E SE FOSSEMOS COMER UMA LAMPREIA?
PRIMAVERA
Houve um tempo em que me sentava num daqueles banquitos de granito, dispersos pelos jardins da Avenida Montevideu, três aqui, um além, ali dois bem juntinhos, bordejando o mar, entre o Castelo do Queijo e o Largo do Molhe, na cidade de onde houve nome PORTUGAL. Dali eu avistava, acenava e trocava sorrisos com o meu filho que ali, ali mesmo, a nove mil quilómetros em frente, Los Ângeles, pela Rodeo Drive, Santa Mónica ou Sunset Boulevard ia, porventura, em direção a sua casa.
Nesse tempo, eu tinha memória: de uma escola, um professor, caminhos vazios de nada, um combóio e uma casa onde sonhei que vivi; eu tinha memória de lágrimas e de cemitérios, de ramos de flores e de missas, de acreditar que, no espaço infindo do céu, poderia cirandar uma divindade, um meteorito, uma nuvem branca que me tivesse criado e tivesse poder por sobre os meus destinos.
INVERNO
Agora, nem morte nem nascimento, nem deuses nem imaginação, nem cemitério nem qualquer resquício do passado.
INVERNO, NOVAMENTE
No Verão, da varanda da minha casa, converso com os longos braços dos plátanos que me atenuam o sol. Olho-os, estico o pescoço para o ramo mais alto de todos e, por entre as folhas, tento ir além, o céu e uma claridade densa a preencher o vácuo deste nosso triste entardecer. Quando a Terra se começa a distanciar do Sol, acompanho os meus plátanos, as folhas a cair, a nudez dos seus ramos e os homens da Câmara, armados de camiões, serras telecóspicas e polícias a regular o trânsito, esventram os meus plátanos até à “nudez crua da verdade” de que Eça nos falou. Então, é quando, nesse “então”, eu sou eu, eu sou mais eu. Aflora-se-me a morte, os braços cortados, uns homens fardados, a Polícia a regular o trânsito e os meus plátanos, desnudados, órfãos do olhar deste vizinho que acaba de partir.
Manuel da Fonseca, o escritor Manuel da Fonseca, o Ti Manuel da Fonseca, escrevia. Sentado no banco de pedra que alindava a sua pobre casa em Santiago do Cacém, o mestre Manuel da Fonseca dá uma entrevista para a televisão.
Entãoeh! É prá televisãoeh!
O que está escrebendo, ti Manel?!...
Ah!... Nã tou escrebendo nádá. Ágórá, áté que tou rasgando. Tou rasgando!
PRIMAVERA, NOVAMENTE
O meu sobrinho tem uma camioneta. Todas as semanas, à sexta feira, ele telefona-me. Em Direito, a linha sucessória só nos fala de sangue, da linha reta ou da linha colateral. O meu sobrinho é um sobrinho por afinidade e telefona-me, sempre à sexta feira, pelo menos. Tio, é pra carregar?
Sim, é pra carregar. E lá vem ele, camioneta vazia a chegar, camioneta cheia a partir. Leva, leva tudo, todo o meu longo e feliz rasgar. Lá vai a roupa e os sapatos; os livros, ah! os meus companheiros/livros, as canetas, aquelas canetas, bicos gastos, Pelikan, Sheaffer, tinteiros secos, mata borrão com bolor, ah! e os caderninhos de linhas onde a minha mão direita apenas escarafunchou as letras da palavra “amor”. Apenas.
CHIÇA! INVERNO; outra vez?!
Agora, as camélias do meu jardim morreram; os áceres onde pendurava as telas a secar em dias luminosos de inverno, também secaram; a relva do jardim foi comida pelas daninhas; o meu Golden Retriever morreu.
Os armários plenos de roupa e de sapatos já não têm nem roupa nem sapatos; a minha empregada reformou-se, o vizinho em frente já não me toca à campainha, a cabeleireira leva-me cinco euros “porque o senhor pró cabelo que tem mais valia cá não vir” e, até a bela francesa com quem eu navegava a memória dos meus belos tempos de Paris, regressou a Paris e que eu nem pense passar na Rue de Poetie, trinta e nove, quarto andar.
Agora faço pelas pernas abaixo. Não posso abrir torneiras porque faço pelas pernas abaixo. Não posso beber água porque faço pelas pernas abaixo.
Caminho num caminhar abichanado para não fazer pelas pernas abaixo e até, há dias, no elevador, o meu esfíncter me traiu e, logo, logo, uma vaporosa mademoiselle comentou para a outra mademoiselle vaporosa,
“estes velhos são horríveis”.
PRIMAVERA, EM FLOR
E se fossemos (mas é) comer uma lampreia?!
Restaurantes:
Aventino
Portugal (PORTO)
E eu vou -me sentindo só e olvidado
Ainda que aviste os horizontes mais chegados
Os amigos que por aí andam distraídos
Por esse mundo de mim esquecidos
De tão distantes nem os sinto a meu lado
Parece que nada têm p'ra dizer _ estão calados
Com aquele abraço
Zé Lamas .
Afinal já não me sinto só nem os horizontes são tão longínquos. Andamos todos por aí, como alguém disse e por vezes a inspiração invade a mente e exteriorizam-se em palavras.
Estes dias a tristeza passou pelo Diamantino e pelo Gumesindo pelo falecimento das suas mães, com uma idade bonita, é verdade, e vários colegas manifestaram junto deles a solidariedade que alivia. É uma etapa da nossa vida que convém passarmos, sabendo quanto custa essa separação. Um abraço bem amigo aos dois.
Caramba, que sossego!!!!!!
Nem mesmo à provocação do nosso amigo Lamas o pessoal espevitou.
Acho meritório o esforço do Manuel Vieira para acordar o pessoal mas os resultados não surgem. Mas não desanimes, Manel!
Espero que acabe depressa a nossa hibernação e que, com a chegada da primavera, apareçam sinais de vida nesta Associação aparentemente moribunda.
Acordem, escrevam, falem mesmo que o assunto pareça não ser interessante. E que tal experimentar :
«Lembram-se daquele discurso em que o velho Tomaz dizia " Portugal esteve à beira do abismo mas deu um passo em frente e salvou-se ? » E daquele exercício militar que, segundo o manual, devia ser executado gritando gritos parvos e selvagens tais como " viva a pátria ?
Agora já têm motivos para dizer : mas este gajo está mesmo idiota ou está mesmo para além disso. Escolham...........
Pois é, amigo Vieira! Li-te com alguma ternura e bastante humidade nos olhos. Os "lençóis de cambraia fina" ficaram-me atravessados no corpo de vila nova, gelado e humilhado de ausências pérfidas e perversas. Esta queixa, que eu não reputo de pessoal, deixou muita gente a coxear pela vida fora.
É tão cedo para desistirmos! Como foi possível que tudo morresse tão depressa?! Fazes referência à vida imediata do facebook. Fosse ela imediata! Já não seria tão deprimente como isso. Ainda seria vida. Mas a deriva para esses cinquenta amigos, entre os quais recuso incluir-me, já era um sinal de mau agoiro. Tinha o ar de novidade. Mas, se já não houver vida, de que serve a mudança e o abandono do que se é? Mesmo denunciando os vícios da iniciação, que eram superiores à qualquer escolha, teremos de reconhecer à distância que fomos educados para a lentidão. Para a mediação que a linguagem, de inspiração greco-latina, nos impunha. Fôssemos parar ao mundo como filhos de Deus ou do Diabo, ninguém poderia devassar o território sagrado e luminoso da palavra, fosse ela falada ou escrita. A palavra herdada é a única ética da existência social. Muitos reclamam- se com pergaminhos dos eternos princípios judaico-cristãos em que foram educados. Hoje são mais-valias nos negócios, nas múltiplas vidas quotidianas, e até, (quem sabe?), em obscuras e ostensivas solidariedades. Mas exibem sem pudor uma atitude imediata, pela qual pairam ou vegetam sobre a superfície do mundo.
Tudo parece estar a morrer, meu caro Manel. Quando a palmeira contou os seus anos, no largo que a viu nascer, e discretamente desapareceu da geografia, ela anunciava a nossa idade provecta, não por excesso de anos mas por excesso de abandono. Por distração. Por hábitos de indolência e insensibilidade. Por falta de fé em nós próprios e no Deus da infância, a quem na prática não se reconhece qualquer papel no destino humano. Quando muito, a missa dominical, um velório na hora das mortes, uma prece oportunista nos apuros, são os gestos que atestam a crença remanescente.
Quando o mundo se associa, nós desistimos sem remorsos da PALMEIRA, que tantos bens e alegrias nos trouxe? 2018 não é um apelo para um encontro/reflexão sobre a esperança que nos resta? Este país, apesar de poucochinho, não terá ainda recantos e segredos por abrir? Quem abre o caminho para vermos um pouco mais de mundo e um pouco menos de indigência espiritual? Não haverá um resto de solidariedade que deite fogo a esta inércia precoce?
Amigo Vieira, preservaste a continuidade do fogo. Os antigos revezavam-se para garantir o lume no dia seguinte. Sem ele, corriam o risco da extinção. Tu és a permanência. Eu creio que ainda há muita gente acordada. A noite, para nós, começa a ser demasiado comprida. E todos precisamos de todos. As palavras eram a nossa salvação. Se as deixarmos em estado de coma, nunca mais acordamos. Usemos o facebook, o site, o telefone. Digamos asneiras, corroamos os interlocutores, mas salvemos o pensamento. Porque o pensamento não é mais do que o excessivo coração a sentir e a estar excessivamente vivo.
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