2016-12-21
alexandre Gonçalves - palmla
O MEU CONTO DE NEVE
Quanto tinha dez anos, apascentava uma infância rústica, cercada por ásperos montes e medos que gelavam a espinha dorsal. Era um rebanho de inquietações, que incluía gado bovino, caprino, canino, asinino e improváveis desejos de futuro. Em fundo, uma paisagem de granito medieval, arbustos rasos e entre estes lobos esfaimados, espiando a sua oportunidade de ataque. O mundo acabava na penedia parda e musgosa, com centenários carvalhos a gritar que ali era um lugar abandonado por Deus e pelos homens. Em dezembro anoitecia subitamente, não havendo meios para distinguir o dia e a noite. Porque esta se vestia de um branco azulado e onírico.
Foi assim que no alto dos lobos, num giestal sinistro e longe de presenças humanas, aconteceu este conto arrepiante. Não havia horas, nem o som do sino, nem uma referência que identificasse caminhos ou veredas. A neve, de tão abundante, uniformizava o crepúsculo. Seria dia, seria noite, seria um pesadelo de febre mortal? Na confusão sonâmbula, um súbito som cósmico e aterrador assustou o meu cordeiro, o meu irmão, o meu amigo das horas longas em terras de mil demónios. Ele é mais branco do que a neve. Na brancura da noite, apenas o distingo pelos movimentos da fuga. Corro, grito, choro. E quanto mais grito e corro, mais ele se afunda no giestal e nas moitas. Pressinto que os lobos já o estão a esfanicar, para uma eficaz digestão do banquete. Mas eu não desisto. E já longe do universo, em noite velha, o cordeiro rende-se à minha perseguição. Como dois fantasmas, aos solavancos nas irregularidades do solo, vamo-nos aproximando do ponto onde se iniciou a fuga. O som do horror nocturno ainda se ouvia entre sombras e clareiras de neve. O gado bovino dormia calmo no caminho, como se uma ordem superior lhes impusesse a detenção. O "piloto" não arredou pé, como se em ausência de dono o comando lhe pertencesse. Uma cabrinha arisca deve ter tido tanto medo, que se aninhou entre os bois maiores.
Comovi-me com tanta bondade, que me apeteceu desistir da espécie humana e integrar-me progressivamente no reino animal. Era a noite das "filhozes", tanto de as virar na caldeira de azeite ao lume, como de as trincar ainda quentes. Olha que não é bom comê-las quentes, dizia minha mãe com boa intenção. Para mim não era bom, era óptimo. E papava mais do que meia dúzia.
Hoje neva mortalmente em todo o mundo. Tremo de frio e de raiva. Faço tudo em silêncio. A infância que eu apascento não tem desejos, nem brinquedos, nem "filhozes". Tem um gado mais dócil que o menino de belém. E uma febre delirante, mais perigosa que a loucura. Chego tarde ao curral. Prendo os animais e deito-me serenamente sobre a neve, solidária com os meus sinistros pensamentos. Peço à neve que me cubra com o lençol mais branco e luminoso que puder. Peço à neve que aproveite a circunstância para matar o menino que ali se deitou sobre a palha fria. Achei que era simples. Bastava adormecer. A febre aniquilou as últimas defesas e eu morri como um menino, que não tem direito aos dez anos feitos alguns dias antes. A morte teve dois momentos distintos. Primeiro, comandado pelo delírio, aconcheguei-me à neve que já se acumulara lá fora, entre alfaias e restos de lenha esquecida. Confesso que achei descanso na doce brandura, que se acomodava ao peso do meu corpo. O que restou de mim foi morrer lá dentro, rente ao calor animal do gado que eu apascentava. No dia seguinte, minha mãe ressuscitou-me com chá de sabugueiro e mel. E uma gota de aguardente, de efeitos milagrosos.
O meu conto de neve nada tem de verdadeiro. É apenas uma alegoria para esclarecer que é muito fácil matar um menino. Mas isso não é grave. Basta um chá de sabugueiro, com ou sem mel, com ou sem aguardente. Ele ressuscitará milagrosamente no dia seguinte.
CÂNTICO DE NATAL
(A todos os meus amigos, a todos os meninos, especialmente às meninas, que atravessam o nosso tempo sem qualquer protecção. Com infinito amor. A.)
Tu estás em casa protegida,
nem ouves lá fora o horror:
esta noite tão apetecida
nem sabe que é noite de amor.
Quem lá vem com ramos de oliveira?
Que nome tem o som que faz?
Uma voz percorre a terra inteira,
cantando cânticos de paz.
Tudo é paz no silêncio da neve,
que branco torna até o mar:
esta luz tão branca de que serve,
se não nos serve para amar?
A.G.