NOTA INTRODUTÓRIA: ELOGIO DA INSURREIÇÂO
"Foi o lugar que sucumbiu. Só vinga
a espécie de halo que ficou a dar
para a distância". F. Echevarría (Introdução à Poesia)
Saudações insurreccionais! Abril trouxe um pouco de chuva, o bastante para o ventre da terra se agitar de fertilidade. Num súbito gesto solidário, e claramente deslumbrados pela explosão dos campos e dos bosques, emergem da penumbra alguns dos ARs mais atentos à vertigem da idade. Rejeitando concordâncias e resignações, aí estão os suspeitos do costume, a subverter a nossa precoce aposentação, de amplo espectro... O Aventino e o Gaudêncio, em pleno exercício de leitura, convocam-nos para qualquer forma de insubordinação. Eu larguei a courela, a vinha e o faval para participar neste regresso. Abaixo as previsões melancólicas de um arismo decadente e sentado, comendo cozinhados de TV e resíduos de um cristianismo apático e obeso. Esta página é excelente para dizer uma ideia livre e criadora. Não é para jeitosos inflamados. É para todos os que preservaram a palavra e a leitura. Que seguram sentimentos e convicções. E para todos os que aprenderam a rir disto tudo que nos rodeia e sufoca. Devemos um pensamento luminoso à sociedade que nos financiou, que julga ter-nos amado e se prepara para nos instituir. Seremos cães mudos? Será perfeito o mundo onde fomos jovens? Teremos uma poupança-reforma para gerir a solidão? Dizer não é só um direito. É também uma atitude ética.
Com estes apelos, atirei-me sem rede sobre a memória. O resultado foi um naco de prosa perturbada, com a qual me recuso a fechar a porta. Quando Echevarría foi homenageado pelos seus noventa, comentou de improviso: "e muito mais escreveria, se outros noventa houvesse!" Houvera vinte justos como ele, a pensar por escrito o que se passa na nossa rua, nós podíamos destruir este mundo e criar outro mais habitável. Se em vez de vinte, houvesse dez, fundávamos outra cidade. Se em vez de dez, houvesse cinco, íamos a Creta e pedíamos à formosa Ariadne que nos desse um fio de ouro e nos conduzisse ao Dinossauro. Porém, disse Deus uma vez que nem um justo haveria. Por isso, arrasou Sodoma e Gomorra. Mas como nós estamos em autogestão, mesmo que nem um justo abra a fascinante brancura desta página, está ainda longe de se apagar a luz que a viu nascer.
(Dada a hora avançada e a abusiva extensão da nota introdutória, fica para breve a "prosa perturbada" referida.)
GASTRONOMIZA-TE
E, eis que do alto deste penhasco, vislumbro ao longe o resto dos prazeres que nos restam:
I
-De avental ao peito, mexe que mexe, remexe, remexe, o panelão a ferver , e o VIEIRA,
Oh mulher! Já ferve,
e ele prova, volta a provar, medita nos sabores sentidos e o que lhe apetece é começar já já a comer,
uma pitada mais de sal fica mais apurado,
a colher rola, rola outra vez, agora o vinagre, tinto, mulher é do tinto, todos p’ra mesa, grita ele,
e… ei-la: fémea, gorda, grande, às postas a abrilhantar a gula de um repasto de deuses.
II
-O CASTRO é todo butelo e casulas que vieram lá do fim das terras quentes do Nordeste para ali, naquele cantinho de Sabrosa, à vista do vale onde o Douro parece abraçar-nos.
Fez-se silêncio. A primeira garfada à boca e… silêncio de novo. Começou o banquete. Mastigai bem, devagar, devagar, que isto é indigesto, diz o Castro, e ele sorve, chupa, trinca, lambe, osso a osso,
que nada se perca,
o dia começou cedo é preciso alimento forte para aguentar,
e a vinha, vinhedos de Sabrosa onde ele ainda vai namorar o tempo antes de regressar ao Porto. Oh mulher! despacha-te que quero estar com os netos.
III
-Agora, seja o ALEXANDRE, vem de Sesimbra, uma posta de cherne no “O Velho e o Mar” e dois comunas ao lado, na mesa ao lado, espreitam, espreitam o prato do Alexandre e conspiram,
a burguesia come peixe fino, diz o comuna invejoso;
os pobres comem peixe vagabundo, diz o outro comuna invejoso.
O Alexandre segue o seu caminho, Coina para a direita, Palmela para a esquerda, hesita se vai a Coina ou para Palmela, pensa (o Alexandre não pensa, cogita) e lenta, lentamente, refugia-se no seu refúgio:
-ao menos se o meu pensamento parasse!... e adormece.
IV
-Na Rua das Portas de Santo Antão, o GAUDÊNCIO espreita, espreita as ementas, restaurante, outro restaurante, outro, o Gambrinus:
-folhado de perdiz: 50,00 euros
-crepe suzete: 30,00 euros
-café de saco: 9,00 euros.
Ladrões, grita o Gaudêncio. Ladrões, Ladrões, grita o povo na rua, chamem a Polícia, ouve-se, chamem a polícia, a sirene, a patrulha chega, arma, escudo no braço, viseira e cassetete em riste para o que der e vier,
onde estão os ladrões, onde estão os ladrões grita o polícia baixinho borrado de medo,
e o Gaudêncio,
ali, ali, e aponta o Gambrinus.
Continua a subida, agora sereno, a alegria interior própria de uma patifaria infantil de que todos nós gostaríamos de ser os autores,
Avenida da Liberdade, encosta-se à vidraça e vê. Que luxo, diz baixinho, “Je ne sais quoi”, JNcQUOI restaurante, aberto das 12 horas às 02 horas, e lê os preços, incrédulo, outra vez os preços,
“grandes ladrões”, soletra,
continua a subida, Avenida de Berna, o Rêgo, passagem para o outro lado, “Adega Tia Matilde”. E repasta-se. Finalmente.
V
-O ARSÉNIO ainda não decidiu. Entre um peixe grelhado em Matosinhos e um cozido à portuguesa, talvez um bife do lombo, “mal passado, faz favor”. E depois? Depois, meditar e poetar!
VI
-Quem circula pela A28 e pela A3 depara-se com uns cartazes que ficarão na memória para os nossos restos de sempre:
“3ª edição da Foda à Monção”.
O MARTINS RIBEIRO ri-se, impõe-se, goza com quem não sabe, é muito bom é, diz ele, em forno de lenha o anho a assar e pinga, pinga sobre o arroz, continua, mas saibam bem que a boa foda é lá nos Arcos, na minha terra.
VII
-O nosso ASSIS escarafuncha, ancinho numa mão, a pá na outra,
a terra ainda está seca, tenho que regar isto, fala com as rosas, beija aquelas orquídeas altas que tem junto à porta e volta ao quintal,
mais mês menos estas hão de estar boas
e nós à espera das favas lá para maio ou junho misturadas com grandes doses de afeto com que nos haveremos de amar, ali, em terras de Orbacém.
***
E eu, um prato de sopa de nabos, acompanhada com a minha imensa solidão.
AVENTINO, algures, em abril de 2019 (d.c.)
O tempo vai encurtando, escrevia eu há dias noutro espaço, referindo-me ao desaparecimento precoce do nosso colega Amândio Acácio Pires de Mirandela, que terá entrado em Gaia no ano de 1961.
Não o conheci pessoalmente, mas dirigi-lhe palavras escritas de agradecimento por nos ter apoiado com a cedência de um autocarro num belo Encontro que realizamos naquela região e nos permitiu calcorrear o castelo de Ansiães com as doces cerejeiras à entrada, subir ao monte da Senhora da Assunção em Vilas Boas e descer à foz do Tua onde nos deliciámos com os gulosos "peixinhos do rio".
Faleceu com 70 anos de idade e na altura do dito Encontro estava ligado ao Município de Mirandela. Paz ao seu espírito.
Meus amigos
Apenas duas linhas para pedir desculpa ao Vieira pelo meu lapso de atribuir ao Delfim a evocação do nosso muito lembrado amigo Peinado Torres. A paternidade do acto é do Vieira e ponto final.
O seu a seu dono, amigo Vieira, e desculpa o meu disparate que se deve imputar a uma falta de atenção que não de consideração.
Reposta a verdade, passai todos bem.
O último, o que vai fechar a porta, já agora que apague também a luz. Poupam-se umas coroas......e completa-se o serviço.
Todavia eu não acredito que haja algum " valente " que tenha a coragem de fechar a porta depois de apagar a luz. Sou pouco optimista em relação às coisas normais da vida e ao mundo que me rodeia mas, depois de ler os dois textos muito bons ( cada um no seu registo ), aqui inseridos nos últimos dias, eu sigo esperançado que o silêncio, pressagiado pelo Alexandre, não nos vai abafar tão depressa. Ainda mexemos !!!!!!
As entradas a que atrás me referi são, obviamente, a do Aventino que, depois de um letargia invernosa, despertou impetuosamente na Primavera mostrando que as suas memórias ressaibiadas e a sua veia provocadora continuam vivas e intactas. Gostei, apreciei e relembrei com ele alguns restos das minhas memórias, passados que são mais de sessenta anos, e agora fico à espera que a próxima "crónica " não demore tanto como esta.......
A outra entrada é a do " mestre " Alexandre que, ao mesmo tempo que nos fala, vai brincando, elegantemente, com o português. Mas desta vez noto-lhe uma pequena tendência para o pessimismo, território onde ele, penso eu de que.... , nunca tinha entrado ao longo dos anos o que se pode confirmar lendo os belos textos com que nos tem mimoseado.
É verdade que a Revista acabou e finiu-se por causas que andarão perto das " guerras de alecrim e mangerona ". Talvez me apetecesse ser mais explícito mas isso não vai acontecer. Quanto ao fim do Passeio Anual é diferente pois julgo que interesse havia mas a logística para juntar o norte e sul, no mesmo dia, é obra de peso quase incontornável. ( Quase...)
Quanto ao site ele só se calará se nós quisermos. Custa-me aceitar que tenhamos gente bem dotada para as letras mas que não consegue perder uns minutos para debitar uma qualquer laracha para fazer prova de vida e entreter a malta. E não me venham falar de velhice pois dessa moléstia sofremos quase todos......
Julgo que, no pºpº dia 08/03/2019, escrevi aqui no site o epitáfio do mesmo e dizia : « AQUI JAZ O FALE CONNOSCO RIP » mas o gestor do site não o quis publicar, e ainda bem, porque, uns dias depois, vislumbrámos sinais de vida. Afinal o «Fale Connosco » não estava morto mas, apenas, moribundo.
O Delfim, com muita oprtunidade, trouxe-nos à memória o nosso Peinado. Também me lembrei da data e ainda tive o telefone na mão para falar uns minutos com a MIMI, esposa dele. Mas, ao contrário dos anos anteriores, acabei por não ligar.
Toavia, ainda não consegui preencher o vazio daquele amigo que era mesmo amigo desde Agosto de 1955.
( Código Ortográfico Antigo )
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