2019-03-18
Aventino Pereira -
A IMPORTÂNCIA DO PRETO
1964. DC. 1964 depois de Cristo, agosto.
Era agosto e era a Senhora das Graças. Maria da Graça, a minha bela e doce mãe, a única mulher, meu amor,
Manuel, Manuel, temos que pôr as pinhas, e as pinhas ardiam, crepitavam, iluminavam os sonhos deste menino, magrinho, branquinho, silencioso e triste com que os sinais desse tempo me trouxeram tantos dias tantas décadas, sim, carrego a solidão do desencanto, a infelicidade perene, a busca de procurar um nada de encontrar.
(Não sei o que é o amor, nunca soube o que é o amor, não quero nada com o amor, nunca amei ninguém e não quero que ninguém toque ao de leve este meu sentir se me deres um abraço eu choro, se me deres um beijo eu choro, se me quiseres levar contigo e tomares conta de mim eu quero, vem vem mulher que não encontro, vem desinteressamente vem navegar por estes dias que nos restam, vem).
Era agosto e o meu pai beijava-me e a minha mãe beijava-me, cá estou eu a dar-lhes vida, deixem-me por favor deixem-me enganar-me sobreviver a este desejo de morte de ir de ir de ir como se fosse para os seus braços, seminário, maldito seminário que tudo me roubaste bendito seminário que tudo me deste, era agosto. 1964. Senhora das Graças e o silêncio de uma carta.
As cartas traziam memórias, notícias, futuros e solidões. As cartas eram vida, eram vidas, eram continentes, hemisférios, guerra, África e morte; emigração e bidonville, cloacas de merda em tantos e tantos bairros miseráveis de França à espera de todos nós, expulso do seminário.
Eu fui expulso do seminário. Felizmente?! ( “o que fui, o que fui nem eu sei; apenas os teus lábios me fizeram eterno”. Aventhino. 2018. Finisterra. Penguin, pág. 139)
E cá estou eu a dar importância ao preto. A carta do seminário: tem voz, tem silêncio, tem dor, a dor do ir e de não voltar: deve entrar no dia sete, outubro, enxoval, o que é enxoval, pergunta-me a minha mãe, três pares de cuecas, cinco camisas, dois pijamas e um ror de merdas e o meu pai que se fodam, o moço não vai não o quero paneleiro lá no meio dos padrecos, acabou, construção civil, fuga para França, Ultramar que se foda nem pensar, o nosso menino, antes morto em África do que paneleiro.
E agora ouço a tua voz AAR renasces em mim enxoval enxoval enxoval enxoval enxoval enxoval enxoval enxoval, um fato: “não deve ser preto”. Lembras-te?! “não deve ser preto”.
E agora, o preto dos funerais, o preto dos automóveis, o preto das cruzes nos jornais, o preto das mulheres gordas, o preto da Ivone Silva com este vestido preto eu nunca me comprometo, o preto do basquete que grande sacana que afundanço, o preto Amadora, serveh?! O preto da paneleirada gosta do preto o preto da comunistada do bloco com a mão esquerda o preto sujo da porcaria da terra o preto sujo das cloacas o preto dos coisos que são pretos como o c… e até o fumo preto da Basílica São Pedro quando não há coiso que mereça outra coisa que não seja o c…do fumo preto.
Um dia qualquer arranjo-vos um Governo que goste do preto.