2016-10-27
alexandre gonçalves - palmela
PALMELA: CÍRCULO DO FOGO 2016
Que bom! Sábado à tarde não morre
ninguém na cidade:
a agência funerária faz semana inglesa
Anda comigo meu irmão
podemos passear tranquilamente
Ruy Belo
Viajantes da vasta vida!
Saudações outonais, conforme o tempo que está passando sobre as nossas peregrinas cabeças. Quando as primeiras chuvas do sul bateram nos vidros das janelas e em directo as ouvi de noite na acústica do telhado, lembrei-me de novembro. O primeiro sentimento foi de melancolia gregoriana. Coisas como Rorate, kyries, salmos e afins. Assustei-me como se tivesse sido apanhado em distracção. A chuva do sul é tão rara mas tão cheia de ausências e de pianos longínquos!... Foi quando o círculo do fogo acordou o que restava em mim de esperança e utopia. Essa ponte que une as múltiplas e penosas distâncias. Já tudo vai ficando um pouco longe. Mas em rigor ainda é cedo para não acreditar na mobilidade. Na mesa que inventámos ao longo de vários encontros sazonais. Na doçura clássica da amizade. Afectos que resistem, até à prova de amores híbridos e outras obscuridades.
Por tão desnecessárias razões, gravo nesta pedra o selo do regresso. O paraíso talvez não seja tão habitável como prometeram. Aqui neste sul preservado, de conventual pudor, entre os bíblicos cedros e os altos muros do silêncio, há vestígios das promessas que foram retiradas de outros bem merecidos programas. Ser feliz aqui, nem que seja por um escasso gesto de passagem, não é uma oportunidade impossível. E depois de uma ausência insustentável, é legítimo esperar que o norte e o sul, o leste e o oeste, se concentrem neste círculo, comandado pelo fogo. O filho do homem não se pode distrair. O tempo já não chega para os serviços mínimos. Cada convite, selado por uma palavra comum, a mesma memória, o mesmo albabeto de iniciação, CADA CONVITE tem de ser uma guia de marcha imperativa. Sentar-se, em época de tanta urgência? Consumir lugares comuns, esgotados até ao tutano?
Viajantes! Atentos estai. No dia 12 de novembro, sábado de S. Martinho, um santo que para o ser só teve que dar a sua capa a quem teve frio, oliveira do paraíso põe mesa, serve pão e vinho, abre portão às dez, fecha no dia seguinte, canta, dança e fala. E junto ao fogo, as louras castanhas do nordeste oferecem-se como prémios aos vencedores de tão duros combates. Vinde e vede. E ao erguer a taça dos frutos vermelhos, que líquidos correm por estas ruas e campos, brindemos aos suaves laços que nos prendem. Às palavras maternas que nos exprimem. Ao futuro, que não sendo longo ainda está vivo.
Vem meu irmão da vasta terra! Bebe comigo este sábado docemente ocioso! Esta outonalidade genuinamente tranquila, feita de lentos gestos, que a longa memória preservou!!!
Nota Final
Após o demorado lenho, que a imaginação feminina cobriu de requintes finais, caminharemos em direcção ao fogo. Aqui, enquanto se humedece a voz de líquidas alegrias, seria desejável uma palavra original e colectiva. Era bom que fosse nascendo lentamente, para não improvisar um qualquer lugar comum, na hora da despedida. Era bom que no regresso às várias vidas continuasse a arder, para destruir distâncias e ausências.