2019-11-08
alexandre gonçalves - palmela
NOVEMBRO II
Estremeço de pensar novembro. Sendo uma rima perfeita com setembro, bastam trinta dias para abandonar a infância e entrar na austeridade conventual. Em setembro ainda havia resíduos de verão. O rosto da mãe ainda chegava fresco e húmido por uma ternura absoluta. A ribeira da aldeia ainda corria em vila nova, entre juncos e amieiros. E eu trouxe nos olhos todas as raparigas que brincaram comigo no adro da igreja. Lembrava-as minuciosamente sem culpa, ora vestidas de branco, ora despidas nas águas transparentes. Estavam ainda na minha vida e eu já fora expulso do paraíso. Quando fui "anjo" de um infeliz qualquer, eu ri para dentro de mim, por me atribuírem tanto estatuto. Uma das ditas era pastora e apascentava a sua inocência morena em campos rentes aos meus. Um ribeirinho do nosso tamanho separava os nossos gados e os nossos corpos. E uma cerejeira cúmplice e pontual baixava ramos vermelhos até às nossas bocas. Outra era, outra fazia, outra sonhava ser doutora. E outra ainda foi arrastada numa impetuosa corrente que um vendaval levou às águas fluviais. Foi amparada por salgueiros que a recolheram amorosamente roxa de morte. Nesse dia chorei mas ninguém viu. E eu não disse a ninguém. Setembro era a casa, era o fumo dos telhados, era o pão do forno, era uma penedia em forma de monstro. Era o sino marcando o ritmo de toda a gente. Ouvia-se de longe e era triste.
Em chegando a vila nova, havia uns portões, que pareciam os do inferno. Quando se fechavam, lembravam mandíbulas de um gigante pré-histórico, provavelmente já extinto. E havia um retiro de iniciação ao terror espiritual que ali se praticava. O pregador de serviço , num rasgo de síntese luminosa, depois de ter chamado à papoila "grito vermelho na planura", inspirado pelo divino espírito, declarou: "bela é a terra, que se cobre de flores na primavera. Bela é a chuva, que irriga os campos. Mas quando se juntam e se revolvem no subsolo, o que produzem é apenas lama. E é lama o que fazem o homem e a mulher, quando se juntam." Ouvi e tomei nota. Fiquei elucidado, disposto a iniciar uma carreira de remorso e pavor. Porque havia um argumento poderoso: o inferno.
Assim se abre novembro para sempre. Outubro apenas tinha o primeiro feriado, que arrefecia oficialmente o bosque, a avenida e os corredores. E tinha maçãs brancas e sêmeas, que aliviavam do frio e da solidão. Era um momento nobre a hora da merenda. Mas a chuva não tarda. Em começando, pega-se às paredes, aos telhados de coimbrões e devesas. Cola-se à roupa, ao chão, coberto de serradura. E pior que tudo, entra pelas fendas do corpo abandonado. Há no ar uma tristeza colectiva. Há um piano algures que se ouve obsessivamente. E vozes que ensaiam o natal, que não demora. A melodia dominante tem uma toada monacal, quase doce, quase embaladora. Chego a comover-me com aqueles sons antiquíssimos e ondulantes. Rorate caeli desuper et nubes pluant justum. Demorei muito a entender o texto mas a ondulação vocal era avassaladora e arrepiava. Cantava-se em novembro e contaminava de gregoriano os sentimentos, o desejo, as ausências acumuladas. E toda a paisagem envolvente era filtrada por essa melodia profundamente melancólica.
Vila nova começou a sequestrar as muitas idades que fomos tendo. Aos dezasseis anos sinto-me um caso de laboratório. Perguntava a deus e ao diabo, num segredo indecifrável, qual era o meu futuro ali. Queria sair mas tinha medo. Queria ficar, mas só de o pensar entrava em pânico. Cheguei assim ao segundo natal. O jantar estava francamente melhorado. A rapaziada delirava. A alegria fora previamente estabelecida, com argumentos que lhe davam solidez. No salão de festas, depois de uma peça de teatro ensaiada para a noite mais bela do ano, vinham os jogos e as rifas. Muitos escapavam pelo escuro e refugiavam-se a ouvir rádio e em conversas clandestinas. Eu era certamente um deles. Naquela noite fugi sozinho. Tive medo de que algum prémio me saísse. Não estava para isso. Mas fugir para onde? Estava cercado de altos muros, dentro e fora de mim. Discretamente, como quem vai cometer um crime, entrei na capela e acolhi-me no recanto mais oculto, junto à lâmpada sagrada, que sinistramente fazia tremer a noite e até o próprio edifício. Sentei-me na extremidade mais oculta da minha vida e delirei até à infância primitiva. Em dado momento, repeti uma pergunta que já me fizera entre montes e calhaus: Tonho, Tonho (era assim que me chamavam na aldeia), quem és tu? Que vais fazer da tua vida? Queres ficar aqui a rezar os teus segredos e remorsos?Não fui capaz de responder e chorei. Chorei muito. Até cair de sono no banco. Quando acordei, o relógio assustou-me. Se me apanham às cinco da manhã, fazem de mim uma encomenda e despacham-me para o fim do mundo. Não me apanharam nem me despacharam. Subi em bicos de pé, cozi-me à parede e subi as escadas. O universo dormia feliz, como se nunca houvera guerra no mundo. Ninguém dera pela minha falta. Ninguém sabia o meu nome. Nem ninguém imaginava que eu havia de dar em padre, para minha desgraça e desgosto de muitas mulheres que em vão me escolheram. E que eu tive de rejeitar, porque, sem saber como o fiz, fiz-me padre. Igual aos outros padres. Igual aos outros homens.