fale connosco


2016-01-09

AVENTINO - PORTO

A MORTE SAIU À RUA NUM DIA ASSIM (Zeca Afonso, o querido Zeca Afonso)

CAPÍTULO PRIMEIRO                         

Vem-nos a notícia da morte. GERMANO NETO. Seminário, Palmeira e Avé-Marias.Ninguém se lembra do ANTES. O que foste antes de morrer, o que foste? Com que angústia esconjuraste a perda, com que dor?! Os braços da tua mãe, os teus irmãos e um lugar, aquele lugar de uma aldeia rural que te abraçou aos primeiros gritos do nascer. Com que dor se foi fazendo a vida se não à espera deste dia de morte!

Conheci GERMANO NETO há vinte e cinco, trinta anos. Advogados que éramos, combatentes pela justiça e pela verdade, encontrámo-nos muitas vezes em tribunais, nesses lugares fingidos de justiça; nós lutávamos pela dignidade do HOMEM; os tribunais portugueses nunca lutaram por nada.

Nem eu nem ele sabíamos dessa palmeira, do seminário, de uns padres e de um passado comum. Nem ele soube alguma vez que eu fui aquele puto enfezado e escanzelado, um dia encarcerado num dos mais belos lugares do silêncio, nem eu sabia que ali estava à minha frente um outro Redentorista, sem redenção. Mas, na verdade, os valores da nossa comum matriz ali estavam todos: a lealdade, a cultura, a dignidade e um qualquer sentir que voava para além do confronto dos homens. E eu honrava-o, na mesma dimensão, nesta grandeza de termos bebido num qualquer rio desaguado por esses lados de Cristo-Rei. Elevação, pureza, verdade e lealdade pautaram-me sempre no confronto da minha vida profissional.Com GERMANO NETO, ambos lutávamos pelo mesmo valor da humanidade: não pela justiça, valor dos homens, mas pelo justo.

O percurso de GERMANO NETO foi de molde a que há muitos anos jamais o tivesse encontrado na barra dos tribunais. A áurea de GERMANO NETO deu-me a saber, num dos recentes encontros da AAAR que, esse homem, advogado por Vizela/Guimarães, um tal GERMANO NETO, também tinha andado por este Seminário que, ainda que ténuamente, ainda nos une. AH!, exclamei. Sim, Tem sentido, sim. O sentir da grandeza. A morte dele não extingue NADA. Apenas o transforma em perenidade.

CAPÍTULO SEGUNDO

Encontrei por estes caminhos da vida, uns outros que tiveram o nosso comum passado. Os mais novos recordam-se dos mais velhos; os mais velhos fingem recordar-se dos mais novos:

Ah!, sim, sim, lembro-me de ti; jogavas bem à bola, cantavas bem ,oh! desenhavas! e aquele dia em que o padre te apanhou a espreitar as criadas?!

(Memórias construidas, verdades maquilhadas de felicidade. triste a nossa sina de não termos sina!)

Capítulo Terceiro

Um dia, no meu gabinete de advogado, a minha secretária, fala-me: está ao telefone um senhor que diz que andou consigo no Seminário!. Oh! passe, por favor, passe! És tu Aventino, do lado de lá do telefone?! Sim, sou. Eu sou o Castro, andei no Seminário contigo, lembras-te?!. Sim, sim, lembro-me bem (e eu sem qualquer imagem dele, tantos anos passados, tantas terapias que fiz para esquecer esses tempos de perda, tantas memórias de dias felizes e dos amores da minha mãe, do meu pai e dos meus irmãos, tantos dias que tinham sido ...e tudo era como se estivesse a nascer naquele instante). Sim, sim, Castro, claro, tu eras...Eu era do terceiro ano e tu do sexto ano... diz o Castro. oh! memória, pára, não queiras as minhas lágrimas! 

Capítulo Quarto

 Nestes anos que já lá vão, encontrei tantos outros AAAR'S nos meios judiciais. Advogados, procuradores, juízes. Quando, eu ou eles nos reconhecíamos com o nosso passado comum de meninos de sacristia, oh! cairam as barreiras, as formalidades,as honrarias do senhor doutor para cá, o senhor doutor para lá, e imperou sempre a grandeza dos grandes homens que somos os saídos de Cristo Rei.

Mas. como no melhor dos rebanhos e no melhor pano, lá vem sempre alguém que merece o nosso desprezo: um menino, fingido de juiz de direito, mais novo no Seminário, trabalhou muito comigo. Eu, como advogado; ele sentado no palanque do tribunal no lugar para o qual a sua dignidade nunca lhe deu passaporte. Ele conhecía-me bem. Ele sabia que tínhamos sido redentoristas em Cristo-rei. Eu, nem memória nem sinais dele na Quinta da Barrosa (aliás, quero confessar que adquiri, há muitos anos, um chip que instalei no cérebro para eliminar a voz e a imagem dos medíocres e, esse chip, àparte a mudança da pilha, é um instrumento de extraordinária utilidade e que recomendo. Compra-se nos berços, na família, no pensamento, à beira dos caminhos onde se forma o caráter).

Esse menino que também foi parar à BARROSA, jamais revelou que me conhecia, que tinha sido um menino de coro como eu, que tinha bebido essa dádiva dos Redentoristas. Socorreu-se do meu prestígio e da minha qualidade de advogado para o patrocínio de um seu familiar direto, foi juiz em muitos processos judiciais em que eu fui advogado, cruzou-se comigo em muito corredores dessas instituições mas jamais revelou que eu e ele tínhamos cruzado as mesmas fraldas de Cristo Rei. Vim a sabê-lo há muito pouco tempo, em conversa informal sobre esse tal menino, conhecido por uma alcunha que, na verdade, lhe faz juz e encaixa no seu caráter.

E eu, tristemente triste, aqui me confesso:

a morte saiu à rua num dia assim.

 

2016-01-05

manuel vieira - esposende

Faleceu estes dias o nosso colega Germano Monteiro Carneiro Neto que faria no próximo dia 19 sete dezenas de anos.

Natural de Pedrados, concelho de Santo Tirso, era advogado, exercia em Vizela e residia em Guimarães.

Alguns colegas souberam pelo jornal de Notícias, outros por solidariedade de classe e a notícia correu.

O Germano, ou Monteiro como era conhecido, entrou na Barrosa em 26.08.1958 e não participava nas atividades da Associação, pelo que não o conheci.

Foi colega no ingresso do Diamantino, Pedro Barreira, do Laurindo, do Álvaro Gomes, do Lontro, do Arsénio entre outros .

Era notado pela qualidade da sua voz e o Alexandre faz o elogio também a essa particularidade no belo texto que partilhou, sendo mais tarde conhecido como exímio no fado de Coimbra, cidade onde se licenciou em Direito.

Pena que não tenha partilhado connosco algum do seu tempo ...

2016-01-04

alexandre gonçalves - palmela

 

BARROSAL XVII - Carta a Um Amigo que Foi no Vento

(Não perguntem a um pássaro que não canta se morreu. Ele está pendurado discretamente no mais frágil ramo do bosque, aguardando a primavera. Ele teme o caçador furtivo. E não suporta o alarido dos rafeiros, quando ladram atiçados pelos donos. Ele prepara a voz para cantar no mês de maio. No silêncio treinou a leveza e acredita que ainda vai voar.) 

Amigo Germano

Soube hoje que te demitiram. A Ordem confiscou-te a carteira profissional, a que tudo te autorizava, como beber, voar, correr nas margens dos rios do norte. A que te permitia regressar ao choupal de coimbra, abrindo de par em par as portas do coração. Retiraram-te das causas todas. E até das canções. Mas a memória é mais forte. O silêncio cobriu o teu nome de neve e sombra. Mas nós vamos buscar a tua voz de menino de viena. Vamos ouvi-la a subir contra o tecto das catedrais, enrolada nas volutas dos capitéis. Depois vamos senti-la em jeito de cascata, a derramar-se sobre a nossa idade proibida. Tu eras a nossa glória, sempre adiada. Anos mais tarde, já a tua voz passara de divina para humana, pediste-me para cantar contigo a tua canção. Era um concurso geral. Eu teria de fazer uma segunda voz, na minha miserável condição de "tenor"de aviário, que, segundo ele, daria um efeito surpreendente. Quando, depois de um ensaio, nos ouvimos num gravador de serviço, eu comentei, não, Monteiro, nem morto. É a minha reputação de cantor que fica desgraçada para sempre. Como veio a acontecer, por outras razões semelhantes. Não me lembro mais de ti, Monteiro, porque o teu canto te absorve todo, naquela melancolia húmida e pardacenta de vila nova.

Em rigor, não sabemos quase nada sobre ti. Porém, a tua glória de cantor divino e a auréola que te envolveu fizeram de ti um nome que guardámos com respeito e uma estima inesquecível. Alguns de nós fizemos disso um segredo colegial. Chegam-nos rumores, apenas rumores, alguns envolvidos em círculos vermelhos, desenhados por inteligências superiores, que até distinguem o bem do mal. Nós, os que pisámos aqueles jardins perfumados, nós, as virgens mal dormidas, que apenas tinham sono quando o seu Senhor chegava, nós tivemos acesso a essas noções. E soubemos ao vivo o que era o bem e o que era o mal. Muito cedo te retiraram da nossa companhia. Foi com certeza a tua primeira demissão. Juntámo-nos na praça e esperámos por ti. Passámos perto da tua casa e chamámos-te. Tu tiveste medo. Não apareceste. O teu nome era dito e desejado. Deves ter pensado que nós estávamos do lado deles. Puro engano, teu e nosso. Teu porque não te aproximaste. O que aliás até se percebe. Nosso, porque demorámos muito a entender a fraude e não te procurámos suficientemente. Primeiro fugiste para coimbra, espalhando a tua canora voz, pelas baladas do choupal. Terás derretido sem culpa o coração feminino da cidade. Depois já és doutor e colas-te à justiça mais injusta dos nossos costumes. Aí reina a sombra e a definitiva distância. Nunca mais ninguém te viu. Soubemos agora que a ordem, a Grande Ordem te demitiu do simples direito de ires ao café, ao rio, a vila nova. Perguntei ao teu filho Guilherme como foram os teus últimos dias. Que foram serenos, disse ele, muito afáveis, como quem viveu e amou sem remorsos. Apenas uma irónica melancolia, a de já não poder cantar na próxima primavera.

2015-12-30

manuel vieira - Esposende

Amanhã, dia último do ano, vamos "botar o ano velho fora" numa tradição que movimenta algumas dezenas de miúdos de caras enfarruscadas percorrendo as ruas da vila com uma "carrela" em tempos usada no transporte do sargaço e com o mais leve em cima, trauteando "e bota o ano velho fora e venha o novo cá para dentro, tralaralaralara".

Percorrem as ruas da vila e lá vão pedindo uma moedinha enquanto entoam a cantiga e andam até ao finar da luz do dia. Dantes paravam nas tascas para abastecer ...

O Reencontro dos Anos Velhos é no Largo dos Peixinhos e tem um Juri para avaliar a graciosidade e arte de cada grupo e há uma classificação com bons prémios.

Esta é uma tradição que se vai presenvando na sede do Município de Esposende e lembra a minha meninice.


"Botar o Ano Velho fora" é uma bela tradição e desejar um bom ano aos bons amigos também enche o coração.

Para todos os que me leem, os desejos de um Ano Novo cheinho de tudo que é bom.

 

2015-12-28

A. Martins Ribeiro - Terras de Valdevez

Amigos e companheiros, estamos quase a encerrar mais um ano - 2015 - ao qual eu nunca pensei que havia de chegar, porém, assim Deus o quis e a mim só me resta dar-Lhe as mais humildes graças. Estou aqui a expressar a minha admiração pelo "Natal" do Rodrigues, igual ao do meu tempo e que muito nos toca e pelos magníficos versos do Lamas, cada vez mais elaborados e profundos. Aproveito para vos maçar com um conto de Ano Novo que escrevi em tempos e que, gostosamente, resolvi partilhar com todos vós; leitores de sofá ou não. Desculpai lá o incómodo. Bom Ano a todos.

***

O CIGARRO DA ETERNA JUVENTUDE

Mal a vermelhidão do ocaso se esbateu, aquele valhacouto infernal começou. Só se ouvia o estalar de bombinhas, o silvo estridente de gaitas e apitos, os berros esganiçados das súcias que flanavam pelas ruas e a cacofonia horrenda de canções entoadas a destempo e sem compasso por gargantas enrouquecidas:

— Morra o Velho! Viva o Novo!

Ao que logo de seguida o rumor abafado de outro grito longínquo respondia:

— Viva o Novo! Morra o Velho!

Estava prestes a findar mais um ano. Mas que terá isso de extraordinário? Perguntareis vós outros.

Para a maior parte das gentes pouco ou nada tem de especial tal acontecimento, a não ser a espantosa notícia de foguetões interplanetários. Contudo, para outros, também muitos, isso poderá fazê-los precipitar num abismo de euforias tolas e inconsequentes. Para mim significa sempre mais um ano a encurtar a distância que me separa da morte e do Infinito, desse Além misterioso que não é feito de lua nem de sol, suponho que também não será de trevas e ranger de dentes. É sempre, facto inegável, mais uma etapa vencida na caminhada para o derradeiro fim duma mocidade que passa e não se pode recuperar mais, duma vida intermédia que não é velhice mas ilusão de ser moço e realidade de ser quase velho. Igualmente para mim é também e sob outro aspecto o avanço da ciência, o espanto com as notícias de proezas sem igual, realizadas no Firmamento sem fim, onde as estrelas vão perdendo a sua poesia e o seu encanto e se nos apresentam como Novos Mundos para onde em tempos não muito distantes poderemos ir fixar residência, não misteriosamente como para esse Eterno Pais onde é suposto correr o leite e o mel, mas com realismo e como quem vai morar para o barulho de uma grande cidade ou para o descanso e paz duma imensa e inacessível montanha.

No entanto, isto de ser velho ou novo, de ser moço ou caquéctico, não depende muitas vezes do corpo mas sim do espírito que pode ser sempre jovem. O corpo é o invólucro, o disfarce, o guarda-roupa deste teatro da Vida e com que nos vamos ataviando para a representação dos diversos papéis que nos cabem na comédia, farsa ou drama da existência.

 

****

Francisco estava sentado no seu quarto, meditabundo e aborrecido, como sempre. Parecia vergado sob o peso de uma ideia fixa e contínua, maligna e aterradora. Tinha ares de velho, malgrado andar na casa dos vinte e poucos anos. Passava grande parte do seu tempo a magicar, concentrado ou distraído e pensava muito, sem ser poeta, diga-se.

Mas... em que pensava?

Lá fora continuava o estralejar das bombas e dos foguetes e a algazarra de energúmenas criaturas entrava,em flagrante contraste com a sua atitude, pelas janelas do aposento. O rapaz, remetendo-se então a um deambular atarantado, parava de vez em quando e gesticulava irritado:

— Raios! Diabos! Que me deixem, que me deixem!

E cerrava os punhos, indignado.

Num desses momentos, porém, abriu-se a porta do quarto e por ela entrava o seu amigo Cândido, sempre alegre e folgazão. O que havia a mais de tristeza num, era compensado com alegria no outro. Mal entrou atirou- lhe logo com esta proposta:

— Francisco, esta noite não vens ao baile?

— O quê? Murmurou este fazendo um trejeito de indiferença. Já me deixei de flostrias e mesmo estou velho para isso.

Encostou-se à cómoda e cruzando os braços deixou pender a cabeça sobre o peito.

Cândido riu-se com a maior franqueza de alma:

— Mas, que raio de mania tu tens! Velho, tu velho? Escuta, não ouves?

Apontou para a janela e as vozes das rusgas berravam cada vez mais decididamente:

— Morra o Velho!

Francisco descruzou os braços, fez um gesto de indignação e despeito, objectando:

— Mas... esta gente terá perdido o juízo?

Saberá ela o que diz e o que quer? Se soubesse, por certo não gritaria dessa forma. Está a pedir que passe mais um ano, ansiosa e impaciente, não atingindo, por via da cegueira dos folguedos, o malefício da tão insensata petição. Depois, mais tarde, quiçá venha a lamentar esse tempo que não voltará nunca mais. Um ano passa rapidamente, Cândido, e depois seguem outro e outro; por isso eu fico triste quando ouço pedir que passe mais um ano, tão triste que me sinto velho só de pensar em tal, só em imaginar a rapidez com que amanhã, num breve amanhã, serei verdadeiramente velho e decrépito. Estou velho, crê, até já tenho alguns cabelos brancos. E sabes? Eu não acredito na juventude. Quando não se tem alegria, amor, ideais, também não adianta ser-se jovem. Todos me dizem:

—“Estás velho, Francisco!”

Que queres? E sabes porque não acredito na mocidade? Imaginei sempre a juventude como um sonho que nunca iria terminar, um sonho lindo onde somente existissem alegrias e folguedos, risonhas esperanças. Ora encarando bem o panorama da vida, esta quenos oferece? Nada mais do que tristezas! Por isso, a mim a mocidade não deixa o perfume das suas gratas recordações restando-me, apenas, a entrega ao conformismo da minha desilusão!

Tornou a fitar o soalho, emudecendo. Ambos permaneceram calados por momentos trocando, ao mesmo tempo, rápidos e desencontrados olhares. Logo de seguida, contudo, Francisco prosseguiu:

— Não, vai tu sem mim, Cândido. E para que vieste sequer, não sabias já do meu feitio?

— Mas tu vens, Francisco, tu é que vais vir comigo, insistiu ele. Tu é que tens a mania que és filósofo e vives atormentado por esses tolos pensamentos. Ora, ora, todos esses teus conceitos são casmurrices e reflexões idiotas. Se todos encarassem a Vida como tu, mal andaria o mundo. Toda a gente sabe que esta vida é breve, eu também o sei, que a juventude passa como um ai, mas que adianta torturarmo-nos, magicando nessa fuga alucinante? Enquanto somos jovens devemos aproveitar a nossa juventude e depois, sendo já mais maduros, devemos igualmente cumprir o nosso papel que esse tempo nos desti-na. Ou tu julgas que eu tenho medo de cabelos brancos, de rugas na pele, de mazelas próprias dos anos que já passaram? Nada disso! Dessa forma serei sempre um rapaz adaptado, e mesmo agradecido se o meu tempo for o mais dilatado possível. O resto são filosofias e maluquices banais. Deixa-te de partes imbecis, vem divertir-te, dançar, vem glorificar a juventude enquanto ela dura. Esta é como o dinheiro, só tem valor quando é movimentada, quando gira. Os avarentos são seres repulsivos que prejudicam a sociedade onde vivem e tu também estás a ser avaro da tua juventude, estás a guardar no arcaz da tua alma esse magnífico capital da tua mocidade que amanhã ficará irremediavelmente desvalorizado e terás, dessa forma, defraudado a sociedade e a ti mesmo. Tolo. Não vês que nem esse pecúlio podes conservar, quer o  movimentes, quer o aferrolhes?

— Juventude? Replicou Francisco, não será tudo uma falsa juventude? Creio que não passa tudo, sim, de uma falsa juventude. Ademais, já não me sinto com idade de andar entre crianças!

— Tu é que não passas de um falso velho teimoso, entendes? Tu és jovem, Francisco, e não deves amarrar a beleza da tua juventude com a cadeia de sugestões malignas. Ama, ama qualquer coisa. Amar é apanágio da gente moça e se um velho for capaz de amar, esse não será mais um velho, pois quanto maior ou menor for o seu afecto na mesma proporção será o seu grau de juventude. A alma é eternamente jovem e o coração nunca perde o viço da mocidade. Tem isso como certo. 

Agarrou-o pelo braço e puxou-o:

— Anda, não sejas bacoco. Sabes quem vai também? A Elisa, homem, é um deslumbramento de mulher; e tu não morrias pela Elisa? E que fizeste para a conquistar?

Francisco, embora pouco convencido, vestiu no entanto o sobretudo, apagou a luz e seguiu-o.

****

Bastantes pessoas enchiam já a sala de baile. Sentavam-se as damas à volta esperando que algum cavalheiro as convidasse e viam-se já alguns pares a rodopiar fogosamente  enquanto a orquestra se esmerava em ritmadas harmonias. A pouco e pouco, porém, o salão foi enchendo, animando, até ficar a abarrotar de gente. O entusiasmo e a alegria eram semelhantes a uma espécie de loucura.

Cândido não esperou sequer um momento. Deixou o companheiro com cara de bajoujo encostado a um canto e embrenhou-se no reboliço do baile. Dançou sempre, durante longos períodos, sem descansar sequer. As serpentinas enleavam os corpos e as almas, enroscando-se nas pernas, no pescoço e no peito das parelhas. Ninguém estava triste, nem velhos, nem novos, somente Francisco encostado à porta de saída, distraído e inerte, mãos enterradas nos bolsos das calças, ia observando o ambiente como sendo aquele entusiasmo e doideira da juventude um desatino e um desperdício.

Tudo seria jovem se, no meio de tanta gente moça, mostrando com exuberância e prodigalidade o caudal de uma invulgar alegria, não dançasse um velho, mas um velho que saltava, que ria, que rodopiava sem descanso. Poderia dizer-se, com toda a propriedade, que morava nele uma falsa juventude.

Ao vê-lo de chofre, Francisco remirou-o, sacou as mãos dos bolsos e atentou nos seus meneios e nos seus gestos. O raio do velho parecia feito de molas.

Fez-se um intervalo, a orquestra calou-se, os músicos foram molhar as gargantas, outros entraram na  assentaram-se simplesmente para descansar. O falatório, contudo, não cessara. Murmúrio e rumor misturados com estoiros de garrafas de champanhe. Entretanto, Cândido voltou para junto do companheiro, bateu-lhe nas costas e perguntou:

— Então, Francisco, estás melhor? Tens uma cara!

E riu-se com satisfação. Mas Francisco, apontando o velho que continuava a gesticular como um  doidivanas, inquiriu interessado:

— Sabes quem é aquele sujeito?

— Não, não sei... mas espera.

Interrogou um amigo que passava, acenando com o queixo:

— Quem é aquele tipo?

— Segundo há pouco ouvi dizer por aí, parece que lhe chamam o Dr. Neanias; ninguém sabe de onde veio nem como apareceu aqui no baile. Também afirmam que é mágico.

Ambos se benzeram esgazeando os olhos:

— O quê? Santo Nome! Cruzes, sume-te diabo!

— Vamos ter com ele, Francisco? Propôs Cândido.

E pegando-lhe no braço, ambos se dirigiram ao falado Dr. Neanias. 

Ao contrário do que tinham imaginado, este recebeu-os com a mesma imperturbável e comunicativa alegria. Sem mais delongas ou cerimónias, Cândido quis saber:

— Diga-me, caro amigo: a que atribui essa invulgar e aparente boa disposição, esse viço e esse vigor numa idade que, normalmente, já não permite tais bravatas, raras mesmo em plena juventude?

O velho riu ainda mais, com um rir escarninho e cínico. Virou-se para distribuir um dos seus muitos galanteios a uma linda moça que lhe tocara com a fímbria do vestido e depois continuou:

— Estão os meus amigos a insinuar, porventura, que eu sou velho? Eu, velho? Quem pode afirmar que eu sou velho? É a primeira que ouço! Olhe... velho é este seu companheiro!

E apontou Francisco que, instintivamente, recuou uns quantos passos, amedrontado. Porém e tomando subitamente uma atitude mais séria, prosseguiu:

— Sabem, o segredo da minha juventude é muito simples. Conheci, quando era jovem como vós, um certo velho assim alegre como eu sou hoje. Ele era mágico e fez-me mágico a mim também.

— Então você sempre é mágico? Inquiriram os dois em uníssono.

Imperturbável, retorquiu:

— Sim, aprendi com ele certas habilidades, mas a mais sublime magia que consegui fixar na memória, a maior de todas as suas artes mágicas era a de fazer com que uma pessoa nunca envelhecesse.

— Pois você é capaz....ia dizer Francisco:

Não o deixou terminar:

— Claro que sim, meu rapaz.

E dando-lhe uma palmadinha em cima do joelho encostou-se para trás na cadeira, rindo de novo escarninhamente por entre baforadas de fumo:

— Olhe; eu sei muito bem qual é o seu mal! Mas vou dar-lhe um remédio, descanse. No entanto e antes de mais nada, devo dizer-lhe o seguinte: para se ser sempre jovem e possuir a alegria da juventude basta não pensar nunca no futuro, rir nas horas menos boas, embora isso nos custe, mentindo mesmo à nossa consciência e fingindo perante quantos nos rodeiam um riso de felicidade, um riso contínuo e franco, rindo sempre e criando a sugestão de que tudo o que acontece não passa da peripécia de um romance ou de uma peça de teatro, divertir-se nas horas de  alegria, esquecer as preocupações como sendo ninharias escusadas e amar, amar sempre alguma coisa, possuir um ideal que devemos procurar continuamente atingir. Porque tudo é uma questão de ânimo. A juventude não é atributo do corpo mas sim do espírito e do coração. O amor é próprio da mocidade, as ilusões, a loucura, a ousadia e o sonho só nas almas jovens se encontram em toda a sua pujança e plenitude e nelas encontram guarida. Em contrapartida, todo o velho que tiver ainda ilusões, amar e for louco, esse não será velho, vos afirmo. Dos velhos só fazem parte as recordações, sinal de que já viveram bastante. 

Estavam os dois pasmados deste arrazoar do velho e suposto mágico que, entretanto, e torcendo-se de lado para tirar do bolso do colete um amarrotado maço de tabaco, extraiu dele um único cigarro. Era um cigarro um tanto amarelecido o que demonstrava ser já um cigarro antigo. Após este gesto, o Dr. Neanias tomou novamente o fio do seu discurso:

— Bem... já que foram meus amigos e bons companheiros, eu vou oferecer este cigarro àquele que mais dele está a precisar. Esperei muito tempo por este momento de o poder entregar à pessoa certa; não tenho qualquer dúvida de que a encontrei e é bem real aqui na minha frente.

E apontou Francisco que olhava, curioso.

— Isto foi-me legado pelo Mestre de quem vos falei. Deu-me um maço inteiro deles e com sorte para você ainda me restava este. Os outros fizeram tantos jovens quantos era o seu número porque, segundo Ele me disse, possuíam o condão de deixar eternamente jovem todo aquele que fumasse algum deles ao soar a última badalada da meia noite de S. Silvestre, na condição, porém, de cumprir os conselhos que há pouco lhes enumerei.

Dito isto, estendeu o cigarro ao estupefacto rapaz:

— Amigo, tem esta soberana ocasião, não a deixe fugir. O que me preocupa é duvidar de se você compreenderá o significado do valor desta oferta e a importância do privilégio que lhe é concedido; vou acreditar que sim!

Tomando uma atitude séria e transcendente, prosseguiu:

— Creia que lhe dou toda a minha riqueza, toda esta alegria e juventude de espírito, tal como o Mestre, quando me entregou o maço de cigarros, me avisou:- “tens aí toda a fortuna da tua vida até á morte. Por isso te garanto tudo o que afirmei e to ofereço. Mas guarda sempre um cigarro para ti, nem que seja um só. Se os deres ou esbanjares, darás tudo o que possuis e outros não haverá mais.” Ora eu já estou cansado desta alegria e desta juventude pois creiam, amigos, tudo cansa nesta vida, até a própria felicidade e, se bem que devemos morrer contentes e joviais de espírito é, no entanto, bom que morramos. Vim a este baile para ver se encontrava alguém a quem pudesse dar o último dos meus cigarros mágicos e quando o vi entendi logo que me viria procurar, pois o meu amigo reunia todas as condições para receber essa dádiva; não me enganei. Acredite que lho ofereço com toda a generosidade e com todo o prazer. Pegue!

E estendeu-lho uma vez mais.

Francisco, incrédulo e desconfiado, não fosse o velho ser um tolo, hesitava em aceitar. No entanto, os seus olhares cruzaram-se com os de Cândido e do Dr. Neanias, notando neles uma velada aprovação e uma sinceridade de tal natureza que não poderia ser falsa ou irreal. O mágico velho, percebendo a desconfiança  do jovem, insistiu:

Não tenha medo, fume e não deixará de me dar razão. Adeus, amigos, foi um prazer!

E sem dar sequer aos dois moços tempo de reagir às sua palavras, o mágico Dr. Neanias, desconhecido e misterioso, soltando grandes gargalhadas, perdeu-se no meio da multidão dos dançarinos. Cândido ia correr atrás dele quando Francisco o agarrou pela ponta do casaco:

— Tens aí lume? Meteu a mão no bolso e, apressadamente, ao cair mesmo nos braços de uma elegante dama, estendeu-lhe uma caixa de fósforos:

— Já são poucos mas podes ficar com eles todos.

Rodopiavam os circunstantes e falavam, berrando algumas vezes. Os músicos da orquestra que tocavam instrumentos de sopro suavam em bica por via de acentuado calor. Cada vez a folia era mais intensa. De repente, porém, tudo se calou. Nesse momento, lá fora, na torre de uma igreja, soou então, sonora e esperada, a primeira badalada da meia noite. Francisco, perplexo, olhou ainda uma vez mais para o cigarro mas, maquinalmente, levou-o aos lábios que lhe tremiam. Outra badalada e outra, vibrante, compassada. Tremendo sempre, abriu a caixa, riscou um fósforo, disposto a acender o cigarro; mas bailava-lhe nos lábios agitados e o fósforo apagou-se. Quinta, sexta, oitava, décima badalada. No auge do nervosismo riscou outro lume e, na precisa altura em que batia a derradeira pancada daquela passagem de ano, o rapaz tirou a primeira fumaça. Ouviu-se um imenso clamor, estoiros de garrafas, fúria na música. As luzes pareciam mais esplendentes. Francisco, olhando para as filigranas serpeantes

e suaves do fumo, sentiu-se misteriosamente arrebatado pela força de uma alegria que, até esse momento, nunca tinha experimentado. Esquecera tudo e, lançando-se por entre os pares dançantes ao encontro do seu amigo Cândido, exclamava:

— A verdadeira juventude nunca morre, ri-se nas barbas do tempo.

Seguidamente, pegou numa taça de champanhe e, levantando-a, gritou com decisão:

— Que morra o Velho.... e Viva o Novo!

Ao mesmo tempo e olhando para a porta, pareceu-lhe ver sair um velhinho de longas barbas brancas, curvado e apoiado num cajado.

O certo é que, dali em diante, ao Dr. Neanias nunca mais ninguém o viu.

****

Arcos, Janeiro de 1959

 

 

 

 

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