2015-05-10
alexandre gonçalves - palmela
BARROSAL VI -Orbacém, Onde os Deuses Pernoitam Sossegados
Não gosto das palavras fava nem favada. Foneticamente, agridem-me a audição. Mesmo depois do Eça as ter convertido em música, humor e desejo, nem assim encaixam no meu escrupuloso vocabulário. A língua portuguesa é tão doce, tão feminina, que dispensa essas cascas e asperezas sonoras. No entanto, delicio-me com o "untuoso" conteúdo que o Vieira, o Manel, não o António, atribui a este petisco. Por isso, não faltarei a essa romaria já consagrada pelo uso. Provei um dia as favas de Tormes. Sentei-me entre o Jacinto e o Zé Fernandes. A moçoila convidada tinha um desenho deprimente. O andar superior tinha um rosto avinhado e um mamaçal assustador. A cintura era um desfiladeiro inquietante, a que se seguiam duas arribas fósseis intransponíveis. Como suporte de tanta anatomia, duas hastes irregulares de argila quebradiça, que a todo o momento pareciam estatelar-se no soalho. O arroz das ditas era feito de cola ou betão. Um fiasco à prova de todas as boas vontades presentes. Salvou-nos o verde ácido e gelado da quinta. Para nunca mais. Se o Eça assistisse, retirava do mercado A Cidade e as Serras.
Orbacém é diferente. É um lugar de regresso. É um cenáculo intimista, onde apetece sentar-se entre as pedras e o vento. Onde apetece dizer. Onde os olhos se acalmam do furor da cidade. Onde os deuses pernoitam silenciosos, para acordar por sobre a caruma secular dos pinheiros. Onde um rosto súbito pode encher de luz a paisagem.
Hei-de subir ao monte para te ver de longe. Para rezar a tua ausência. Para derramar sobre os morangos de maio o vinho desta brevidade. Não faltes! Vem testemunhar, com os teus sentidos activados, a simplicidade da alegria. Ou nos amamos ou estamos perdidos. O nosso futuro é o pretérito mais que perfeito. Eu fizera se pudesse. Eu amara se me deixassem. Eu até morria em troca dos meus desejos. Porque eles são maiores do que a vida.
Eu hei-de subir até Orbacém. Hei-de chamar pelo teu nome. Hei-de beber lentamente uma taça de vinho, como se bebera a tua boca de maio, quando ela era apenas feita de cerejas. Foram muitos anos de ausência. Nem maçãs, nem amoras silvestres, nem os frutos que ardiam ocultos pelos bosques. Foram anos vazios, degraus de uma escada que ninguém pôde subir. Agora, no alto deste outeiro verde, rentes a um passado que não passa, ergamos ao céu evacuado um hino de terrena e ternurenta pacificação. Já é tarde para salvarmos o mundo. Mas ainda é cedo para falarmos de amor nesses montes, de onde se avista jerusalém.