2016-05-31
alexandre gonçalves - palmela
BARROSAL XXIII – Noite Nublada
Cai uma noite nublada sobre palmela. Os cedros e as casuarinas enrolam-se no vento e agitam sombras tristes. Não fazem medo. Fazem tristeza e solidão. Este maio também perdeu a memória. A lua de maio, as rosas, as cerejas, os poemas de primavera, os amores passados, tudo a chuva vai levando.
Um homem, mais depressa do que esperava, fica só na paisagem. Ninguém o entrevista. Ninguém precisa dos seus braços, inclinados já de inutilidade. Acumula-se tempo, uma espécie de musgo que se cola à pele. Como o verdete, nas estátuas de bronze, nos jardins públicos.
Falo de mim, falo de ti, meu amigo, meu irmão. Falo de todos os que fomos testemunhas de um tempo acelerado. Com a agravante de termos vindo à cena com indiscutível atraso. Crescidos em redoma de vidro, de olhos no céu para entendermos a terra, tivemos que aprender de atacado o alfabeto do mundo. Casámos, fizemos filhos, plantámos árvores. E até escrevemos alguns livros. Mas quem somos nós? Que fizemos da literatura? Que proventos fomos buscar às infinitas horas de Latim e de Grego? Quantos protegeram o gosto e a prática musical? Que foi para nós a chamada cultura humanística? Que é isso a que chamamos valores, que tantas vezes sugerem uniformização mental, como quem plagia ideias alheias e os faz passar como próprias? Deus ocupou-nos tanto tempo que muito pouco sobrou para cuidarmos de nós. Deus foi tão pai que absorveu o espaço da filiação. Ser filho é um direito, não uma concessão parental. Quero tudo o que é devido,/ por me trazerem aqui. /Que eu nem sequer fui ouvido/ no acto de que nasci./(Gedeão). Nós queríamos tudo. Queríamos ser diferentes. E até mudar o mundo. Mais que tudo, sonhávamos afectos, algumas gotas de ternura, alguma grandeza que desse sentido à nossa idade. Para tanto desejo, deram-nos um manual de fórmulas, simples e abstratas, facilmente memorizáveis: o catecismo. Assim, numa pedagogia bipolar, tivemos de viver os mais tenros anos da vida, entre o céu e o inferno. Os cumpridores tinham o ingresso garantido nos braços do Altíssimo. Os outros, se os houvesse, podiam ir para toda a parte.
Muitos de nós dizem-se cristãos convictos. Mas acrescentam que de actos litúrgicos está o inferno cheio. Cheios estamos nós de anos, de mediocridade, de cópias, de brandos costumes. E sem obra feita, nem glória, nem cumplicidade social. Safamos o património, a vidinha e a magra reforma que os longos descontos consentem. E os valores judaico-cristãos, que se adoptaram como verdade absoluta. Como se nem a história os maculasse de alguma imperfeição. Uma pedagogia catequética, dogmática e definitiva.
Esta perversa reflexão não ignora as excepções. O pudor implica a soberania do nome. Até o próprio elogio ofenderia uma sensibilidade subtil. Também não se trata de qualquer forma de censura. Em rigor, cada um sabe de si e das circunstâncias particulares que teve de superar. Sendo assim, que fundamento justifica esta reflexão? Precisamente, ser “perversa”. Porquê? Primeiro, para desconstruir a divinização do modelo que foi aplicado. Os resultados estatísticos permitem concluir que o fabrico em série de cidadãos foi genericamente um fracasso. Em segundo lugar, pretende-se que se agarre ainda a oportunidade para sairmos de cena com elegância e nobreza. O carácter perverso está neste moralismo tardio: aprender a envelhecer. Ou, dito de outra maneira, de como de velho se volta a novo. Não sei como se faz. Há um doutor que ensina como é. Mas fica no ar a utopia. O primeiro a conseguir, que se chegue à frente. No mínimo, largue-se o maple, cerrem-se os televisores. A bolinha vermelha é para nós, a nova geração de sábios. Apenas uma ideia fica luminosa: é proibido envelhecer.
A noite nublada é agora uma fúria elemental. A chuva no campo, associada a um vento ruidoso e dramático, faz tremer de medo as casuarinas, que se retorcem de amores perdidos. Até os cães, os doces cães do homem, parecem ladrar como actores sem texto nem ponto. E estes pensamentos não aliviam a existência do seu inútil parto. Amo a chuva. Amo a noite. Amo o campo. Mas às vezes a solidão das árvores faz doer o mundo.