MORRE LENTAMENTE QUEM NÃO VIAJA (Pablo Neruda)
Vá, vá lá, ruma ao aeroporto. Sim, ao fim da tarde, sexta-feira, partidas, o écran a anunciar-te os destinos. É só. Um deles e duas horas de voo. Sim, sim, é esse. Low-cost, 90 ou 100 euros e se regressares são apenas quatro ou cinco dias depois.
Já estás, já?. Os assentos têm plásticos, não reclinam e o espaço para as tuas gâmbias é curto. Que importa? Ao teu lado alguém grita, alguém tresanda a suor e, cuidado, que há marmitas mesmo por cima da tua cabeça. Podem derramar-te os restos do caldo verde, da sopa de agrião ou da feijoada. Que importa?
Tripulação! Portas em automático, diz o comandante. Motores a toda a potência e a aeronave a rodar pela pista, mais velocidade, mais velocidade e...zás, estás no ar. CARPE DIEM.
Duas horas depois, não mais que duas horas depois, "senhores passageiros iniciamos a descida, apertem os cintos, por favor e tenham atenção às indicações de cabine". Chegaste. Espera-te o automóvel alugado à operadora mesmo em frente ao terminal, carta de condução, cartão de crédito para a caução já te pediram e agora estás ao volante de um utilitário para percorreres 200 ou 300 quilómetros por um dos mais belos destinos da Europa.
Pela costa ou pelo interior?, é a tua primeira dúvida. Para o interior tens Avignon e o seu Palais des Papes, a Catedral, a ponte e toda a história de um dos lugares património da humanidade que muito nos toca sobre os interesses e os conflitos da Igreja de Roma. Ah! e o Festival D'Avignon com teatro, dança, música e artes plásticas durante um mês. Sim, sim, exatamente em julho. CARPE DIEM.
A seguir, tão próximo, como se não houvesse nem longe nem distância, Aix-en-Provence e Paul Cèzanne a abordar-te em tantos lugares como se tu e ele ali se tivessem cruzado e vivido os dias de uma eternidade possível. Também aqui em julho hás-de perder-te no maravilhoso Festival de Arte Lírica com ópera, concertos de orquestra, coros e intérpretes a solo. CARPE DIEM.
Pelo litoral?! É pelo litoral que vais?! Cassis, Bandol, Lavandou?! Isso, isso, fica por aí, Lavandou. Praias pequeninas, água quente, o mar e a montanha e o murmúrio da tua memória como única e solitária companhia. Como tudo pode ser tão simples e belo... O que importa é o momento, hás-de dizer.CARPE DIEM.
Depois, dali, quartel general em Lavandou, passeia, lentamente, para melhor namorares a felicidade. Serpenteia a costa para um lado ou para o outro. Cannes, Saint-Tropez e os iates a deslumbrarem-te o encanto. Sentado no bar azul em frente à marina de Saint-Tropez, não sonhes em partir. Tudo te é bastante neste instante. Un champagne, s'il vous plait. Non, non, pas de flut. Une bouteille. Bebe-a toda, todinha, gole a gole, até olhares o fundo da garrafa e sentires que tu e ela estão ambos felizes: ela por se livrar do peso do líquido; tu por te livrares do peso do mundo. CARPE DIEM.
E, se porventura, achares que ainda é cedo para não pedires mais nada á vida, por que não Nice, Monte Carlo e até San Remo? Mas volta, regressa rápido. Tens Saint-Paul-de-Vence para abraçar.Não regresses mais. Fica aí. Reserva um cantinho no cemitério da Ville mas recusa-te a morrer. Para que jamais alguém possa cantar-te:
"Coube-te a vida em sorte,
homem mortal e é seguro.
Que é vida a própria morte,
quando se crê no futuro"
(Luis Goes)
BARROSAL IX- Extremos São os Dias do Verão
O retrato da senhora Marta, que o Aventino colheu nas paisagens do minho, veio criar desassossego no conventual silêncio que pratico, entre cedros e melancolia. No seu ritmo quebrado, nas sóbrias mas atentas aparições de escrita, assumiu decisivamente o exercício da perturbação. Reconheço publicamente esse mérito, alimentado por uma escrita severa, onde não falta nem humor nem ironia. É nobre e desejável essa atitude perturbadora. Para dormir já sobra o imenso futuro que nos está reservado. Enquanto houver um pouco de luz no horizonte, não é legítimo desembaraçarmo-nos da cidade, da sabedoria serena, da noção relativa do mundo.
A senhora Marta poderá vigiar desde o terraço quem chega quem parte, nesse movimento sazonal destes dias oníricos. Ela integra a "fingida felicidade" destes lugares de passagem, onde o autor a foi escrevendo até dar este retrato. "A senhora Marta tinha uns olhos de fome, um corpo seco e uma bengala a segurá-la pela calçada abaixo", sintetiza o Aventino. A literatura tem este poder: retira as pessoas do espaço concreto e transforma-as em personagens. O salto foi enorme. O mundo está cheio de Martas tristes, que se moldam nas paisagens que habitamos. A "felicidade"geral conta com elas. Um dia são abatidas pelo desprezo, pelo tempo, pela solidão. Como árvores municipais, que se abatem para melhor fluidez do trânsito. Há-de vir um agosto qualquer, cheio de chuva e neblina. A senhora Marta já não ensinará a ninguém que está um dia maravilhoso. Isso vai doer.
Deu-me conforto esta leitura. E a perturção que lhe cabe remete para o sentido das coisas que moram perto. Uma casa vazia, onde em tempos se via luz, que se vê do terraço. Ei-la agora cheia de sombras, cheia de sons antigos. Morta até à raiz. O meu amigo António tem uma vivenda sazonal rente ao mar. Em tempos, proporcionou alegrias e festas, deixando para sempre na pele esse aroma flutuante e marítimo, que arrepia só de o lembrar. Hoje a casa está branca, está bela e apetece. Mas a vida mudou bruscamente, no verão passado. A casa agora não tem quorum. António sofre. Pede um guarda-costas que o proteja de tanta ausência. Chega inquieto, abre as portadas e estremece. Em frente, no outro lado da rua, duas vivendas de luxo morrem devagarinho. De há uns três, quatro anos para cá, nunca mais ninguém foi visto às janelas a sacudir lençóis, a pendurar roupa feminina de verão, a chegar das praias. Moravam ali casais jovens, cheios de promessas e futuro. Chegavam amigos, acendiam canções de época, eram felizes e belos. Com sorte, não era difícil surpreendê-los, de janelas escancaradas, soltando roupas e hormonas pela rua abaixo. O António era quase feliz, só de os ver. Agora, quando abre as portadas, fica estarrecido da solidão das coisas. As rosas e as plantas do jardim secaram. As janelas fecharam mortalmente os olhos. A cor das paredes já não aguenta o iodo que sobe do mar. Lá dentro mora escuridão e frio. Que terá acontecido? Ninguém lhe deu uma explicação. Mas António julga-se no direito de a obter, porque a pouca ideia de felicidade que o habita incluía a rua e aquelas duas casas em frente, às vezes escancaradas de alegria.
Longos são e áridos os dias de ausência. O mundo é feito de relações quebradas. A vida laboral, se bem que iniba a imaginaçao e a mobilidade, tem o mérito de adiar a consciência. Criam-se hábitos, repetem-se os dias em cópias sucessivas, ganha-se dinheiro e reproduzem-se em série as ideias gerais. Tudo é previsivel. A funcionalidade está acima de qualquer suspeita. Nos intervalos pensa-se nas férias do próximo ano. O ritmo tem que ser electrónico, para garantir o emprego e os respectivos proventos. O verão chega de pressa mas em chegando as férias, tudo pára. Não havendo dinheiro, os lugares comuns rebentam pelas costuras e recebem os corpos exaustos. E os dias são longos porque os afectos são curtos. Agora há tempo para aceder à consciência. Talvez se descubra que o amor, que era tão abundante, se afogue numa pequena onda branca de circunstânia. Talvez apeteça gritar uma dor secreta que aflorou à boca. Talvez apeteça regressar a casa, ao trabalho e à morte. Tudo isto me foi dito pela Mónica, num verão distante, quando no aeroporto nos despedimos para sempre, por entre lágimas e feridas expostas. "O nosso amor é impossível", disse ela convictamente. "Porque extremos são os dias do verão", concordei.
Porque o fradinho de Orbacém
Viveu uma vida de pecado
O seu caminho nem calçada tem
E até o cruzeiro está quebrado
Mas por isso não merece ser castigado
Porque até foi homem de juízo
Pois foi por viver em pecado
Que viveu num paraíso
Não foi por Deus que na serra viveu
Foi porque ele assim quis
E quem como ele procedeu
Foi o nosso companheiro Assis
Parabéns meu bom amigo
Pelo teu refúgio sossegado
Podes sempre contar comigo
Quando por ti eu for convidado .
E aquele abraço
Zé Lamas
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