"Crónica de um bom malandro benfiquista" seria o título adequado ao texto do nosso amigo Martins Ribeiro, atento que está à ponta do véu encarnado da jovem donzela servente.
Os seus laivos de escultor astuto em nada se confundem com os de José Rodrigues, artista renomado autor dos cavaleiros medievos dos duelos arcuenses,. Os golpes de vista batidos desempoeiram as formas gostosas da garota dos Arcos e o pingo bem quentinho é servido a ferver para caldejar a língua sibilina do nosso decano das musas.
Um belo texto para escaldar desejos nestas noites bem frias de Fevereiro.
GERAÇÕES SEM CONFLITOS
Por via de certas quezílias que sucedem no dia a dia, aborreci-me com o pessoal da casa onde todos as manhãs ia tomar o meu café e dar dois dedos de conversa com os amigos. Dessa forma, mudei para outro estabelecimento perto dali pois, como soe dizer-se, cafés há muitos e o freguês tem sempre razão.
Sentado a uma mesinha logo surgiu para me servir uma rapariga para mim desconhecida, fogosa e cheia de simpatia, com a solicitude e presteza dos seus frescos dezoito anos.
—Um pingo normal, bem quentinho; pedi eu.
Dali a instantes, sempre sorridente, a moça colocou na minha frente o que pedira e pude então reparar na sua rara beleza. A mão que me estendia a chávena era pequenina, bem feita, podia dizer-se, uma jóia de porcelana. O rosto lindo como o de um anjo; imagino, porque eu nunca vi nenhum anjo, porém, estou certo de que nenhum anjo poderia ser mais resplendente: um botãozinho de aleli, um raiozito de lua duma noite de Janeiro. Tinha nas orelhas brincos de pechisbeque com pingentes que lhe iam debicando com leveza as protuberâncias assomadas no peito, das suas perfeitas e sedutoras maminhas, duas suculentas maçãs do paraíso. Por fim, sobressaía ainda nela um traseiro bem torneado, completando o elegante conjunto de toda a sua harmoniosa figura. Todo o seu porte era de uma irreal escultura, com mais justeza uma verdadeira obra de arte. Não se via, mas sentia-se que daquele ser irradiava um fogo telúrico, em labaredas crepitosas, semelhante ao que ardia outrora dentro de fornalhas mitológicas.
Embora marcado pela fantástica impressão, o que mais me atraiu na jovem foi, contudo, ter visto a sair-lhe do bolso da bata que trazia vestida, um pequeno lenço em cuja ponta figurava o emblema do grande Benfica, bordado com esmerada perfeição.
Sem receio, atirei-lhe então:
—Miúda, como te chama
—Karina, respondeu de imediato.
—És muito bonita, sabes?
Sorriu, sem mostrar lisonja.
—Vejo que gostas do Benfica:
Quase me não deixou acabar e olhando intencionalmente para o lenço, foi sorrindo:
—Desde pequenina, meu senhor: gostava de ir ver um jogo a Lisboa, ao estádio da Luz, mas não posso. Nunca fui a Lisboa:
—O quê, tu nunca foste a Lisboa?
—Nunca calhou;
—Deixa lá, disse eu em jeito de reconforto. Olha, se queres que te seja franco, eu também ainda não vi o novo estádio da Luz.
Em face disto, agora lá me encontro eu sempre, todas as manhãs, no novo café, ali perto do outro, aproveitando todo o tempo que posso para conversar com tão sedutora garota.
Porém, quando regresso a casa, vou cismando sempre nas voltas que a vida dá. Se bem possa dizer-se que as gerações mais antigas possuem o apanágio da grande experiência e são credoras de merecida veneração, para mim não passam já, em termos vivenciais, de farrapos, de refugo, de lixo do passado, quando confrontadas com a força e generosidade da linhagem que desponta.
Quando me é dado ver o sócio número um desse imorredoiro Clube, centenário encarquilhado e relho, compreendo a necessidade da morte e não me revolto, nem lamento, nem sinto saudade; apenas satisfação por ter vivido, realização por ter chegado e, porventura, ânimo ainda para conviver com a juventude que se vai cruzando comigo.
E pronto, a partir dali, nasceu entre mim e essa encantadora jovem uma irresistível empatia, como entre um avô e uma neta, quiçá mesmo bisneta, tão distantes eram os mundos que separavam as nossas origens. Procurei sempre a convivência com gerações diferentes da minha, pois entendo que não devem existir conflitos entre elas e sim que as mesmas se deverão completar.
Devo concluir que as gerações mais novas se podem misturar sem conflito algum com aquelas que as precederam, sobretudo se ambas se deixarem unir por valores transcendentais e eternos, compreensão e respeito, muito mais se adorarem os mesmos deuses, como é este meu caso; o da moça era o Benfica, o meu também o era.
Meu caro “eremita” JMarques.
Assim o apelidei por mor do seu distanciamento desta praça.
Saudemos, portanto, a sua descida ao povoado.
E começando pelas suas saudáveis dúvidas. Quem não duvida, penso eu, desistiu de ser homem. Mais, penso novamente, só os ateus não têm dúvida alguma sobre a existência de Deus. Esses existem mas não duvidam. Outros pensam e, portanto, não existem. Complicado? Talvez…
Das suas preocupações e receios em relação à sã discussão nesta praça, também eu comungo. Não só comungo como até, confesso com tristeza, estou chamuscado! Infelizmente, nisto de religião e política (as duas são religiões porque bebem de absolutos e de fé… e até de santos e santas…!), ainda não sabemos distinguir ideias de pessoas.
Sonho pelo dia em que sejamos livres e libertos para podermos trocar impressões sobre tudo, sem nunca confundirmos o amigo com as suas ideias ou crenças.
Em relação ao tema que levanta, poderemos aprofundá-lo.
Para começar, eu aconselharia um belíssimo livro com o título “Jesus, uma abordagem histórica”. Autor: José António Pagola.
Curiosidade para os AAAR! A tradução é do nosso colega e amigo Bernardino Henriques (não sei se conhece…) que exerceu a sua actividade profissional como professor em Mirandela.
Por agora, ficamos por aqui.
Estimado Arsénio,
Confesso que achei alguma piada à sua expressão "eremita" pois ela pouco tem a ver com a minha identidade diária embora esteja distante do meu ninho de nascença.
Aprecio a sua fé e também a sua distância dos enquadramentos normalizados de Igreja e também da milagreira Fátima.
Curiosamente muitos contestam os comportamentos extremistas dos muçulmanos, esquecendo que eles também se fundamentam em interpretações conservadoras dos seus líderes.
Não faltarão nossos antigos colegas com formação teológica, o que confesso não é o meu forte.
Mas questiono-me com alguma frequência sobre alguns temas e sempre causou dúvidas no meu espírito de bastantes leituras que fiz o facto de os Evangelhos falarem de Jesus quando se refere ao seu nascimento, uma ou outra vez quando já criança a discutir no templo e depois só aparece quando já é adulto trintão. O que se terá passado num intervalo tão grande da vida?
Provavelmente Jesus terá casado como qualquer jovem hebreu e nada consta dessa fase da vida. Terá trabalhado como qualquer adulto pois era o normal nas famílias.
Terá deixado a família como pediu aos seus apóstolos quando lhes disse para deixarem tudo e segui-lo?
A existência de outros Evangelhos não reconhecidos pela Igreja e os aceites terem sido escritos muito mais tarde depois da morte de Jesus por inspiração do tal espírito santo que se esqueceu de influenciar as "santidades" que dirigiram a Igreja dos homens ao longo dos séculos, causa-me muitas dúvidas. Não questiono a sua existência, a de Jesus, porque me parece que o crédito da história me leva a ficar por aí.
Estas e muitas outras questões seriam curiosas para abordar nestes espaços, mas também muitos temas da modernidade teriam bom cabimento, embora eu me aperceba de um elevado comodismo que invade as mentalidades seminarísticas, com a fobia às abordagens públicas, como se de sermão de púlpito se tratasse.
Toda a gente tem jeito para lançar lenha para a sua lareira, mas todos fogem quando se trata de lareira colectiva com receio de que olhem para a acha que atiram.
Também reconheço em mim alguns constrangimentos de debate mas apercebo-me por aqui de gente com competências para transmitir ideias de elevado nível e por isso me atrevo por vezes a abrir a agenda a que o Arsénio quis dar seguimento.
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