O VELHO E O SOL
Num País não distante como o das fábulas, mas aqui bem perto, havi um velhinho, encorrilhado e relho, reformado dos serviços públicos com a mísera pensão de poucos tostões que mal lhe davam para enganar a fome. Vivia num casinha mais parecida com um pardieiro, muito desconfortável e sombria, por cujas frinchas zunia uma aragem cortante, situada num pequeno quintal que dava para a rua pública.
O País onde vivia o reformado já não existe porque, tendo sido antanho possuidor de uma encantada História de heróis e santos, de trovadores e cavaleiros, foi caindo na vileza e tornou-se num antro de ladrões, de madraços, de vilanaços e escroques que o mergulharam na ignomínia e na desonra até o riscarem do mapa.
Ali num canto do eido, rodeado de plantas e ervas daninhas, sobressaía um tosco e pequeno banco e pedra batido pelo sol nos dias limpos de inverno, onde o pobre do velhote, curvada a espinha e arrimado a um cajado rústico, nele se ia sentar e se deixava ficar tempo sem fim, muito regalado, a dormitar ou a pensar na sua vida, até o sol desaparecer.
Mas veio um certo dia em que passou por ali na rua pública um indivíduo bem posto que, vendo o velho todo refastelado a gozar as delícias do calor daquele sol benfazejo, parou um pouco a observar, meneou a cabeça e seguiu caminho. Era o autarca (que título altissonante) do Município daquela terra, que foi concluindo para si mesmo: não podia ser, a atitude do reformado era uma provocação, um desaforo, um insulto á sua condição de político, pois o que o velhote estava a fazer não era mais que a usufruir abusivamente de um privilégio para o qual não lhe tinha concedido a sua autorização de régulo e senhor todo poderoso a que ninguém deveria escapar. Chegado ao seu pomposo gabinete mandou chamar um zelador municipal a quem deu ordens para intimar o velho e avisá-lo de que deveria pagar um imposto se quisesse continuar a gozar o calor daquele sol de inverno. O subordinado, com o zelo de um capanga para agradar ao amo, não perdeu tempo e chegado ao pé do ancião, assim o informou:
-meu amigo, por ordem do nosso Presidente venho avisá-lo de que foi lançado um imposto a todos aqueles que, como você, apanham o sol nestas tardes frias, seja lá onde for.
Não pôde o pobre do homem dar-lhe ali já uma bastonada com o seu bordão porque era muito fraco e desvalido mas, mesmo não conseguindo endireitar o seu corcovado dorso, retorquiu indignado:
-pagar um imposto pelo sol que Deus dá a todos na sua infinita bondade? Nunca! E saia daqui que já o não vejo bem!
Ruminando impropérios o malvado zelador lá foi informar o Soba daquele burgo da resposta do velhote. Parecia tudo ter ficado esquecido, porém, dali a uns dias, o desditoso ancião verificou que do lado público do seu quinteiro estavam muitos homens de fato macaco a construir uma estrutura semelhante a um alto muro, referindo tratar-se de um melhoramento para benefício do espaço público, mas ele viu muito bem que faziam aquilo para lhe roubar o sol que não quis pagar.
Dali em diante o sol deixou de aquecer o seu rude e grosseiro banco de pedra e, ao sentar-se nele, o pobre do homem, privado do gostoso calor do astro, passou a tremer de frio e logo fugia para dentro de casa, mas como nela não tinha borralho tremia também, metia-se na cama e como a roupa era pouca, continuava a tremer. Foi enregelando cada vez mais e em pouco tempo se finou.
Alguns meses mais tarde andava um grupo de funcionários da autarquia a trabalhar numas obras do cemitério municipal e deles fazia parte o infame zelador que intimara o velhote; a dada altura, quando regressavam no fim da tarefa, passaram junto duma térrea e humilde sepultura, sem nome nem lápide e, olhando-a melhor, um dos homens inquiriu, meio intrigado:
-esta não é a campa daquele velho que recusou pagar o sol?
-Mas é mesmo, certificou o zelador com malvadez nos olhos. Ai o desavergonhado e somítico do velho carcaça, espera aí que eu já o ensino.
E sem cuidar do respeito devido ao campo santo, desapertou a braguilha das calças e fez uma indecorosa mijada em cima da campa rasa meio esbandalhada, juncada de uns quantos ramos de flores já secos e apodrecidos. Tudo porque o pobre do velho não quis pagar o sol.
A moral desta história é a de que já faltou mais para ela acontecer.
Falava eu há dias sobre a "Roupa Velha", esse ditoso prato que mistura a verdura das couves ou coivões em segundo uso, o bacalhau e a as batatas azeitadas com as chalotas e o alho sem grelo.
Na minha aldeia com ares de cidade ainda "se bota o ano belho fora", numa tradição que cresce em carrelas de ripas de pinho e as caras besuntadas de disfarce em grupos de 5, em despique com prémios endinheirados.
"E bota o ano belho fora, e bota o nobo cá pra dentro..." cantarola a miudagem calcorreando os recantos mais movimentados e as portas dos comércios na procura da moedinha. Em cima vai o "ano velho", lestinho no peso e na altura para não desgraçar os ombros dos moços do andor.
"...e bota o nobo cá pra dentro " ouve-se em coros entrelaçados na rua principal onde cheira já a bolo rei especial das boas pastelarias que concorrem em convencimentos adocicados.
"Boas saídas e melhores entradas" para os meus bons amigos que já oiço lá ao fundo.
Hoje, meus amigos, foi "Roupa Velha" e atentos à quadra podemos naturalmente descodificar a receita, sem confusões com o uso desmesurado de indumentária.
É uso da consoada o reforço das panelas com esse fim, numa tradição que tem atravessado gerações.
Limpinho de espinhas e da pele, lasca-se o bacalhau e reserva-se. Noutro recipiente cortam-se e reservam-se os "coivões" e as batatas também sobrantes.
Num tacho alargado aloira-se em bom azeite a cebola e o alho limpo do grelo, com folha de louro e toque ligeiro de pimenta preta moída na hora.
Adicionam-se os ingredientes reservados da ceia e vai-se mexendo, dando-lhe a frescura e intensidade de umas gotas muito ligeiras de vinagre Moura Alves, o tal com 10 graus de acidez estagiado em barricas de carvalho durante 10 anos . Também um toque de cominhos pode reforçar os aromas.
Emprata-se a Roupa velha, remoçando com ovo cozido em rodelas generosas e azeitonas pretas e um toque subtil de salsa cortada finamente.
É uma velha tradição portuguesa com arraiais fortes no Minho e pode ser cozinhado em versões ligeiramente diferentes.
Nas sobremesas as aletrias, os mexidos, os frutos secos, as rabanadas, os bolinhos de abóbora, o bolo rei e outros sustentos bem doces enxameiam as mesas.
Por cá fica o meu contributo...
"Vou comer os meus pirús", alguém diria por aqui em entoação de ligeira rusticidade e "assados são melhor que o céu", quase a afirmar "diz-me o que comes, dir-te-ei quem és", alheios, claro, à malvadez dos mafarricos do esquentado inferno aludido por Jorge de Sena.
"O prazer da mesa é de todas as idades, de todas as condições, de todos os países e de todos os dias; pode ser associado a todos os outros prazeres, e permanece como o último, para nos consolar da sua perda", dizia Brillat-Savarin em "Fisiologia do gosto" em 1825 e ainda hoje referenciado por ilustres chefes de cozinha.
"Só o homem de espírito sabe comer: os animais alimentam-se" dizia ainda em aforismo, percebendo que nas manjedouras natalícias o eu sensitivo não prescinde da individualidade comensal.
Não sei se consegui afirmar alguma coisa mas não terei qualquer dúvida de que " a mesa é o único sítio onde ninguém se aborrece durante a primeira hora" e quando é na "Oliveira do Paraíso" do nosso Alexandre, não há minuto que aborreça, como aconteceu certamente na Terça-Feira onde se juntaram 12 colegas para um ditoso almoço de Natal onde se apascentou um expressivo arroz de lebres, sápido e de escorrido tempero das artes do Davide.
Natal que acalenta o nosso diálogo de mensagens, de abraços tantos já recebidos de vários recantos.
Natal que traz poesia e encanto e sensações várias e se serve em mesas longas.
Com a relevância da amizade, para todos envio um abraço natalício.
António de Montesinos
Faz hoje, 21 de Dezembro, 500 anos que António de Montesinos, em nome da comunidade dos frades dominicanos de La Hispaniola, pronunciou um sermão em defesa dos índios explorados pelos colonizadores da ilha que actualmente é República Dominicana e Haiti.
"Todos vós estais em pecado mortal. Nele viveis e nele morrereis, devido à crueldade e tiranias que usais com estas gentes inocentes. Dizei-me, com que direito e baseados em que justiça, mantendes em tão cruel e horrível servidão os índios? Com que autoridade fizestes estas detestáveis guerras a estes povos que estavam em suas terras mansas e pacíficas e tão numerosas e os consumistes com mortes e destruições inauditas? Como os tendes tão oprimidos e fatigados, sem dar-lhes de comer e cura-los em suas enfermidades? Os excessivos trabalhos que lhes impondes, os faz morrer, ou melhor dizendo, vós os matais para poder arrancar e adquirir ouro cada dia... Não são eles acaso homens? Não tem almas racionais? Vós não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Será que não entendeis isso? Não o podeis sentir?"
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