Uma música que me faz sentir, me maravilha, me projeta, me liberta.
Uma análise da mensagem que me seduz de todo.
Uma poesia difícil, do género do, muitas vezes premiado, nosso amigo Echevarria, que nos obriga a reler várias vezes, mas que nos compensa com a satisfação de a termos percebido.
Um obrigado por esta nova entrada em campo.
Fico a aguardar o prometido.
Um grande abraço.
Delfim.
Miserere Mei (Salmo 51)
A mim a psicologia barrosista (dos agapantos, como lhes chamo) fascina-me deveras e é fonte de estudo. Cada encontro, como o da última favada, é mesmo delicioso. Isso permitiu-me extrair algumas conclusões psicanalíticas, que algum dia passarei a escrito.
O salmo Miserere Mei é posto em causa assim tão leviana e desnecessariamente, não se vendo nele uma linha de conduta para a vida nem a muita luz existencialista que dele emana, fruto de um coração sincero e profundo. Enfim, sofre-se inutilmente, porque não se reconciliando consigo próprio, não se pode atingir aquela paz interior que apazigua o coração e o encaminha. E eu fico triste; não gosto de ver sofrer ninguém assim tão inutilmente, e tudo apenas por não se reconhecer que a nossa alma é pecadora, limitada e imperfeita, com muitas aderências descartáveis, mas ao mesmo tempo capaz de aspirar a mais, evoluir e aperfeiçoar-se, eliminar teias psicológicas, em suma: de crescer. Mas enfim… Creio que há hereges que realmente gostam de o ser. Só que ser-se herege para sempre não é bom, faz-nos masoquistas e solipsistas. O caminho da catarse e da resiliência é superior.
Sempre pensei que há heresias altamente pedagógicas e que vêm a revelar-se caminho para a libertação e evolução pessoal da consciência. Nisso meditei muito tempo. Porque, claro, eu assim pensava. Mas era eu. E ao mesmo tempo dizia cá para mim: “E Deus… o que pensará disto? Será que pensa o mesmo que eu?” E andava neste dilema até que um dia, apiedado de mim, o meu anjo me deu uma resposta desconcertante. Disse: “Deus não pensa nem raciocina. Apanha flores nos jardins da mente. E canta docemente: Eu sei que você tem um jeito quase único de Amar e de Crer. Eu sei.” E imitava-O. A canção tinha um sotaque abrasileirado, mas a melodia era tão doce, tão inominável e amoruda, como que me trespassou. Não se resiste, coisas que não mais se esquecem… E concluí: Heresias contra Deus não têm importância nenhuma. Mas as que atingem o homem (como a heresia em questão), essas sim, são malignas e não devem ser por nós aceites. Quero, por isso, deixar um pequeno contributo, para a compreensão do salmo em questão, e faço-o numa versão poética para que assim mais eficazmente possa chegar aonde deva chegar. Falta-lhe aquele ritmo salmódico tão próprio de um Inocêncio I, ou de um Gregório (de cujo nome derivou o nosso canto), mas não vá o sapateiro além da chinela. Eles eram Santos, de grande virtude e muita inspiração divina. E, apesar de Santos, foram homens de vasto saber e que muito têm a ensinar ao mundo de hoje. Daqui claramente se infere, meus caros, que a santidade está ao nosso alcance. É que Deus abate os poderosos e arrogantes e exalta os humildes. Mãos à obra, pois. A vitória será nossa! (desculpem-me tanto entusiasmo! Será do Euro?). É o que a todos desejo.
Os muitos afagos da pecadora
suplicante amanhecia
luas cheias em seu corpo
maré alta pelos caminhos
ela veio
de portas abertas até ao deserto mais fundo
ignorando preces
redemoinho de cabelos e lágrimas e afagos
a teus pés inapreensíveis chorando
ela veio
pó e becos infindos onde a alma se perdia
nas feridas onde só amor ardia
e o pensamento pára
as roupas incoerentes eram inúteis
agora que a tormenta explodia
e nela amanhecia
correndo até onde o coração em demasia latindo mais acudia
no pecado de ser assim
e assim ter nascido,
sem nenhum deus sem alma a teus pés caindo perdida
de amor cativa arfando
amanhecia.
e sabendo que ela era eu
assim de tão sem sobrevida chorando tão despida se sentiu
que chorando de Infinito perdida a teus pés expectantes
longe do mundo sorriu
e latindo amanhecia
sem vento sem culpa sem tempo
Sou um dos que admiram e apreciam esses belos nacos de prosa com que, de quando em vez, o Alexandre nos presenteia.
Nunca utilizei este sítio para trocar impressões com ele sobre os seus magníficos textos pois temo-lo feito sempre doutras formas e noutras instâncias. Mas hoje abro uma excepção e quero registar com muito agrado a mudança de registo pois este tema já não versa sobre amores perdidos, amores desesperados, amores chorosos, amores platónicos e outros mais amores. Desta vez o Alexandre ofereceu-nos um texto primoroso que vale a pena ler duas vezes pois, em cada uma dessas leituras, surgiram-me recordações e lembranças diferentes e novas que me tinham passado desapercebidas na primeira passagem.
Obrigado Alexandre e que nunca as mãos te doam para continuares a escrever.
Soberbo, genial, especial,universal, de nós e de todos tal e qual.
Crítica social, regresso às origens, melancolia, sabores de outrora, uma delicia de saudades.
Sinto-me bem.
Obrigado amigo Alex por mais este momento de felicidade.
Delfim.
BARROSAL XXVII - Outono e Melancolia
Agora sim, estamos a ficar pálidos, inclinados pelo tempo, abrindo a boca de tédio, como se tivéssemos de ouvir um político fazendo promessas. Há quanto tempo já que não sai da nossa privilegiada “cultura” uma palavra luminosa? Indiferentes à passagem acelerada dos brancos dias do verão, estamos de regresso à repetição dos anos, apanhados pelos flancos por mais um ritual inútil. Se abril nada nos dizia, se em maio nem uma flor colhemos, se em junho, julho e agosto nem um desejo levámos ao mar, que faremos nós neste momento preciso em que o outono cai arrefecido sobre a nossa cabeça de velhinhos sobrantes? Quem encontraste, meu irmão, neste café central, onde é suposto falar-se do que foi e do que ainda está para ser, porque o frágil futuro e o imensurável passado só se conjugam no presente do indicativo? A quem serve o silêncio que roubamos às palavras que nos deram? As palavras nem sempre são ruído cacofónico. Elas não são mero espelho da realidade. Elas são a realidade. Se as abandonamos, nenhum fragmento de realidade será criado por nós. O mundo da nossa rua é feito por vozes que gritam. Se a nossa caridade for uma intenção ostensivamente piedosa, visitando enfermos, consolando viúvas e pousando moedas sonoras nos peditórios, ou imitando a santa população celestial, então que haja Deus para punir a hipocrisia e a aparência.
Quero falar de um outono distante, onde a melancolia tanto tinha de encanto como de uma dor vegetal. As pálidas figueiras, sem a protecção das folhas, tremiam de frio. As vinhas punham aqueles olhos avermelhados, de terem chorado muito. A mão do homem colheu festivamente os frutos. O vento passou e agitou as folhas enferrujadas. A aldeia esvaziou-se. Foi estudar para longe. Nunca ninguém sabia onde era esse longe. Os que se retiram só tornarão a vir, se vierem, no próximo verão. Nas ruas já corre o primeiro vento de ausência e ouve-se o sino, semeando mágoas pelas paisagens. Os campos estão despovoados e as velhas casas em ruínas.
Quem ainda por lá passa é um menino que nasceu adulto. Num território imenso, fechado por uma pedregosa montanha azul. Ao fim da tarde perpassa um frio súbito e os lobos têm fome. Os rebanhos deixaram os bardos e passam a noite em palheiros. Os lobos aparecem aqui e além, numa luta desigual pela sobrevivência. Quando a fome ataca, eles respondem no mesmo registo. É assim que pensam as crianças. É assim que é contado nas histórias infantis. O menino que atravessa os campos tem medo. Há feras nas veredas, nos tufos rasteiros do mato, nos carvalhais, nos giestais, nos pinhais. E há sempre muito frio, talvez mais penetrante do que a neve. Talvez não seja frio. Talvez seja uma forma de morrer. Ou de fugir. Mas que fuga pode haver, se os montes são muralhas?
Há depois a outra face. As uvas penduradas no tecto da sala. Os figos secos, como então se fazia, polvilhados de farinha. As bicas de azeite, que os padrinhos davam aos afilhados. As primeiras castanhas, e o ouro que elas escondiam depois de assadas. A cozinha escura, iluminada pela chama do lume. A vontade sincera de regressar a casa, comer caldo de feijão e couve. Ficar ali olhando a chama e ouvindo adultos discorrer sobre a vida, com lobos e bruxas pelo meio. E as "tabornas", assadas na pedra do fogo e mergulhadas num recipiente cheio de azeite cru. Tudo somado e dividido por dois dá a média aritmética desse outono longínquo, que é precisamente a melancolia. Música em lá menor, muito melódica, cheia de breves e semibreves. Foi essa a conclusão que fui tirando, à medida que de ano para ano julgava saber mais solfejo.
Não me lembro de ter estado nesses campos, nessas outonalidades, depois de ter ido estudar para longe. Aqui neste sul, essa melancolia é música fina, pura, quase silêncio, quase piano que se ouve algures, anonimamente, em dia de chuva. E quando chove, se ruídos parasitas não me agredirem, eu bebo de alegria toda a água que flutua pelo mundo.
Quer partilhar alguma informação connosco? Este é o seu espaço...
Deixe-nos aqui a sua mensagem e ela será publicada!