2012-10-19
alexandre Gonçalves - palmela
RIOS DE OUTONO
Do alto de Palmela, onde me dói a alegria de estar vivo, vejo correr dois rios impetuosos. Um é o rio da indignação. O outro o da esperança. Qualquer deles ultrapassa o seu leito, pelo ritmo excessivo dos caudais. Porém, não há violência nestas águas. Violentas, sim, são as margens que as comprimem (B. Brecht). É meu propósito associar-me aos milhões de vozes e de vidas que neste início de outono mergulham na turbulência dos rios. Se ler não é um castigo, prometo de imediato três intervenções. Uma, que é esta, para insistir no fenómeno geral da indignação, já sugerida por diversas vezes nesta plataforma de encontro. E não me inibo de propor que se aproveite esta raiva colectiva como tema de reflexão e porventura um simbólico exercício de cidadania. A este rio, que corre de toda a parte para Lisboa, referir-me-ei nos próximos dias. Mais à frente, falarei do rio da esperança. Eu sei, como diz o Aventino, que esta é a era do vazio. O céu nada oferece de azul. A terra está nas mãos dos predadores. A idade já nos inclina para a melancolia. Não sei se queremos o passado. Ignoro se o presente não passa duma fraude. E o futuro está a cair como um telhado velho. Pode alguém escrever versos que não sejam tristes? Felizes os que têm voz e se dizem ainda, como se valesse a pena cantar! Mesmo assim, sei onde corre o rio da esperança. E hei-de falar dele como sendo tão verdadeiro como a chuva que agora bate nos vidros da janela.
Mas hoje não, nem nesta hora. Esta chuva é tão doce, tão rítmica, tão retroactiva... Tenho que ir a vila nova, àquela melodia húmida que se ouvia nas salas do quarto e quinto anos. Que descia com tristeza sobre Soares dos Reis e Coimbrões. E sobre as nossas mãos, trémulas de ausências. Tenho de me comover ainda com este largo onde a palmeira resiste, como se fora um café de encontros e confidências. Arrepiam-me as altas torres de Córdoba, pássaros negros ou corujas, que o Gaudêncio apanhou em flagrante a olharem para ele. Isto é, para nós. Finge, amigo, que não viste. Vamos juntar-nos todos para afrontar o inimigo iminente. Viver é resistir. Resistir é organizar-se em círculos concêntricos. Irei ter contigo. Juntamos os pagãos do sul e do nordeste, sequestramos os infiéis do Porto e arredores, nomeadamente o S.Pires, o Nabais, o B.Cardoso, o Aventino, o Peinado e outras espécies ameaçadas, como o Vieira, o Assis, o Meira, etc. No largo da Palmeira, num imenso lenho circular, instauraremos um banquete de residentes. E aí comeremos e beberemos a vida com urgência. E queimaremos todas as teologias da morte, num auto de fé final, como quem protesta contra todas as obscuridades. E havemos de ser felizes, visto que serão bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino da terra. Andei ausente em parte incerta, mas todos entenderão que sou viciadamente ocupado. E que todas as noites faço preceder o meu leito nupcial por uma breve passagem pelo amplo e biodiverso recinto da palmeira. Esta palmeira é alta e dela vê-se o mar, a infância, os amores perdidos e a inocência dos nossos pecados. É por isso que a palmeira, mesmo sem a garantia de herdeiros, está mais viva do que todas as eclesiásticas instituições que lhe inspiraram a existência. E assim como assim, o último a debandar que feche a porta. Sem lágimas nem elogios fúnebres. Aproveito ainda para saudar o luminoso presidente, que em serviço de tolerante e sereníssima continuidade supre com vantagem as sucessivas ausências.