2012-05-27
Alexandre Gonçalves - palmela
O CAMINHO QUE LEVA FRANCISCO
Comecemos pelo porto. É ainda cedo. É quando, no leito nupcial, mais apetece um aconchego reforçado, na manhã fria e nublada. Como quem se refaz duma noite clássica e viril, após os deveres conjugais. À saída do metro, em pose de sedução anónima, está o antónio torres, na sua idiossincrasia original. O dia adquire de imediato outro ritmo e uma irreverência singular. E o bom do torres impõe com argumentos matinais a confeitaria, que estava ali mesmo ao lado. Uma donzela queirosiana, a mesma de tormes, atraída pela nossa entrada arrogante e possessiva, inclina-se com notável profissionalismo. Que tomam? O resto não se diz, porque a jornada é longa. Surge então, na curva dum passeio, um volvo mais idoso do que nós. O meu amigo antónio surpreende-me sempre. Mas desta vez excedeu-se. Pôs um boné de pala, sentou-se ao volante e virou-se para mim: onde quer que o leve? Antes de eu alinhar qualquer ideia, já ele disparava para esposende. Aí nos aguardavam pontualíssimas duas fabulosas criaturas. De um lado, o sólido e abundante presidente, carregado de mantimentos e duma escrita gastronómica soberba. Do outro, o líquido fernandes da silva, com um cristalino poema na imensa mala do carro. De ambos se pode dizer que a estética lhes comanda a vida. Ambos nativos da
região, imprimem aos encontros bens essenciais. O primeiro dá-nos o corpo, isto é, o pão. O segundo dá-nos a alma, isto é, o vinho. Cria-se assim uma harmonia musical, um concerto de afectos, que nos beneficia a todos, elevando-nos a uma espiritualidade integradora, tanto mais verdadeira quanto melhor incorpora a matéria que a suporta.
Minutos depois, a A28 expande-nos o olhar pelas verdíssimas colinas minhotas, à medida que vai subindo pela serra de arga, para depois nos mergulhar nas dobras íntimas da paisagem. É então que emerge ORBACÉM, um nome que passa a integrar a área reservada das nossas incursões, que já cobre o território nacional. Os extremos norte e sul tocam-se agora através duma ponte, que não é de betão mas de braços e palavras recentes, que a idade encheu de sabedoria. Orbacém sobe a colina em férteis e lentos socalcos, amparados por paredes de xisto. Quando o horizonte se amplia para sul e poente, lê-se numa placa: “Caminho do Fradinho”. Concordámos sem hesitações. Nada acontece por acaso. É aqui, disse o manel, com autoridade. E era. Era o caminho que leva a vida do francisco e nos levou a nós a uma ilha de um verde excessivo e barroco. A casa quase se senta para não ser vista. Veste-se de burel, para se perder em meditação e frugalidade. O xisto dá-lhe um ar doce e calmo, como se fizesse um intervalo numa já longa viagem. É uma casa de romeiros sem nome, que em vez de orações rezam quilómetros de pura fruição. A natureza sim, essa é rainha sem castelo. Move-se profusamente pelo espaço inclinado, ora rolando irreverente de socalco em socalco, ora extraindo de um violino invisível melodias apaziguadoras. Quando entrares neste lugar sagrado, meu irmão, descalça os sapatos urbanos e deixa lá fora os mil cuidados que atrapalham os dias. É a hora de estar calado, de olhar a feminilidade da terra, de absorver o seu perfume, de ver as suas vestes transparentes. E de provar a sua fecundidade. Os seus frutos de mil cores, uns para consumo imediato, outros humildemente prometidos. O francisco, sereno e feliz, explica e vai contando. Como nasceu a casa, como abriu as portas a quem passa, como acumulou flores, como fez correr a água nas pedras, em cujas fendas as boninas de camões deitam raízes.
Depois foi o delírio FAVAL. Enquanto a maioria comentava a brevidade dos suaves prazeres terrenos, lá dentro algumas abelhas produziam mel. Um mel que se extrai do coração duma fava ecológica, que a mãe-terra deu à luz. Um exemplar foi submetido às convenções métricas. Um prodígio de tamanho e volume. Quantos não terão tido maus pensamentos! Aquilo ultrapassava os quarenta centímetros. Mas o que importa é vê-las, as favas, a fumegarem já na mesa, e as respectivas guarnições. Se o eça viesse lá de tormes e provasse destes vinhos e comesse destes frutos no século vinte um, em mesa de irmãos chegados de longe, teria de reescrever a cidade e as serras e perceber como tudo na vida é surpreendentemente relativo. Éramos dez os comensais mas cabíamos lá cinquenta e a comida dava para cem. A fala jorrava sem fim à vista. Um dia assim é mesmo escasso. Mas aberto o caminho de par em par, outros favais nascerão, outros dias mais amplos hão-de vir. Por fim, ensaiou-se a urgência e a paz dos cânticos finais, com breves incursões no gosto popular. E deu-se por terminada a liturgia, com doces e melancólicos abraços de despedida. Parabéns, francisco! E um obrigado colectivo fica-nos a todos muito bem.