2011-12-31
A.Martins Ribeiro - Terras de Valdevez
O VELHO E O SOL
Num País não distante como o das fábulas, mas aqui bem perto, havi um velhinho, encorrilhado e relho, reformado dos serviços públicos com a mísera pensão de poucos tostões que mal lhe davam para enganar a fome. Vivia num casinha mais parecida com um pardieiro, muito desconfortável e sombria, por cujas frinchas zunia uma aragem cortante, situada num pequeno quintal que dava para a rua pública.
O País onde vivia o reformado já não existe porque, tendo sido antanho possuidor de uma encantada História de heróis e santos, de trovadores e cavaleiros, foi caindo na vileza e tornou-se num antro de ladrões, de madraços, de vilanaços e escroques que o mergulharam na ignomínia e na desonra até o riscarem do mapa.
Ali num canto do eido, rodeado de plantas e ervas daninhas, sobressaía um tosco e pequeno banco e pedra batido pelo sol nos dias limpos de inverno, onde o pobre do velhote, curvada a espinha e arrimado a um cajado rústico, nele se ia sentar e se deixava ficar tempo sem fim, muito regalado, a dormitar ou a pensar na sua vida, até o sol desaparecer.
Mas veio um certo dia em que passou por ali na rua pública um indivíduo bem posto que, vendo o velho todo refastelado a gozar as delícias do calor daquele sol benfazejo, parou um pouco a observar, meneou a cabeça e seguiu caminho. Era o autarca (que título altissonante) do Município daquela terra, que foi concluindo para si mesmo: não podia ser, a atitude do reformado era uma provocação, um desaforo, um insulto á sua condição de político, pois o que o velhote estava a fazer não era mais que a usufruir abusivamente de um privilégio para o qual não lhe tinha concedido a sua autorização de régulo e senhor todo poderoso a que ninguém deveria escapar. Chegado ao seu pomposo gabinete mandou chamar um zelador municipal a quem deu ordens para intimar o velho e avisá-lo de que deveria pagar um imposto se quisesse continuar a gozar o calor daquele sol de inverno. O subordinado, com o zelo de um capanga para agradar ao amo, não perdeu tempo e chegado ao pé do ancião, assim o informou:
-meu amigo, por ordem do nosso Presidente venho avisá-lo de que foi lançado um imposto a todos aqueles que, como você, apanham o sol nestas tardes frias, seja lá onde for.
Não pôde o pobre do homem dar-lhe ali já uma bastonada com o seu bordão porque era muito fraco e desvalido mas, mesmo não conseguindo endireitar o seu corcovado dorso, retorquiu indignado:
-pagar um imposto pelo sol que Deus dá a todos na sua infinita bondade? Nunca! E saia daqui que já o não vejo bem!
Ruminando impropérios o malvado zelador lá foi informar o Soba daquele burgo da resposta do velhote. Parecia tudo ter ficado esquecido, porém, dali a uns dias, o desditoso ancião verificou que do lado público do seu quinteiro estavam muitos homens de fato macaco a construir uma estrutura semelhante a um alto muro, referindo tratar-se de um melhoramento para benefício do espaço público, mas ele viu muito bem que faziam aquilo para lhe roubar o sol que não quis pagar.
Dali em diante o sol deixou de aquecer o seu rude e grosseiro banco de pedra e, ao sentar-se nele, o pobre do homem, privado do gostoso calor do astro, passou a tremer de frio e logo fugia para dentro de casa, mas como nela não tinha borralho tremia também, metia-se na cama e como a roupa era pouca, continuava a tremer. Foi enregelando cada vez mais e em pouco tempo se finou.
Alguns meses mais tarde andava um grupo de funcionários da autarquia a trabalhar numas obras do cemitério municipal e deles fazia parte o infame zelador que intimara o velhote; a dada altura, quando regressavam no fim da tarefa, passaram junto duma térrea e humilde sepultura, sem nome nem lápide e, olhando-a melhor, um dos homens inquiriu, meio intrigado:
-esta não é a campa daquele velho que recusou pagar o sol?
-Mas é mesmo, certificou o zelador com malvadez nos olhos. Ai o desavergonhado e somítico do velho carcaça, espera aí que eu já o ensino.
E sem cuidar do respeito devido ao campo santo, desapertou a braguilha das calças e fez uma indecorosa mijada em cima da campa rasa meio esbandalhada, juncada de uns quantos ramos de flores já secos e apodrecidos. Tudo porque o pobre do velho não quis pagar o sol.
A moral desta história é a de que já faltou mais para ela acontecer.