2016-04-17
alexandre gonçalves - palmela
BARROSAL XXI - As Duas Palmeiras
Sempre houve duas palmeiras, a palmeira-facto e a palmeira-desejo. Esta dicotomia é antiga. O facto era uma palmeira alta, no esplendor da idade, ramos sem fim, utopicamente verdes, apontados para todos os futuros. O desejo estava fora daquele mítico largo, vedado por um portão sinistro e medieval, onde o corpo físico da palmeira testemunhava a solidão e a morte.
O tempo violou a inocência. Os muros foram derrubados e o portão foi removido. Por fim a palmeira envelheceu. Já nada havia para testemunhar. Ela morreu de ausência. O velho edifício, coberto de musgo e neblina, foi demolido. O largo já não tinha aquelas filas de espera, alinhadas de silêncio e oração, nas manhãs de chuva e tristeza. Ao lado era a palmeira. Em frente eram paredes de reboco apodrecido. As filas, sagradas pelo regulamento, dois a dois, como estátuas paralelas, eram mais dolorosas que os mistérios do rosário. Por esses anos, ardia lá fora o maio de sessenta e oito. Aqui, nesta redoma de granito, nenhum vento podia trazer notícias duma idade protagonista, que media forças com todos os poderes. A palmeira-facto, de tão envelhecida, de tão magoada com a falta de vida e frescura, só podia morrer. Ficou de cabelos brancos mal alinhados, soprados pelo outono, antecipando um desaparecimento inglório e funesto. Caiu sem remédio, como torre sem alicerces. Os funerários municipais removeram os detritos, como se fossem entulho, sem testemunhas nem exéquias.
Ficou a palmeira-desejo, quiçá aquela que "eu gostaria de pensar". Desde o começo dos AAARss, a palmeira não é o que se pensa, mas o que se gostava de pensar. Doutra maneira, a palmeira não é facto mas desejo. O desejo não é mais do que uma força que empurra, que apela, que realiza. E que apesar do peso da idade ainda sonha. O corpo decaiu, inclinou-se, perdeu arrogâncias múltiplas. Mas a palmeira antiga, verde e alta, mais sábia e menos inocente, permanece. É ainda muito cedo para a derrubar. Falo de afectos, de encontros improvisados, de telefonemas de aniversário, de biografias resumidas que se contam. Isto não é o face-book, que avalia os interlocutores pela quantidade de amigos de encomenda. Aqui a amizade tem tempo, tem memória, tem certificados de origem, tem pureza. Esta palmeira está cheia de gente. E esta gente não diz apenas. Ela expõe-se e arrisca-se na escrita. E é uma escrita que se cuida, que aplica sintaxes e morfologias rigorosas. Que se inquieta com o tempo, com a cidade, com o infinito do céu e a escassez da terra.
A última edição de PALMEIRA(No. 39) é mais do que amadorismo. Revela com evidência indiscutíveis possibilidades, porventura menos dadas a exercícios de manutenção do que seria de esperar. Após leitura atenta, pode-se confirmar que se evoluiu muito quer nos conteúdos, quer na expressão que os serviu. A ideia de uma decadência consumada não sobrevive a uma análise crítica dos textos. Os AAARs podem alevantar o ânimo, em cumplicidade com esta primavera a assomar-se à varanda de abril. Ainda haverá mais palmeiras, mais leitores, mais vida, mais associação, para lá das mais funestas previsões anunciadas. Fica assim claro o reconhecimento e o mérito de todos aqueles que a deram à luz. Uns deram-lhe o corpo, táctil e sensorial, metendo as mãos directamente na massa. Outros deram-lhe a alma, que, embora invisível, transforma o corpo em desejo. Outros ainda, deram-lhe razão de ser, lendo-a, comentando-a e ensaiando escritas, pois todos puderam aprender as palavras que dizem o mundo. Uns e outros deram-lhe tempo e vida. Todos têm a haver um sentimento geral de gratidão.