contagiava e transformava em sol qualquer gota de chuva que assomasse nos olhos.
Do António Pedro falarei, por imperativo de consciência. Evitarei os elogios, porque ele não os suportava. Em cada elogio, há uma infidelidade à mais pura amizade da terra. Evitarei também qualquer forma de avaliação, porquanto rejeito liminarmente qualquer papel de juiz. Dele direi três coisas, extraídas dos actos da sua vida, por me ter sido possível conviver com ele nos últimos cinco anos. Primeiro, a alegria. A breve história referida mostra como ele bebia e comia a vida, como um banquete maravilhoso, abundante mas breve. Essa atitude dava-lhe o sentido da urgência, da festa, do encontro. Não era para fazer volume. Era para obrigar a matéria a pagar o imposto que deve à elevação espiritual, que resulta de alguns, muitos, todos se possível, se encontrarem num ritual de amizade. Em segundo lugar, a condição terrena. Nada do que é humano lhe era estranho. A transcendência pode esperar pela eternidade. O António Pedro não tinha tempo para isso. Cada dia tinha um sabor de último. Não o percas, diz ele. Agarra-o sem complexos ou falsas moralidades. Ninguém te vai perguntar por onde andaste ou por que chegaste atrasado. A questão é outra: que fazes tu da vida enquanto duras? Andas de pé, de cabeça erguida, ou vais a Fátima de joelhos, a cumprir uma promessa de suborno? Trabalha, meu filho, acredita na terra, se queres provar um pouco de alegria. Por fim, a bondade, a dádiva, o tempo disponível e o que for preciso, para nos sentarmos à mesa. A mesa é a solidariedade, os outros, amigos e inimigos. E não se precisa de um mandamento de caridade oficial, para distribuir gestos, sorrisos, verdades quotidianas, que até podem ser pequenas mas têm de ser frontais.
Quem é o António Pedro? É o amigo que deixou de vir no vento. Já não volta à confeitaria. Nem a este site. Não voltará a Matosinhos. Mas ele dura enquanto durarem as práticas que fazem da vida um lugar apetecível. Ele arrefeceu, porque duas balas o atravessaram: a argila da matéria corpórea e a solidão astral que governa o universo. Os céus perdidos é a tristeza ontológica de não termos pai, um Deus atento que à hora da morte nos disponibilizase qualquer continuidqade, que não fosse fabricada pelo homem. Não temos pai mas temos a grandeza de sermos "o menino da sua mãe". Isto é, a vida é a condição do amor. Trazemos uma criança no fundo do coração, Alguém disse que somos todos meninos enquanto tivermos mãe. Talvez fosse mais justo afirmar que somos meninos enquanto formos capazes de amar, de acreditar, de inventar gestos, palavras novas, um olhar novo por sobre a fragilidade insustentável da vida.
Meu bom amigo, tão jovem, em rigor que idade tens agora? Tens a eterna juventude de esperares num recanto de confeitaria um improvável encontro, num céu nublado e triste, a escorrer melancolia numa vidraça.
Boa noite a todos,
Antes demais, quero agradecer-vos, umas vez mais e em nome da minha família, todas as vossas palavras e todos os vossos gestos que tiveram connosco.
Serve o presente, para lhes enviar o meu comentário para a vossa próxima palmeira tal como foi falado.
Então aqui vai em baixo o texto:
Felizes somos todos aqueles que te lembramos...
Tantas cartas rompemos e dominó jogamos. Rimos e choramos sem nunca nos zangarmos. Juntos, fomos sonhando e muitas coisas celebrando. Inseparáveis e inquebráveis! Amor, amor cego! Passamos a fronteira e ousamos descobrir, o que agora são lembranças. Foi tão bom e inesquecível, mas com toda a certeza que, um dia destes "doutor"...voltaremos. Pedro Peinado Jr -"Netão"
Quanto a vocês todos, resta-me mandar-vos um grande abraço e dizer-lhes: Voltarei, em breve!
Pedro Peinado Jr
Não me é fácil falar do Peinado porque a tristeza e o sentimento de perda de um amigo "tão amigo" não me ajudam nem me parecem bons conselheiros para escrever seja o que for com a dignidade e a grandeza que ele merece.
Conhecemo-nos e tornámo-nos logo amigos nos idos de 1955. Em 1958, por alguma razão ( ou sem razão alguma ), o Peinado foi "expulso" da Quinta e essa separação fez com que só nos tornássemos a reencontrar 50 anos depois. Mas os anos que seguiram o reencontro foram muito fecundos, agradáveis, gratificantes e compensadores.
Não vou falar das qualidades do Peinado pois elas eram tão bem conhecidas e seria fastidioso enunciá-las. Foi um homem que sorveu a vida na sua plenitude e nunca teve vergonha de o fazer. Foi amigo do seu amigo. Foi um homem frontal que nunca deixou de dizer o que lhe ía na alma.
Todos ficámos mais pobres mas sobreviveremos com a recordação de um companheiro que marcou, nos últimos anos, a vida dos seus amigos e a da AAAR.
Finalizo com dois pequenos apontamentos:
E quero partilhar a minha dor com a família do Peinado e, em especial com a Dª Mimi, pois, se nós perdemos um amigo, ela perdeu o marido, o companheiro de toda uma vida.
Sendo a perda tão recente, imagino que o nosso Peinado ainda está aqui ao meu lado e para me despedir dele nada melhor que dizer-lhe:
ATÉ BREVE , COMPANHEIRO.
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