2010-08-08
A. Martins Ribeiro - Terras de Valdevez
SOMBRAS VIVAS
Eu tinha uma menina de cabelinhos loiros como fios de oiro que o sol deixasse desprender da sua infinita distância, oiro macio e reluzente, criança de olhos redondinhos, espelhos onde coriscavam diamantes, onde bailavam fadas de vestes vaporosas, olhos onde se esparramavam girândolas coloridas nas noites de festa da minha acidentada existência. Era uma boneca das mais lindas e perfeitas, mais belas e bem feitas que aquelas das montras feéricas. Foi o meu delicioso amor de outrora, fruto doutro amor longínquo e que se perdeu no negrume dos tempos.
Ora, num belo dia em que o céu era mais límpido, ou noite em que as estrelas eram de uma luz mais diáfana, não sei bem, num dia em que o sol era mais macio, dia de imaginação de bom poeta, senti bater à porta. Pancadas secas, rápidas, fortes!
Fui abrir e caí, estarrecido, ante um monstro horrendo e feroz. Era um enorme esqueleto vestido com um manto negro e na mão sustendo uma gadanha afiada e medonha.
Quem és? Bradei...
A resposta foi dada com tom rápido, cavo e sepulcral:
Sou a Morte!
E que queres? Porque vens perturbar a minha paz e enegrecer estes felizes dias da minha vida, limbus maldito?
Depois, com acento inquiridor e sarcástico, retorquiu:
Não tens uma menina de cabelos de oiro e de olhos brilhantes e reluzentes?
Oh! Tenho, tenho...
E com voz de além-túmulo, fria como o vento glacial das montanhas:
Venho buscá-la.
Não, piedade, não, antes a mim, antes a mim que sou pecador!
Caí de joelhos, implorando, entre choros de fatalidade:
Perdão, agora não, é o meu tesoiro, a minha vida!
Porém a Morte continuava arrogante e silenciosa. Estendeu-me um cartão onde em letras negras como fuligem do inferno se lia a fulminante palavra:
LEUCEMIA
Desapareci no abismo do desespero, mas lá do fundo reagi com raiva, furibundo, transtornado. Rasguei o cartão e tentei lutar contra o monstro. Corpo a corpo não podia. Então dei-lhe venenos, medicamentos, injecções, transfusões de sangue.
Depois, num arreganho:
Hei-de vencer-te, Morte, hei-de vencer-te!
Ah! Mas ai de mim! O monstro começou a rir com gargalhadas sarcásticas, casquinantes, batendo as queixadas ósseas num matraquear cínico e aterrador. Era como aqueles monstros do cinema moderno que comem balas como quem saboreia um bago de uvas ou se alimentam de cianeto e estricnina. Empurrou-me com um encontrão de desprezo, desse desprezo que deriva da força e do poder e correu direito à minha boneca de cabelos de oiro e de olhos brilhantes e reluzentes. Arrebatou-a do berço com os dedos esqueléticos, escondeu-a no manto negro e sumiu-se.
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Nesta altura, ouvindo uma sinfonia gravada, música celestial e repousante, deparei com um frasco de remédio pousado sobre um móvel e que ficara ali desde o rapto da minha menina de cabelos de oiro e de olhos brilhantes e reluzentes.
Armas contra a Morte?
Sorri-me então desse disparate, dessa loucura!
E entre arpejos de melodias e espirais de fumo dum cigarro fui transportado até a um mundo distante e misterioso, mundo longínquo onde se confundiam recordações dolorosas com pensamentos indecisos do tempo presente. Mundo de espectros e visões indistintas de anjos e demónios.
"Leucemia, glóbulos brancos e vermelhos, sangue!
Cancro, assassino asqueroso e traidor, febre, glóbulos outra vez!
Pastilhas, comprimidos, agulhas, injecções, olhos ansiosos e feições sorumbáticas de médicos calados em expectativa, batalhões incontáveis de todo esse grande exército que luta, em vão, contra a Morte.
Depois mais sangue, mais glóbulos vermelhos e brancos, faces lívidas de moribundos, desespero na luta, frenesí, raiva e impotência, gargalhadas pungentes e gritos angustiosos.
E cancro, cancro, cancro de novo...
Comprimidos, xaropes, leucemia!"
A seguir uma escuridão, uma tontura e um desesperado e furibundo anelo!...
Dei um salto na cadeira e despertei dessa macabra recordação.
Queria ser poderoso, mais poderoso que todos os reis da terra e do céu só para poder matar a Morte.
Mas, oh loucura, não entendia que era o mesmo que querer queimar o Fogo.
E sorri de quanto era ridículo o meu desejo.
O cigarro acabou e enquanto esmagava a ponta de encontro ao cinzeiro o braço mecânico do gira-discos automático encerrava também a melodia sinfónica.