2012-02-18
Nicolau - Oeiras (Soito)
Diz o povo que, "zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades!" Mas, porra, se no nosso grupo não existem comadres e muito menos mentiras para se descobrirem as verdades, porquê as zangas, que nem sequer passam de amuos? Talvez haja mais verdades, que nós queiramos acreditar que são mentiras.
Falemos, pois, destas verdades. Sem medos das críticas, de coração aberto. Com transparência e coerência. Quanto à fé, cada um tem a que tem e a mais não é obrigado. Não há que dar justificações, seja a quem for.
Embora a destempo e para levar a água ao moinho, posso lembrar o meu primeiro Natal na guerra do Norte de Angola. Foram oito dias de inferno, passados na serra da Canda. Passou-se de tudo, naqueles dias. Fomos atacados pela formiga Kissonde, eram duas horas da noite. Estávamos a 2km do objectivo, onde se iria desenrolar o combate. De manhã, bem cedo, mal acordados e todos mordidos, partimos para o incerto, camuflados pelo cacimbo. É que o diabo daquela formiga, quando morde, deixa ficar a cabeça enterrada na carne. Mas adiante, porque isto não é um romance.
Já embrenhados na selva, começámos a ouvir, ao longe, o primeiro roncar dos nossos aviões. Lá mais para a frente, do lugar onde caminhávamos, os pilotos abriram as torneiras e as bombas começaram a cair.
Era o começo. Depois, foi a vez da infantaria, (carne para canhão). Tiros, rajadas, morteiros, bazucas... Os gritos dos animais da selva refugiavam-se nos nossos medos. E nós outros? Apenas no choro, nos gritos, na dor. Depois, foi o silêncio... Cuidámos dos feridos, a pulsação voltou ao normal e as palavras ficaram caladas.
Finalmente, chegaram os heróis, que amedrontados, no meio da luta, correram em sentido contrário ao do objectivo. Mas como prenderam uma preta com uma criança, foram condecorados, mais tarde, com toda a pompa e circunstância. Numa guerra, os heróis são sempre os medrosos que deixam os camaradas à sua sorte.
Finalmente, o regresso à base. O nosso calvário iria continuar. E continuou, muito duramente. Só por mera informação, o planalto da serra é tão grande como Portugal. E claro está, perdemo-nos. Naquela imensidão, completamente desnorteados, limitávamo-nos a caminhar. A água dos cantis, esgotou-se. Ao segundo dia, já quase metade dos soldados iam às cavalitas dos camaradas, que foram buscar forças às suas últimas reservas. Os nossos lábios estavam gretados. As gargantas colavam-se. O desespero estava no limite. E foi na tarde do terceiro dia que encontrámos uma pequena poça de água, onde boiavam muitas fezes de animais. Mas, mesmo assim, não resistimos à tentação. Enchemos o bandulho. Saltos de alegria, abraços, e muitos sorrisos, sem molestar mais os nossos lábios. Era assim a guerra, numa guerra que não era nossa. Era Natal! E foi assim que a guerra me roubou os melhores anos da juventude. Quatro anos de tropa ao serviço dos Senhores da Guerra.
Portanto, pergunto eu agora: Porquê as guerrinhas ou quezílias de menor idade, entre nós? Ou então sejam claros e explanem as vossas ideias para que todos possamos entender.
Depois do epísódio relatado e que eu vivi, deixei de ter tabus, conceitos e muito menos preconceitos. Apenas gosto de respeitar os outros da mesma maneira que gosto que me respeitem a mim. E a partir deste combate, também deixei de ligar ao tempo, trocando-o pelo espaço. É no espaço que tudo acontece e é ao espaço que ligamos toda a nossa vivência. Não me lembro das datas de acontecimentos havidos. Lembro, sim o espaço onde aconteceram.
Com certeza, que em Gaia também aconteceram combates que deixaram feridas. E lembro-me de no meu 1º. ano, por ter dado um pontapé num colega, o então Director reuniu toda a gente, no salão, para eu ser castigado. Ao fundo, em pé, o Director, que também detinha a pasta de Directo espiritual, e sentado numa cadeira, o ofendido, com um pé descalço, E eu, sem saber de nada, ouvi chamar o meu nome, com o pedido para avançar. Avancei para o cadafalso e já, frente a frente, recebi ordens para me ajoelhar e beijar o pé do ofendido. Hoje, sei que esta cena foi vivida também por outros colegas.
E conto este episódio, porque, como disse, hoje, não tenho tabus de espécie alguma. Com certeza, que episódios como este marcam, sobremaneira, uma criança.
E, quer queiramos ou não, todos os que passámos por Gaia, ficámos marcados com uma tatuagem que nem o melhor dermoabrasão consegue tirar.
E se em Gaia fomos tatuados, os que foram até Espanha, receberam a marca de um ferro, em brasa. E os que saíram da Instituição, já padres, são visíveis os grilhões e uma grande bola de ferro, em cada pé. Verdade? Mentira? Cada um poderá responder por si. É a lei da vida! Era assim...
Tenho constatado que muitos de nós ora damos uma no cravo, ora outra na ferradura. Penso que, quanto mais verdadeiros formos, mais a amizade sai reforçada entre nós. Porque, se nos pusermos na retranca, jamais poderemos oferecer aos outros uma sã camaradagem. Jamais poderemos ter sol na eira e chuva no nabal. E enquanto não começarmos pelo princípio da nossa estadia, haverá sempre mal entendidos. Andem, contem, falem, meditem, analisem e depois sim, vamos batê-las.
Jamais eu poderei ser um exemplo de seja o que for. Na verdade, eu só apareci passados quase 50 anos. E mesmo agora, a minha presença tem sido escassa. E nos encontros lembramo-nos, apenas, de quando meninos. Hoje, estamos todos mudados e, como tal, não nos conhecemos bem. Mas só o facto de termos passado pelas mesmas carteiras, quase de certeza absoluta que todos temos alguma coisa para contar. Eu estou pronto!