2019-04-10
Aventino Pereira - Porto
GASTRONOMIZA-TE
E, eis que do alto deste penhasco, vislumbro ao longe o resto dos prazeres que nos restam:
I
-De avental ao peito, mexe que mexe, remexe, remexe, o panelão a ferver , e o VIEIRA,
Oh mulher! Já ferve,
e ele prova, volta a provar, medita nos sabores sentidos e o que lhe apetece é começar já já a comer,
uma pitada mais de sal fica mais apurado,
a colher rola, rola outra vez, agora o vinagre, tinto, mulher é do tinto, todos p’ra mesa, grita ele,
e… ei-la: fémea, gorda, grande, às postas a abrilhantar a gula de um repasto de deuses.
II
-O CASTRO é todo butelo e casulas que vieram lá do fim das terras quentes do Nordeste para ali, naquele cantinho de Sabrosa, à vista do vale onde o Douro parece abraçar-nos.
Fez-se silêncio. A primeira garfada à boca e… silêncio de novo. Começou o banquete. Mastigai bem, devagar, devagar, que isto é indigesto, diz o Castro, e ele sorve, chupa, trinca, lambe, osso a osso,
que nada se perca,
o dia começou cedo é preciso alimento forte para aguentar,
e a vinha, vinhedos de Sabrosa onde ele ainda vai namorar o tempo antes de regressar ao Porto. Oh mulher! despacha-te que quero estar com os netos.
III
-Agora, seja o ALEXANDRE, vem de Sesimbra, uma posta de cherne no “O Velho e o Mar” e dois comunas ao lado, na mesa ao lado, espreitam, espreitam o prato do Alexandre e conspiram,
a burguesia come peixe fino, diz o comuna invejoso;
os pobres comem peixe vagabundo, diz o outro comuna invejoso.
O Alexandre segue o seu caminho, Coina para a direita, Palmela para a esquerda, hesita se vai a Coina ou para Palmela, pensa (o Alexandre não pensa, cogita) e lenta, lentamente, refugia-se no seu refúgio:
-ao menos se o meu pensamento parasse!... e adormece.
IV
-Na Rua das Portas de Santo Antão, o GAUDÊNCIO espreita, espreita as ementas, restaurante, outro restaurante, outro, o Gambrinus:
-folhado de perdiz: 50,00 euros
-crepe suzete: 30,00 euros
-café de saco: 9,00 euros.
Ladrões, grita o Gaudêncio. Ladrões, Ladrões, grita o povo na rua, chamem a Polícia, ouve-se, chamem a polícia, a sirene, a patrulha chega, arma, escudo no braço, viseira e cassetete em riste para o que der e vier,
onde estão os ladrões, onde estão os ladrões grita o polícia baixinho borrado de medo,
e o Gaudêncio,
ali, ali, e aponta o Gambrinus.
Continua a subida, agora sereno, a alegria interior própria de uma patifaria infantil de que todos nós gostaríamos de ser os autores,
Avenida da Liberdade, encosta-se à vidraça e vê. Que luxo, diz baixinho, “Je ne sais quoi”, JNcQUOI restaurante, aberto das 12 horas às 02 horas, e lê os preços, incrédulo, outra vez os preços,
“grandes ladrões”, soletra,
continua a subida, Avenida de Berna, o Rêgo, passagem para o outro lado, “Adega Tia Matilde”. E repasta-se. Finalmente.
V
-O ARSÉNIO ainda não decidiu. Entre um peixe grelhado em Matosinhos e um cozido à portuguesa, talvez um bife do lombo, “mal passado, faz favor”. E depois? Depois, meditar e poetar!
VI
-Quem circula pela A28 e pela A3 depara-se com uns cartazes que ficarão na memória para os nossos restos de sempre:
“3ª edição da Foda à Monção”.
O MARTINS RIBEIRO ri-se, impõe-se, goza com quem não sabe, é muito bom é, diz ele, em forno de lenha o anho a assar e pinga, pinga sobre o arroz, continua, mas saibam bem que a boa foda é lá nos Arcos, na minha terra.
VII
-O nosso ASSIS escarafuncha, ancinho numa mão, a pá na outra,
a terra ainda está seca, tenho que regar isto, fala com as rosas, beija aquelas orquídeas altas que tem junto à porta e volta ao quintal,
mais mês menos estas hão de estar boas
e nós à espera das favas lá para maio ou junho misturadas com grandes doses de afeto com que nos haveremos de amar, ali, em terras de Orbacém.
***
E eu, um prato de sopa de nabos, acompanhada com a minha imensa solidão.
AVENTINO, algures, em abril de 2019 (d.c.)