2012-05-10
Alexandre Gonçalves - palmela
SONHO DUMA NOITE DE PRIMAVERA - I---------
Caros Delfim e Dulce: desculpem que até agora não tenha escrito uma palavra. Mas como temia um silêncio, de certo modo colectivo, eu fui adiando... para manter por mais tempo, no gume da faca, o sangue das amoras pretas. Felizmente, foram bastantes os que se referiram, na fala ou na escrita, ao ENCONTRO DO SUL. Mas temos o vício da palavra rápida, como se ela nascesse dum teclado. E nessa rapidez, não nos custa transformar em adjectivo o verbo gostar. "Gostei" ou "gostei muito", como se disséssemos, em jeito de síntese luminosa: foi tudo muito lindo. Ou então, "não há palavras" que exprimam o que ali se passou. Como quem diz: esta já foi, venha a seguinte! Só que isso pode em boa verdade dizer-se de quase tudo. Por isso nos repetimos, nos imitamos, e caímos sem nos dar conta no pântano dos lugares comuns. Eu sei que somos na maioria aposentados e que o tempo já vai sendo pouco para aquilo que ainda não fizemos. A menos que a aposentação seja absoluta, desde os ditos até ao saber que a idade impõe... Esta última hipótese abandono-a já, para recomendar a todos que usem em pleno todos os dotes de que a natureza e a cultura nos equiparam. Salve-se a imaginação quando já nada mais possa ser salvo!!! ------
Falava eu de amoras. Que frutos sugestivos e carnudos a mãe terra nos dá! Basta uma breve gota de suor, como a que terá deslizado pelos trasmontanos sentidos que se evidenciam no Delfim. Num dia de primavera, farto do ruído urbano, rasga uma pequena ferida no solo da cerca. Nessa fenda aconchega as frágeis raízes de duas amoreiras. Faz depois uma pequena costura e a cicatrização foi imediata. Dois anos apenas foi o tempo de que as plantinhas precisaram para se cobrirem de frutos oblongos e negros. O seu criador, qual deus atravessando a tarde serenamente, disse: vinde e comei, vós todos os que chegais como amigos dos largos campos da infância! Na verdade, sois meus irmãos de sangue, desse que corre no corpo das amoras. Vinde, não temais a hora. Ainda temos tempo para erguer uma taça de vinho branco. Sentai-vos por aí! Esta casa é ampla. Cabe lá a nossa memória toda. O sul não é bem o litoral. Pode ser mais à frente ou mais atrás, mais por dentro ou mais por fora. O sul chama-se abril. Tem oitocentos metros de noras. E uma morena presença de Alá, não em pedra mas na urgência silenciosa duma alma que procura em vida o sentido da terra. Ide até à eira. Olhai o mar comum ao longe. Vede como aqui medra o silêncio e se ouve a ondulação mediterrânica. Sem as multidões sazonais. Sem o betão encavalitado nas colinas ou nas dunas. Mantende-vos por aí. Ser-vos-á servido o mais tenro cordeiro destas pastagens. Abriremos um odre de vinho velho. Intenso e perfumado. Diremos isto e aquilo, ou nada diremos. Mas esta tem de ser uma hora suave. Vamos prender nela o tempo, porque um sonho anda no ar. Em a noite vindo, atentos estai, porque ninguém pode ficar fora desta harmonia. Amadeus chegará dos confins do século dezoito e do velho piano, torturado por tantos dedos e desejos passados, arrancará uma passadeira sonora, de mil cores. Estendê-la-á por sobre esta paisagem da noite. E então, num cenário onírico que poderá fazer inveja a Mendelssohn, ouviremos as belas e trancendentes Ana e Jacinta. Assim, nomes simples, quase tímidos, arriscando-se à nossa rudeza auditiva e distribuindo-se entre nós generosamente, dando a cada um os pedaços de voz que cada um conseguir receber. Assim falou o Delfim. Assim se faça, disse a Dulce. E assim se fez, digo eu. Porque estas palavras sabem a bíblia. São criadoras. São transformadoras e não se adiam. Quem esteve antes e viu durante pode confirmar depois que tudo isto foi verdadeiro. E que para o silêncio vai o melhor quinhão. Os sons e a noite prolongaram-se no dia seguinte, desde Silves até às fontes. Expandiram-se no almoço de despedida no alto de Alte, donde se alcançava com os olhos o passado, o presente e até o futuro que possa haver. Nem é difícil presumir que este sul, assim vivido, possa marcar a memória colectiva por muito tempo. ---------------------------
"Voltarei" em breve para amar publicamente aquelas divinas criaturas, servidoras da beleza e da bondade gregas, a quem ainda ouço de joelhos, como quem rezava, no suave chão da tijoleira. Ou em diferido, entre oito colunas, na intimidade secreta do vokswagem, quando parto para longe...