2015-09-15
alexandre Gonçalves - palmela
BARROSAL XI - Vila Nova de Setembro
É bom estarmos atentos ao rodar do tempo
O outono por exemplo tem recantos entre
dia e noite ao pé de certos troncos indecisos
cercados um por um de sombras envolventes
Ruy Belo
Entrei em setembro com melancolia. O verão foi uma doce miragem, rente ao mar, rente aos corpos sem nome, rente a um tempo que foge, sem nada que o domine. Que força é esta que tão subtilmente nos leva para lado nenhum? Como se já fôssemos póstumos a nós próprios e de certo modo fora de prazo. Como os consumíveis, à espera de reciclagem. Um dia acordei com raiva. É preciso resistir, é preciso ter pressa como toda a gente. Meter-se no carro, acelerar até poder, integrar pacificamente uma fila e admitir de antemão que não haverá estacionamento. Fiz tudo, encavalitei o carro entre calhaus, caminhei como um paregrino e por fim estendi a toalha. Apanhei sol, apanhei ondas, acendi desejos sem utilidade e adormeci. Depois abri um livro, mas não ultrapassei as primeiras linhas. Inquieto e tardio, afiz-me ao regresso e tive pena de mim. Agosto já não me pertence. Virei-me para os fidelíssimos animais, mondei ervas e lembranças e perdi-me em pequenas viagens.
Setembro antecipou-se ao calendário, com uvas e figos, algumas caminhadas pelos campos e algumas nuvens de betão no céu do sul. Foi então que reconstituí aquela viagem de cinquenta e sete, a primeira da minha vida. A carreira chegou, roncando cancerosa e medonha. Nunca tinha recebido um beijo, não tinha nenhum para dar. Havia pessoas curiosas à despedida mas eu fugi. Não que tivesse para onde fugir, mas tão só para não ficar. Ajeitei-me ao banco, não olhei para trás, acho que alguém chorou mas eu não quis ver. Quem foge é porque tem medo. O medo era única força que me empurrava. Medo de ficar, medo de partir, medo de me chamar Rui. Quando a aldeia se perdeu na montanha, aliviei os censores e comecei a ver coisas tremendamente novas. A que me arrepiou pele e coiro foi o comboio. Parecia uma cozinha imensa, botando fumo por todos os lados. As máquinas, de tão negras, e puxando uma cousa tão comprida, gelaram-me o sangue nas veias. Só me acalmei quando me assentei num banco de madeira, brilhante e sólido, com pessoas finas muito contentes e duas raparigas da minha triste idade. Riam-se muito, meteram-se comigo, acharam piada ao sotaque das beiras. O pior era que elas eram demasiado bonitas para eu as não levar comigo para vila nova. Por lá andaram muito tempo, até eu perceber que elas eram absolutamente proibidas.
Era setembro, fazia uma chuva lânguida e mole, uma espécie de poeira húmida, que só molhava os sentidos e o coração. Por fora, a roupa mantinha-se bastante seca e aceitável, para os meus hábitos de consumo. Mas descobri com alegria que pelas janelas da camarata não se via a minha aldeia. Nem a neve que fazia pelo natal e ficava nos rostos e nas mãos até maio. Nem as brutas pedras que emolduravam a infância. Até posso afirmar que enquanto outros mastigavam dores maternais, eu apascentava um rebanho de pequenas alegrias. E não tarda que eu descubra lá dentro a minha mãe, a minha prima e mais que tudo a primeira namorada. Uns chamavam-lhe solfejo e eu rimava tudo com desejo. Outros diziam melodia, harmonia, polifonia. Eu dava-lhe o nome da maria, que era assim que se chamava a pastora com quem eu misturava o meu gado e os dedos cheios de cerejas. Quando integrei o coro, já não foi para cantar mas para gritar e chorar de alegria. A música prendeu-me por dentro. E eu perdi a liberdade inútil de querer sair. Mesmo depois de estilhaçar a vocação em sucessivos fragmentos, tantos quantas as vezes que tropeçava no esplendor do mundo.
A vida tem doze meses. Cousa pouca para a importância absoluta que os pregadores teimavam em atribuir-nos. Gastámos muito tempo a ser meninos. Mesmo depois de termos ficado sem mãe.Em abril, começamos a ser belos e desejados. É aí que entramos em fusão e perdemos os direitos adquiridos. A individualidade nascente tende a fundir-se e a confundir-se em gestos gerais e comuns. Mas a esperança mantém-se viva e actuante. Há ainda um tempo de recuperação dos caminhos perdidos. Setembro abre o outono e mostra os frutos e as colheitas. Sobra agora um intervalo flutuante conforme o jeito e o destino. A biografia está a aproximar-se dos últimos capítulos. Começámos em setembro e regressamos a setembro, à praia da madalena, à chuva sobre coimbrões, ao céu de vila nova, cor de chumbo. Temos de estar atentos ao tempo que agora roda violento, sobre um passado que ainda não passou.