2011-10-27
Alexandre Pinto - Palmela
A Teoria das pontes:
Como sabemos, o rectângulo marítimo onde nos foi dada a abundante luz do sol está retalhado de asfalto. Como antes estava, e assim permanece, idilicamente atravessado por rios, regatos e ribeiros. São cursos leves e ornamentais em que a água protagoniza o que de mais suave se oferece a esta paisagem múltipla e apaixonante. O verde, o branco e o azul fazem uma sinfonia de cores que entram matinalmente pela janela. Porém, de tanta ser e tão assídua esta claridade, distraímo-nos dela. Possuímo-la como se fora mulher de saldo, mas nós não a vemos, como não vemos as rugas de expressão que ostenta. Também não ouvimos o seu silêncio profundo, as mágoas discretas que ocorrem nos seus suspiros. Somos como um ladrão que vem de noite, com pés de gato e mãos de tigre. Entramos muitas vezes pelas traseiras da casa, saímos de madrugada, após um banho rápido que nos torne insuspeitos.
As estradas e as pontes tornaram mais pequeno, muito pequeno, o território onde nasceram os nossos pais. A maioria anónima que entope os litorais não tem de certo esta herança cultural, esta linguagem à flor da pele, que naturalmente aprendemos nos primeiros passos da vida. Nem a memória rústica dos dias anteriores, quando os baldios eram o nosso pasto favorito. Assim sendo, atravessemos as pontes, destruamos o asfalto, abramos os sentidos até aos seus limites. Deixemo-nos de vidinhas repetidas, em frente dum LCD obsceno que devassa a sala de estar, o gesto íntimo, a mesa lenta e falada. Que ninguém diga, "para esse peditório eu já paguei"! Primeiro, porque não é verdade. Todos os encontros são novidades absolutas. Depois, porque estamos todos em estado de emergência e de urgência.
Já se concordou em que os dias nos fogem em vertigem e não devemos resignar-nos. A cultura da resistência é um antídoto contra a iminência do perigo. Temos de fugir do cais de embarque. Se não pusermos bancos para lá nos sentarmos à espera dum navio, muitas voltas terão de dar à nossa procura. A idade tem um saber próprio, um modo lento de respirar a existência, que se opõe às marcações de ponto. A terra dos nossos pais está a ser ocupada violentamente pelo estrangeiro. Não deixemos que tão súbitas e pardacentas criaturas nos queiram contar a conta, como se ainda fôssemos inocentes.
Os encontros são pontes físicas e não metafísicas. Como vimos de longe, não da distância asfaltada, mas dum tempo afectivo que perdura, precisamos duma longa mesa de palavras, eventualmente líquidas, cada um sabe de si, para retomarmos algum alinhamento. Precisamos de rir, de tudo e de nós próprios, porque o mundo, tal como se anda a manifestar, é em si mesmo tão risível como equívoco. E é a altura para convocar o Aventino. Durante vários dias, abria o site e lá estava ele, no seu texto de fendas e de nostalgia, absolutamente só, pendurado numa proposta sem eco e sem consequências. Tive tristeza, parecida com a dele e ocorreu-me que algum estado de coma se estivesse a abater sobre a associação. Dei um murro no computador e abri esta janela a dar para o azul imenso da nossa idade. Pois bem, caro Aventino, vamos agarrar a tua sugestão. Marca e vejamos o teu porto. Acredito que de tanto o olharmos o ignoremos, para lá do que é desculpável. Mas não nos tires a mesa, que funciona como um tapete persa, debaixo dos nossos pés. Nós somos o que somos, criaturas terrenas cheias de fome e de sede. E na nossa herança mais arcaica, há mesas por todo o lado. O mal não está na mesa nem nas iguarias que a nutrem. A mesa é um lugar de virtudes. O problema, se o há, é de gestão individual. E esse espaço é inviolável.