2015-06-25
alexandre gonçalves - palmela
BARROSAL VIII- A Palmeira, os Mestres e o Verão
Outra vez Orbacém. Outra vez o silêncio da terra, uma ilha de luz calma, onde os deuses passeiam ao fim da tarde, entre o verde intenso da montanha e o aroma branco do verão. Outra vez vila nova, sem muros nem ameias. Passou o tempo por cima da idade, os caminhos foram imensos e dispersos, mas o mapa ficou tatuado nos recantos mais íntimos da pele. Para sempre. Vila nova não é geografia. É uma espécie de itinerário, um percurso, um trilho de manutenção. Vila nova não é uma palmeira, onde a ruína começou a roer as raízes. São resíduos de infância, dolorosas sobras da mesa parental. São remotos gritos adolescentes, que rasgavam o silêncio das noites frias, dos sonhos proibidos, do corpo interdito. É uma juventude inteira, adiada para uma eternidade fantasma. Por isso, vila nova nem morre, nem se esquece, nem se repudia. Muda-se de uns lugares para outros, segundo o itinerário possível. Feliz tansumância, que encontra verdejantes pastos nas múltiplas paisagens da imaginação.
Há uma herança espiritual e física em actividade permanente. Naquele tempo, aconteciam coisas que duravam muito. A fugacidade mundana tropeçava no latim, nas leituras, mesmo que fossem as glórias de Afonso de Ligório. O catecismo também imprimia uma lentidão insuperável e dramática. Os próprios mestres, carregados de um saber vertical e autocrático, uniformizavam sem culpa a infinita variedade do coração. A luz vinha do altíssimo, que não enganava nem se enganava. Os aprendizes do futuro, fosse ele qual viesse a ser, eram treinados como potros. Romper o cerco era perder-se tanto para o céu como para a terra. Uma tristeza secreta crescia à margem da consciência. Claro que havia mestres que falavam de esperança e de alegria. Estimulavam a indepedência do espírito. Apelavam para a criatividade e para a diferença. E havia literatura bastante para inventar um mundo por acontecer. E havia música sobeja para voar por cima de tanta melancolia. Mas tudo isso era um espaço onírico, inverosímil, sem qualquer contacto com evidências visuais. Fora de muros, passavam corpos parcialmente visíveis pelas ranhuras do salmo cinquenta. Um sufoco pedagógico, que marcava de afecto e solidariedade os sobreviventes. É isso em grande parte a fonte que alimenta a vitalidade destes encontros, de muitos outros que se fizeram, e de outros que ainda se farão.
Assim surge com uma espontaneidade surpreendente o novo encontro de Orbacém, traço de união entre uma primavera precocemente esgotada e um verão joanino que ainda arde pelas ruas do Porto. E no centro desta alegria ingénua, um amigo especial, um dos tais mestres rebeldes, acusado muitas vezes de subversão. Luís Guerreiro (que perdoe este ruído verbal, tão avesso ao seu feitio!), foi sem dúvida uma voz diferente. A sua palavra era feita de excepção, onde o dizer e o fazer vinham de dentro e por isso coincidiam. E por isso tinham consequências. Não era forçoso que se concordasse com ele. Mas era inegável que ali havia um projecto, uma convicção, e um compromisso radical com a realidade. O divino Espirito Santo nem sempre lhe terá iluminado as decisões. Era demasiado humano para aceitar de ouvido imposições extraterrestres. E por isso era um educador, isto é, exigia de cada discípulo que extraísse do fundo de si próprio o ouro que lá houvesse. Chama-se a isso crescimento. Ou melhor, uma região autónoma. Como quem, ao cultivar uma horta, não só colhe os frutos da terra, como até encontra diamantes. É por dentro que se nasce. O fora é consequência. Só nessa relação dialéctica, em que o dentro e o fora, o eu e o outro, se unem ontologicamente, será possível encontrar um sentido para a existência. Haja ou não haja alguém, no andar de cima, a justificar o mundo e a distribuí-lo segundo o mérito de cada um. Neste contexto, abre-se um verão novo, uma viagem para o universo, simbolizada no regresso do Luís Guerreiro e da Hirene a Brasília, onde esteticamente tecem os dias e os cuidados como obra de arte, sempre inacabada. Nessa viagem, partem também os amigos deste doce rectângulo virado ao sol e ao mar. É o verão de vila nova. É o verão que naquele tempo não havia. Viajar, partir, dar um abraço de chegada, dar outro de despedida. Entre Orbacém e Brasília, entre o passado e o presente, entre palavras e rituais, um nome, um aniversário, uma ponte por sobre toda a solidão.