O MELANCÓLICO HUMOR DOS TROCOS
Uma das vantagens de haver algures um portátil, humilde e mudo, que eu coloco junto à lareira deste infinito inverno, era, até há pouco tempo, a esperança da última palavra de mais um dia a cair no calendário. Após o tardio jantar e algumas tarefas domésticas, que há vários dias aguardam a mão libertadora, vejo um pano preto no televisor. Lá fora o vento discute com os cães e com as casuarinas agitadas. O relógio já passou para os lados da uma e percebo então que mais um dia morreu no mar. E agora? Escrever, caminhar pela noite, pelos solavancos das sombras e gastar antecipadamente o dia seguinte? Um resto de prudência sugere alguma cautela. Resta-me folhear o computador, em leitura diagonal, ou atirar-me exausto para uma cama nupcial, onde as núpcias morreram antes de mim. A opção é evidente. Abro o toshiba, corro à pressa o g-mail e detenho-me no AAAR.
O primeiro dia foi surpresa. De vinte do um e um do dois, aquelas duas virgens do norte minhoto, destacadas militantes da salvação local, trocaram a nossa paciência por abruptas versalhadas, rindo-se em uníssono do silêncio colectivo. Que belos trocos nos deram! Nos seguintes dias, só já lia a palavra troco. Tinha que fugir, já sem riso, sem tolerância e, pior que isso, sem imaginação para entrar. Não porque não quisesse, mas por total incapacidade. Chamava por duas ou três palavras. Nem uma chegava a tempo. Aquele humor tem qualquer cousa de viral. E foi daí que virou melancolia. Uma página de ouro velho, aberta a cinquenta anos de caminhada, estava ali num desamparo absoluto, como se Deus desse nozes a quem apenas consome líquidos. Perguntei-me várias vezes: será que, depois do belíssimo número quarenta, já ninguém sente o que é um troco? Já ninguém se ofende? Não pelas referidas comerciantes, que entre si trocaram o que puderam. E aqueles que se dedicam ao ócio "intelectual", que devoram livros e se aborrecem mortalmente de já não terem obrigações? Como é que se deixa uma página daquelas, totalmente em branco? Quem se atreve a abandonar uma herança brasonada e não a protege contra os vandalismos e contra as lembranças vazias? E contra o frio que há nas noites que habitamos?
Se és médico, por que motivo não te curas? A pergunta só pode ser feita por quem abomina o trabalho e a leitura. E mesmo assim, sem mais justificações, cá estou eu a penitenciar-me com estes impropérios tempestivos. Não estive ausente. Não me entreguei aos doces prazeres do século. Pratico a vexante clausura mas não deixo por mãos alheias os meus cuidados.
Amigos e irmãos de viagem e destino! É suposto que a sabedoria ocorra com a idade. Estamos na linha da frente. Somos anciãos de direito, mas também somos gregos e latinos. É essa a nossa herança. Ninguém nos inventariou qualquer outra. Essa fortuna tem um território de expansão. É esta página em que vos lembro e vos digo que Oliveira do Paraíso pratica a esperança. E semeia aromas sazonais. E vos convida a virdes a este sul, onde corre mais vinho que mel, como convém à sabedoria. Talvez o mundo não seja habitável. Mas este sul não é mundo, não tem polícia, nem se ouvem tiros. É um lugar de erva, de sol, de água. e claro, do melhor vinho do mundo!!!
O troco não estava certo
Para que se acabe ás direitas
Fique o amigo informado
Que as contas foram mal feitas
E o troco estava errado
Combustível a encher o tanque
E motor novo sem avaria
Não chegam para um bom arranque
Se ao carro falta a bateria
Quando de cabelos ao vento
Vai à procura das suas damas
Ó meu amigo do peito
Que eu gosto de ter por perto
Oiça o que lhe diz o Lamas
Se o pego bem a jeito
Eu devolvo - lhe o troco certo .
Aquele abraço
Zé Lamas .
TROCO
Ironizando os meus motes
Lamas, excelso poeta
Vem duvidar dos meus dotes
Apodando-me de velho;
É errada conclusão
E uma refinada treta
Porque velho posso estar
Mas ainda não sou relho;
O Lamas é um brincalhão.
Repara bem meu amigo,
Assim como um carro antigo
Se o motor estiver bom
E for boa a gasolina
Mesmo que falhe a bobina
Vai de certeza pegar
Nem que seja de empurrão.
Segura-me aí, Zé Lamas
Não me tires o alento
Nem me metas o travão,
Pois de cabelos ao vento
Vou á procura das damas
Cheio de muita animação.
Porque estás aí parado
Feito que nem um moleque
Podes querer vir comigo
Mas tira daí a ideia
E ouve bem o que eu te digo;
Indo no meu calhambeque
E só para teu castigo
Nunca te dava boleia.
Ó grande Lamas amigo
Não faças jogo da onça,
Fica com este critério:
Afinado um carro antigo
Anda como fosse novo
E só ‘stará acabado
Quando ficar podre a lata
E a sua geringonça
Seja posta em cemitério
De um monte de sucata.
Arcos, Janeiro 2017
A ladainha do . na mira de .. de vista
No dia 17 do mês 11 do ano que findou , fomos brindados com uma bem esgalhada " Ladainha do ponto " . O seu autor , homem que já vai nos oitenta , " muito bem conservados " , fala - nos não de todo mas em parte , como se ainda navegasse nos quarenta . Ora , porque em desacordo , vem um segundo autor , que estagiando nos sessenta , nos apresenta essa mesma ladainha , como se de octogenário se tratasse
Primeiro autor Segundo autor
Vou assinar hoje o ponto Não me atrevo a assinar o ponto
E alguma coisa fazer Pouco me resta p'ra fazer
Pedindo - vos um desconto Amigos dai - me um desconto
Se algo de errado disser Se algo de errado me ocorrer
Para não perder mais tempo Para por ponto no tempo
Deixai - me então que vos diga Deixai - me então que vos diga
Vou por - me neste momento Mulher p'ra mim é tormento
Já no ponto de partida É uma enorme fadiga
P'ra mulher estou sempre pronto P'ra mulher já não me apronto
Se ela quiser ser feliz Quando ela quer ser feliz
Marcamos ponto de encontro E não adianta marcar ponto de encontro
E pomos os pontos nos iis Na hora de por os pontos nos iis
Quando na hora do amor Quando chega a hora do amor
Se fica muito excitado Não consigo ficar excitado
Sente - se muito melhor E já nem sinto aquele sabor
O ponto de rebuçado A ponto de rebuçado
No autocarro da vida O autocarro da minha vida
Para mais se há desconforto Já me vai causando desconforto
Pode parar -se a corrida Só a descer acelera a corrida
Pondo o mesmo em ponto morto Só já anda em ponto morto
Se tudo aquilo que usamos Sei que tudo aquilo que uso
Não nos causa desconforto Não me causa desconforto
Logo bem exclamamos Como e bebo sem abuso
Que essas coisas estão no ponto P'ra tentar estar no ponto
Estando muito apressados Se tento andar apressado
Se alguém nos quer atrasar P'ra mulher acompanhar
Ficamos logo irritados Fico logo muito cansado
A ponto de o insultar A ponto de nem respirar
Não vale a pena teimar Nem me vale a pena teimar
Nem ser casmurro egoista Se penso fazer uma conquista
Verdade que se afirmar Não acho ponto para me afirmar
Tem muitos pontos de vista Falta - me força falta - me a vista
Quem está fora de abrigos Se me sinto fora de abrigos
E entregue à sua sorte E entregue à minha sorte
Procure nos bons amigos Procuro nos bons amigos
Um ponto de apoio forte Alguém que me conforte
E é aqui que vos peço o tal desconto
Por já não conseguir assinar o ponto
Porque p'ra mulher satisfazer
Só sendo jovem se aguenta
E em mim já é tudo a descer
Meus amigos ... eu já bati os oitenta !!!
Parabéns p'rò nosso ilustre amigo Martins Ribeiro
Um grande abraço .
Zé Lamas
Só no dia 02.01.2017 é que comecei a ler a Palmeira (nº.40).
E que Palmeira!!!
Posso estar enganado, mas duvido que outra tivesse tanta qualidade; textos tão ricos de prosa, de poesia, de ilustração; de número, variedade e qualidade de escritores.
São dezanove e de que qualidade!!!
Logo na capa uns versos simples, mas tão simples e belos que até me incomodam (A.P.-Arsénio Pires).
Salto para a última página, pois são outros versos, complicados, intensos, profundos… vou ter que os ler mais vezes para ter a certeza de que os vou entender (Fernando Echevarria).
Vou para a página onze onde a “Paixão do Adolfo de Barros”;”A chuva de Novembro do Alexandre Gonçalves” e o “Salmo de Outono do Arsénio Pires”…me deliciam.
“A Paixão”: do que foi e a vontade de continuar a acreditar…confiando.
“A Chuva de Novembro”: que nos rega a nossa solidão; revela a ausência feminina e com um agridoce de tristeza.
“O Salmo de Outono”: que nos aquece a alma e nos transporta para o infinito. Sublime.
(Eu na mesa do poeta no Martinho da Arcada.)
“À memória do poeta Fernando Pessoa” de Ismael Vigário encheu-me de curiosidade para saber o que iria ser dito deste escritor. É para mim um texto muito interessante, audaz e revelador de grande cultura. Descreve a Baixa de Lisboa e o Martinho da Arcada com encanto; refere o poeta como “um homem profundamente religioso”, “uma obra inacabada”, “tantos modos de tu seres à procura do Ser”. São conclusões que gostaria de ver discutidas num próximo encontro, pois, na verdade, Fernando Pessoa me é estranho e quem sabe: se me entranha.
Ele não soube amar; não foi sociável; foi viciado do álcool. Na Tasca onde jantava conheceu e falou com um amigo, o Bernardo Soares, acerca do Livro do Desassossego…que é ele próprio. Etc…
Quanto ao texto de “O ADN psicológico do “Agapanto” – I – Agapanto: Adolescente até morrer do Adolfo de Barros”:
É delicioso, verdadeiro e ambicioso. Tal e qual.
Desespero pelo próximo texto.
Finalmente: Todos os textos, dos dezanove escritores de qualidade, que completam as vinte páginas desta Palmeira, me agradam.
“Palmeira” , cada vez mais viçosa e rica de saborosos frutos, está para durar.
Um bom ano de 2017 para ela, extensíveis aos seus autores.
Bem hajam.
Delfim Nascimento…
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