fale connosco


2015-07-13

Alexandre Gonçales - Palmela

BARROSAL IX- Extremos São os Dias do Verão

 

O retrato da senhora Marta, que o Aventino colheu nas paisagens do minho, veio criar desassossego no conventual silêncio que pratico, entre cedros e melancolia. No seu ritmo quebrado, nas sóbrias mas atentas aparições de escrita, assumiu decisivamente o exercício da perturbação. Reconheço publicamente esse mérito, alimentado por uma escrita severa, onde não falta nem humor nem ironia. É nobre e desejável essa atitude perturbadora. Para dormir já sobra o imenso futuro que nos está reservado. Enquanto houver um pouco de luz no horizonte, não é legítimo desembaraçarmo-nos da cidade, da sabedoria serena, da noção relativa do mundo.

A senhora Marta poderá vigiar desde o terraço quem chega quem parte, nesse movimento sazonal destes dias oníricos. Ela integra a "fingida felicidade" destes lugares de passagem, onde o autor a foi escrevendo até dar este retrato. "A senhora Marta tinha uns olhos de fome, um corpo seco e uma bengala a segurá-la pela calçada abaixo", sintetiza o Aventino. A literatura tem este poder: retira as pessoas do espaço concreto e transforma-as em personagens. O salto foi enorme. O mundo está cheio de Martas tristes, que se moldam nas paisagens que habitamos. A "felicidade"geral conta com elas. Um dia são abatidas pelo desprezo, pelo tempo, pela solidão. Como árvores municipais, que se abatem para melhor fluidez do trânsito. Há-de vir um agosto qualquer, cheio de chuva e neblina. A senhora Marta já não ensinará a ninguém que está um dia maravilhoso. Isso vai doer.

Deu-me conforto esta leitura. E a perturção que lhe cabe remete para o sentido das coisas que moram perto. Uma casa vazia, onde em tempos se via luz, que se vê do terraço. Ei-la agora cheia de sombras, cheia de sons antigos. Morta até à raiz. O meu amigo António tem uma vivenda sazonal rente ao mar. Em tempos, proporcionou alegrias e festas, deixando para sempre na pele esse aroma flutuante e marítimo, que arrepia só de o lembrar. Hoje a casa está branca, está bela e apetece. Mas a vida mudou bruscamente, no verão passado. A casa agora não tem quorum. António sofre. Pede um guarda-costas que o proteja de tanta ausência. Chega inquieto, abre as portadas e estremece. Em frente, no outro lado da rua, duas vivendas de luxo morrem devagarinho. De há uns três, quatro anos para cá, nunca mais ninguém foi visto às janelas a sacudir lençóis, a pendurar roupa feminina de verão, a chegar das praias. Moravam ali casais jovens,  cheios de promessas e futuro. Chegavam amigos, acendiam canções de época, eram felizes e belos. Com sorte, não era difícil surpreendê-los, de janelas escancaradas, soltando roupas e hormonas pela rua abaixo. O António era quase feliz, só de os ver. Agora, quando abre as portadas, fica estarrecido da solidão das coisas. As rosas e as plantas do jardim secaram. As janelas fecharam mortalmente os olhos. A cor das paredes já não aguenta o iodo que sobe do mar. Lá dentro mora escuridão e frio. Que terá acontecido? Ninguém lhe deu uma explicação. Mas António julga-se no direito de a obter, porque a pouca ideia de felicidade que o habita incluía a rua e aquelas duas casas em frente, às vezes escancaradas de alegria.

Longos são e áridos os dias de ausência. O mundo é feito de relações quebradas. A vida laboral, se bem que iniba a imaginaçao e a mobilidade, tem o mérito de adiar a consciência. Criam-se hábitos, repetem-se os dias em cópias sucessivas, ganha-se dinheiro e reproduzem-se em série as ideias gerais. Tudo é previsivel. A funcionalidade está acima de qualquer suspeita. Nos intervalos pensa-se nas férias do próximo ano. O ritmo tem que ser electrónico, para garantir o emprego e os respectivos proventos. O verão chega de pressa mas em chegando as férias, tudo pára. Não havendo dinheiro, os lugares comuns rebentam pelas costuras e recebem os corpos exaustos. E os dias são longos porque os afectos são curtos. Agora há tempo para aceder à consciência. Talvez se descubra que o amor, que era tão abundante, se afogue numa pequena onda branca de circunstânia. Talvez apeteça gritar uma dor secreta que aflorou à boca. Talvez apeteça regressar a casa, ao trabalho e à morte. Tudo isto me foi dito pela Mónica, num verão distante, quando no aeroporto nos despedimos para sempre, por entre lágimas e feridas expostas. "O nosso amor é impossível", disse ela convictamente. "Porque extremos são os dias do verão", concordei.

2015-07-08

AVENTINO - PORTO

A SENHORA MARTA: No Minho, as mulheres têm um outro poder. Advém-lhes de uma compleição física marcada pelos Celtas, pelos povos da Cantábria ou por outros que, transportados em águas de mar e de rios, deixaram por esse território a sua marca milenar. Não se sabe exactamente se foi assim; o que se sabe é da força de carácter destas mulheres, do amanho do campo e da luta para o sustento dos filhos, sob uma lei imposta lá em casa que, afinal, só os mentirosos é que não admitem que a mulher manda neles. A SENHORA MARTA não tinha homem. Diz-se mesmo que nunca teve homem sem se saber se foram eles que foram arredios ou se foi ela quem impôs a si própria o império da castidade. A SENHORA MARTA tinha muito pouco: duas casas e dois campos que o "meu paizinho que Deus tem me deixou". O resto era tudo o culto à terra. Criava galinhas e coelhos, semeava batatas e milho, cuidava da vinha e tinha um inquilino que há muitos anos não lhe pagava a renda. Do terraço da sua casa, a senhora Marta vigiava a minha casa, sabia os fins-de-semana em que eu ia, as horas a que me levantava e se as peras e os damascos do meu quintal iam ser abundantes quando chegasse o dia da colheita. A SENHORA MARTA não se sabe o que é que ela comia, os ovos dava-os, as galinhas "veio um bicho de noite e sangrou-as todas" como ela dizia, e o milho, as batatas e até a vinha, outros vizinhos colhiam quando havia para colher. A SENHORA MARTA tinha uns olhos de fome, um corpo seco e uma bengala a segurá-la corcovada pela calçada abaixo. De vez em quando, levava-lhe uma posta de bacalhau, um naco de boa carne bovina e uma garrafa de vinho verde duma das Cooperativas conhecidas do Minho. Nunca vi, nem isso me constou, mas tenho a convicção que o embrulhinho bem feito com que eu embelezava a oferta, ia tal e qual e assim para o caixote do lixo que a Junta de Freguesia tinha colocado mesmo ao lado da casa dela. "Muito obrigada, menino", dizia-me ela nuns olhos, ao mesmo tempo agradecidos e sarcásticos como quem espera o virar de costas para, zumba, caixote do lixo com isto. Quando o Apoio Social da Freguesia começou a levar-lhe a comida, continuou ela muito agradecida. Recebia as senhoras com o almeiro, conversava com elas, mas todas sabiam que a senhora Marta era a mesma senhora Marta de sempre. Consta até pela localidade que a Junta de Freguesia colocou um caixote do lixo bem maior junto á sua casa para que ela continuasse a deitar ao lixo aquilo que lhe davam para a sua alimentação. Em Agosto víamo-nos todos os dias. Ela perscrutava os meus passos, a luz acesa, a janela aberta, o portão a abrir, gente a entrar em minha casa. Em Agosto o Minho é imprevisível, ou melhor, já se sabe que há nevoeiros, nortada, chuva e, de vez em quando, um ou outro dia de sol intenso. Diz-se até, por essas bandas, que o Verão vem ali passar o Inverno. Num desses dias de chuva de meados de Agosto eu disse à senhora Marta, "isto é que está um dia feio". "Feio, menino?!" "Está um dia maravilhoso", respondeu-me. E lá continuou no seu vagaroso caminhar "que esta gente das cidades não passam de uns pategos" Vem aí Agosto e, num constante repetir, lá voltarei aos mesmos lugares e aos mesmos dias de uma fingida felicidade. Mas, quando vier a chuva, já não terei a senhora Marta a chamar-me menino nem a dizer-me "está um dia maravilhoso".
2015-07-02

Francisco Cabral de Sousa - Estoril

Há muito que não vos falo. Todavia, acompanho a vida (!) da nossa Associação, consultando o "Fale connosco", sempre que venho ao Estoril. O Lamas vai-nos animando com a sua veia poética e o Alexandre com a sua onda folosófica. O "EPIGRAMA para NÓS" do Arsénio tocou-me profundamente. Merece uma atenção muito atenta. Parabéns, Arsénio.
2015-06-30

José Manuel Lamas - Navarra - Braga

 

 

 

 

                                   Porque o fradinho de Orbacém

                                    Viveu uma vida de pecado

                      O seu caminho nem calçada tem

                      E até o cruzeiro está quebrado

 

                      Mas por isso não merece ser castigado

                      Porque até foi homem de juízo

                      Pois foi por viver em pecado

                      Que viveu num paraíso

 

                      Não foi por Deus que na serra viveu

                      Foi porque ele assim quis

                      E quem como ele procedeu

                      Foi o nosso companheiro Assis

 

                      Parabéns meu bom amigo

                      Pelo teu refúgio sossegado

                      Podes sempre contar comigo

                      Quando por ti eu for convidado .

 

 

 

       E aquele abraço

 

                                Zé Lamas

2015-06-25

alexandre gonçalves - palmela

 

BARROSAL VIII- A Palmeira, os Mestres e o Verão

 

Outra vez Orbacém. Outra vez o silêncio da terra, uma ilha de luz calma, onde os deuses passeiam ao fim da tarde, entre o verde intenso da montanha e o aroma branco do verão. Outra vez vila nova, sem muros nem ameias. Passou o tempo por cima da idade, os caminhos foram imensos e dispersos, mas o mapa ficou tatuado nos recantos mais íntimos da pele. Para sempre. Vila nova não é geografia. É uma espécie de itinerário, um percurso, um trilho de manutenção. Vila nova não é uma palmeira, onde a ruína começou a roer as raízes. São resíduos de infância, dolorosas sobras da mesa parental. São remotos gritos adolescentes, que rasgavam o silêncio das noites frias, dos sonhos proibidos, do corpo interdito. É uma juventude inteira, adiada para uma eternidade fantasma. Por isso, vila nova nem morre, nem se esquece, nem se repudia. Muda-se de uns lugares para outros, segundo o itinerário possível. Feliz tansumância, que encontra verdejantes pastos nas múltiplas paisagens da imaginação.

Há uma herança espiritual e física em actividade permanente. Naquele tempo, aconteciam coisas que duravam muito. A fugacidade mundana tropeçava no latim, nas leituras, mesmo que fossem as glórias de Afonso de Ligório. O catecismo também imprimia uma lentidão insuperável e dramática. Os próprios mestres, carregados de um saber vertical e autocrático, uniformizavam sem culpa a infinita variedade do coração. A luz vinha do altíssimo, que não enganava nem se enganava. Os aprendizes do futuro, fosse ele qual viesse a ser, eram treinados como potros. Romper o cerco era perder-se tanto para o céu como para a terra. Uma tristeza secreta crescia à margem da consciência. Claro que havia mestres que falavam de esperança e de alegria. Estimulavam a indepedência do espírito. Apelavam para a criatividade e para a diferença. E havia literatura bastante para inventar um mundo por acontecer. E havia música sobeja para voar por cima de tanta melancolia. Mas tudo isso era um espaço onírico, inverosímil, sem qualquer contacto com evidências visuais. Fora de muros, passavam corpos parcialmente visíveis pelas ranhuras do salmo cinquenta. Um sufoco pedagógico, que marcava de afecto e solidariedade os sobreviventes. É isso em grande parte a fonte que alimenta a vitalidade destes encontros, de muitos outros que se fizeram, e de outros que ainda se farão.

Assim surge com uma espontaneidade surpreendente o novo encontro de Orbacém, traço de união entre uma primavera precocemente esgotada e um verão joanino que ainda arde pelas ruas do Porto. E no centro desta alegria ingénua, um amigo especial, um dos tais mestres rebeldes, acusado muitas vezes de subversão. Luís Guerreiro (que perdoe este ruído verbal, tão avesso ao seu feitio!), foi sem dúvida uma voz diferente. A sua palavra era feita de excepção, onde o dizer e o fazer vinham de dentro e por isso coincidiam. E por isso tinham consequências. Não era forçoso que se concordasse com ele. Mas era inegável que ali havia um projecto, uma convicção, e um compromisso radical com a realidade. O divino Espirito Santo nem sempre lhe terá iluminado as decisões. Era demasiado humano para aceitar de ouvido imposições extraterrestres. E por isso era um educador, isto é, exigia de cada discípulo que extraísse do fundo de si próprio o ouro que lá houvesse. Chama-se a isso crescimento. Ou melhor, uma região autónoma. Como quem, ao cultivar uma horta, não só colhe os frutos da terra, como até encontra diamantes. É por dentro que se nasce. O fora é consequência. Só nessa relação dialéctica, em que o dentro e o fora, o eu e o outro, se unem ontologicamente, será possível encontrar um sentido para a existência. Haja ou não haja alguém, no andar de cima, a justificar o mundo e a distribuí-lo segundo o mérito de cada um. Neste contexto, abre-se um verão novo, uma viagem para o universo, simbolizada no regresso do Luís Guerreiro e da Hirene a Brasília, onde esteticamente tecem os dias e os cuidados como obra de arte, sempre inacabada. Nessa viagem, partem também os amigos deste doce rectângulo virado ao sol e ao mar. É o verão de vila nova. É o verão que naquele tempo não havia. Viajar, partir, dar um abraço de chegada, dar outro de despedida. Entre Orbacém e Brasília, entre o passado e o presente, entre palavras e rituais, um nome, um aniversário, uma ponte por sobre toda a solidão.

 

 

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