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2020-12-27

Aventino Pereira - Porto

SOBREVIVI 

CONTINUAÇÃO                                                                                                                                                                                                             11

A minha aldeia não mais foi a minha aldeia, já o disse. As pessoas, as poucas pessoas morujavam nos campos de lavoura de sol a sol e quando caía a noite, cansados de uma vida de nada, dormiam até antes do nascer do sol. A freima repetia-se, infinitamente repetia porque a natureza não mete férias, o gado quer penso e água, o porco queria a lavagem e a vinha dá-lhe o míldio e leva-a toda. Por vergonha, fingiam que guardavam o domingo, como dia de louvor e obediência ao Criador, mas na verdade, já nem o corpo sabia outro modo que não a moirama, nem a labuta do campo lhes tinha passado a dispensa. Ninguém falava comigo. Quando escrevo ninguém era exatamente em todos os sentidos. Pessoas não via e quando, porventura, se cruzavam comigo, ao longo do caminho por onde eu fosse ou viesse da missa, botavam os olhos para o chão, bom dia menino, bom dia, retorquia-lhes e zás, passo apressado, olhos no chão porque eu era certamente um outro ente que não um simples mortal como o resto dos da minha aldeia. Para uns, eu era o padreco, para outros eu já tinha estudos, andava limpinho, não dizia caralhadas, tinham vergonha.

Restavam-me os dias em que o correio tinha deixado os aerogramas dos soldados e as cartas de França e do Brasil dos emigrados, deixados na venda do lugar onde cada um procurava notícias dos seus parentes. Lá vinham elas, mulheres quase sempre, com a felicidade metida no bolso do avental. Senhora Maria, chamavam à minha porta, o seu filho está cá? recebi correio do meu filho do Ultramar. E sentadas a meu lado, no banco de pedra onde eu sonhava o mundo, ouviam-me tolhidas pelas lágrimas e pela dor de quem tem a morte sempre a rondar. Pausadamente, lia-lhas, criando vírgulas onde não havia vírgulas, pontos finais onde estava um gatafunho qualquer. Meus queridos pais, muito estimo que ao receberem esta minha carta estejam de feliz saúde que…. O início e o fim eram sempre o mesmo. Lá no meio, quando a notícia não interessava, eu inventava-a, mentia, criava um acontecimento feliz, “hoje fomos todos dar um passeio até um rio que passa aqui e é muito bonito. Faz-me lembrar o ribeiro da nossa aldeia e a propósito como estão as videiras, e as oliveiras? e as mães continuavam a chorar, inebriadas com as mentirolas que, instantaneamente, lhes inventava. As cartas dos namoros tinham que ter outro cenário. A noiva já não chamava pela minha mãe, trupava à porta com os nós dos dedos, a minha mãe vinha ver quem era e elas sorriam-lhe, rasgado sorriso do enamoramento que haveriam de encontrar escrito no escrito que queriam ouvir. A minha mãe chamava-me, filho, está aqui uma menina, e eu já sabia para o que era. Fazíamo-lo um pouco acima de minha casa, saídos do caminho, por baixo de uma velha oliveira onde eu “sestei” tantas vezes no verão e era a única oliveira daquelas leiras onde ninguém, até então, se teria enforcado. Dali ouvia-se o som das águas do ribeiro pra os braços do mar, o chilrear dos pássaros, a brisa e o vento a bulir com as árvores, o som que só o som tem e elas aninhadas por sob os ramos da oliveira, extasiavam-se com as minhas mentiras. “Minha adorada e bela noiva”, era uma das minhas frases que lhes faziam estalar as lágrimas. “Como eu queria tanto acelerar o tempo e partir já para os teus doces braços”, era outra das minhas invenções, e elas, está mesmo isso aí escrito? sim, sim, assim mesmo, e quando a coisa já era mais adiantada e a namorada pensava em casamento, que mal havia em deixá-la sonhar? “Estarei à tua espera no altar da nossa igreja para te tornar minha mulher, logo, logo que regresse ao nosso Portugal”, rematava eu. O meu sucesso era tal, que também me encarregavam de dar a resposta. Ponha aí também coisas bonitas, como ele me manda, ponha. E eu escrevia: “vivo todos os dias mergulhada na beleza do teu olhar”, funcionava muito bem, “sou tua e serei sempre tua como a terra é do sol”, poético, não é, e só outra mais, “vem, meu adorado noivo, vem muito rapidamente, para vivermos felizes para sempre”, era a mentira kitsch com que terminava. Foram os meus anos da adolescência em favor de quem não sabia escrever nem sabia ler, mentindo às almas, para não mentir ao corpo, num tempo e num lugar onde não havia cães, não havia gatos, nem mancos ou deficientes, nem ladrões nem malandros. Afinal, não havia nada. Nada, daquilo que pode dar outra imaginação à vida.

Quando botei corpo, o meu corpo já não me deixava a serenidade para enganar as noivas com belas palavras. O meu corpo tinha medo das mulheres, como os gatos nos roubos furtivos, uma pata a fanar a sardinha e a outra pata pronta para se pisgar. Quando o meu corpo já pedia, elas continuaram a descer a ladeira, bater à porta e esperar que a bondade e a malícia de minha mãe me piscasse o olho para que eu lhes lesse as cartas que, cada vez mais, vinham de onde os soldados portugueses matavam turras e de onde operários portugueses moiravam de trabalho e apodreciam no bidonville de Champigny-sur-Marne.

As mães não olham, mas veem; as mães não escutam nem bisbilhoteiam mas tudo ouvem mesmo o que jamais produziu algum som. Dizem que a “fémina” é dotada de mais um sentido que o resto da humanidade, chamando a esse resto da humanidade, o homem. Dizem também que os sentidos femininos partem da conclusão para a premissa, do que querem que seja, para o facto que constroem, como quem vê uma mulher a esgueirar-se da porta de uma automóvel á meia noite de um dia de inverno com chuva e conclui que foi á missa das vésperas ou como quem  vê um chaparro num monte do Alentejo e diz-nos logo que se o monte está ali e o chaparro também, é porque essa mesma mulher ali se vem deitar a essa mesma noite em que alguém a viu a sair de um cabriolet numa noite de inverno. “Toma cuidado com o homem de um só livro”, diz-nos São Tomás de Aquino mas o que é certo é que a História esqueceu-se de considerar a mulher, na sua perfídia e também no resto, sendo esse resto àquilo tudo que não sabemos. Pode alguém conhecer uma mulher? “Sim; outra mulher”, ter-nos-ia dito São Tomás de Aquino se no século treze da era de Cristo a mulher já fosse tida como mulher. O que importa é que a minha mãe espreitava-nos, sem que eu jamais soubesse se era apenas curiosidade pelo filme que tinha à sua frente ou se era receio que o seu filho, ali mesmo, diante dos seus olhos, a trocasse por outra, por outra mulher, a quem nunca as mães reconhecem a pureza para receberem tamanha dádiva.

A velha oliveira lá nos acolhia, eu encostado de um lado do seu tronco e a ansiosa noiva do outro lado do mesmo tronco. E continuávamos ambos a fingir: eu que lia o que vinha nas cartas e ela que estava muito interessada no jovem que a viria resgatar ao mundo da desesperança para a fazer bela e rica por terras de além mar ou além Europa. Mas quando a minha voz engrossara, a barba cobrira a cara e o corpo mostrava as formas de um corpore sano, os olhares delas eram bem mais atentos do que os ouvidos. Como que se lhes ouvisse o pensamento, como se em todo o risinho delas viesse toda a astúcia feminina, já tinham percebido que o padreco mais dois ou três anos bem lhes poderia dar um futuro de abundância.

Lembrava-me então das aulas de biologia e de ciências naturais: olhem para a selva e quem é o mais belo: o macho ou a fêmea? E porquê? Porque, na selva o que importa não são os genes delas, o que importa são os genes deles, são eles quem garante a continuação da espécie, e ali estava eu relembrando estas lições como se, de repente elas me tivessem tornado adulto. Eu vou fazer os votos, sabes, entregar-me-ei ao sacerdócio, repetia-lhes, mentindo a mim e mentindo a todo o desejo que me assolava a serenidade. Maldita oliveira, bendita oliveira ali continua como se não houvesse tempo que por ela passasse, visito-a e encosto-me outra vez ao seu tronco, refastelo-me em dias quentes e conversamos, como se me perguntasse como foram todos estes anos que passaram e eu como se lhe quisesse responder. O rapazito que aqui leu cartas e aerogramas, morreu e as raparigas que se encantaram com palavras inventadas também morreram, somos outros, uns sem memória e outros sem quererem recordar. Só tu, oliveira, continuas igual, não envelheceste,

Nós, oliveiras não envelhecemos; quando nos cansamos, morremos diretamente como se obedecêssemos a uma ordem imposta pela natureza. Num instante renegamos a seiva, a água, a luz do sol, o poente e o nascente e preparamo-nos para a morte. No dia seguinte já não somos oliveiras, cansadas que estamos da vida como quem claudica nas suas peregrinações. Depois, mirramos, secamos, serviremos de lenha para a lareira, para aquecer o forno ou para móveis para as cozinhas. Aqui continuo à tua espera, diz-me a oliveira, quem sabe se um dia também te cansas e morres nos meus ramos. Quem sabe se o meu destino oliveira é mesmo ser oliveira como as de cima, da leira de cima, acolher no meu ato de vida, a morte enforcada no ramo mais forte do seu caule. E depois? E depois esperar-te, para morremos juntos, como juntos temos vivido.

                                                                                                                                                                                            

2020-12-23

António Manuel Rodrigues - Coimbra

Caros confrades, para quantos combatem o bom combate e permanecem na Fé, desejo-lhes um santo Natal.

Para todos, eu incluído, desejo que estes próximos tempos sejam de saúde, a quanto baste e baste, também, a força ou a resignação necessárias para ultrapassarmos esta difícil situação.

Tende ainda paciência e permiti que vos diga: nestes últimos tempos tenho sentido uma sincera e leal empatia para com os egípcios do tempo de Moisés.

Tenham sido sete ou dez as pragas do Egipto, foi muito o sofrimento. A mim, que nada sei de maiêutica nem de hermenêutica, alguém me poderá ajudar a compreender esta narração bíblica? Não me dirijo insolentemente a Deus, dirijo-me aos homens actuais que, com algum saber, interpretam estas narrações escritas pelos homens de então.

Se me chegar alguma ajuda, agradeço-a, se estou a ser incorrecto peço compreensão.

Passai bem, irmãos.

2020-12-23

ANTONIO GAUDENCIO - LISBOA

Tenham calma porque a minha intervenção vai ser curta e visa, apenas, fazer uma pequena correção ao pensamento do Zeca Afonso que citei  no meu texto anterior.

Por isso, onde se lia aquela coisa sem nexo que lá pespeguei, deve ler-se « Nem tudo o que digo penso e nem tudo o que penso digo ».

 

2020-12-22

Gaudêncio - Lisboa

Já vimos que o Aventino sobreviveu e que o Pe Faustino se finou mas, entre estes dois actos de vida, surgiu, no site, supostamente escrito por um ex-colega cujo apelido é Vilas Boas, um texto deveras interessante que me intrigou um pouco.

Apesar de umas quantas expressões típicas nos quererem convencer que o autor vive no Brasil, alguns momentos do texto exibem uma ironia fina,   "queirosiana " que me pareceu familiar e muito própria de uma certa pessoa conhecida. 

A minha memória já foi mas, mesmo assim, dificilmente aceito não me recordar de tal Vilas Boas nos corredores da Barrosa, pelo que, mesmo correndo o risco de ser desmentido, de ser injusto e outras coisas mais, para mim, o texto, excelente texto,  deve a sua paternidade ao nosso muito querido e estimado  amigo, Adolfo José de Barros Esteves Pereira, o nosso Adolfo, que tem o privilégio de " andar pastoreando ", pelas faldas da Estrela, um rebanho de ovelhas e solidões.

Só lamento, meu caro Adolfo, é que, apenas de quatro em quatro anos, surjam textos teus. Podias ser mais generoso e encurtar os prazos ?............ É que nós precisamos de coisas destas para ir sobrevivendo..........

Citando o Zeca (Afonso ) quero-vos dizer que : "nem tudo o penso digo nem tudo o digo penso" mas espero não estar enganado no que afirmei nem estar perante um fenómeno igual ao que nos surpreendeu, há uns anos atrás, com um célebre interventor chamado «J. Marques» que nos intrigou meses a fio.  

2020-12-21

José Manuel Lamas - Navarra - Braga

     

 

 

 

                           Após muito tempo esquecido

                          Eis que retorno afinal

                          Para fazer o que é devido

                         Desejar a todos feliz Natal 

 

 

                              Abraço .

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