Temos castanhas em Palmela em vésperas do S.Martinho e o tradicional magusto é sempre momento de grandioso convívio.
Ontem lambusaram-se perdizes por lá e como refere o Alexandre, a mestria do Davide consola quem se assente naquelas mesas corridas e parece que todos cumpriram bem as tarefas domésticas.
O Peinado insiste na história dos Encontross bienais em Gaia e eu já dei a explicação que resultou da deliberação aceite na última assembleia geral em Gaia que não teve a sua presença conforme ele nos tinha previamente informado.
É como os amores do Ribeiro, que correm em lânguida e saudosa corrente como se a Elisa ou a ditosa Helena surgissem em sonhos de esperança vã. Um belo trecho que acelerava a concupiscência dos sentidos...já longe dos muros da Barrosa.
Na rubrica "Pontos de vista" o nosso colega Gaudência comentou o último texto do Luís Guerreiro e sensibilizo para a sua leitura, sabendo que as atenções estão normalmente mais atentas ao que se escreve o no " fale connosco".
Pelo que vou lendo no nosso sitio (e ainda bem) vem o Alexandre com as perdizes abrindo azo ás castanhas, vem o Peinado a reclamar rojões e cabritadas, acções por de mais prosaicas mas que fazem debelar tristezas; e, como sabemos, estas são em número que chegue. Isto pode considerar-se o Pão, essencial e necessário, mas e como dizem, nem só de pão se pode viver. Por isso, ao ler o texto do Alexandre vejo que, embora tratando de coisas materiais, todo ele está impregnado de puro romantismo em que ele é mestre. Grande Alexandre! E claro, como eu também sou e sempre fui um inveterado romântico, lembrei-me das minhas pieguices de antanho, entrou-me esse bicho no corpo e rebuscando nos papéis amarelecidos do meu arcaz, onde tenho guardadas muitas escrevinhaduras desses delambidos tempos, lá encontrei uma delas, inspirada num amor fugidio que, pouco depois, emigrou para a Argentina, onde tinha família.
Não, não era a Elisa, essa veio muito depois; esta chamava-se Maria Helena e foi tão verdadeira como eu. Desta forma, vou pedir a vossa indulgência para o escrito, frisando que atenteis na data do mesmo para lhe ser dado o respectivo desconto. Entendo que devemos também acicatar a alma, como fazemos em relação ao corpo com rojoadas, lebres, perdizes e carrascão.
*****
REMINISCÊNCIA
Amada Helena:
Amei-te um dia quando tu eras mais radiosa que a luz da aurora, mais refulgente que um corisco, mais encantadora que o luar de Janeiro, mais romântica que o voar das mariposas irisadas, mais feiticeira que a tentação. Amei-te, deveras, Helena minha, depois de me ter espreguiçado no aconchego dos teus braços, no lambisco dos teus sedosos lábios, na atracção do misterioso abismo do teu corpo.
Como recordo aquelas tardes quentes debaixo de frondoso choupo nas margens do nosso rio onde nos deixávamos perder em beijos tresvariados enquanto o fluir do remanso do meu querido Minho ia zoando soníferas melodias. Ao longe, no confim dos morros fronteiros, caía o astro de lume, queimando a tarde e o meu coração. Trechos inesquecíveis do meu romance!
Oh! Meu adorado amor, como desejava ter-te agora nos meus braços, cingir-te num lúbrico abraço, juntar meus lábios aos teus e nesse verdadeiro rubi beber novamente a doçura do teu pecado.
Cavaleiro andante e só para te encontrar, radiosa Helena, correria vales, subiria montanhas, navegaria mares, numa frenética andança por todas as plagas do mundo, ainda que me perdesse como um pária errante, como um boémio vagabundo ao pó de interminável jornada. Mas vendo-me fenecer na reminiscência daquelas tardes de Outono que passamos, sinto que o meu dia vai findando no crepúsculo da tristeza, na resignação do meu tempo já sem tempo.
Sei que tu andas perdida nas belas paragens do país das pampas, por isso, esquece as minhas bravatas de romântico ginete e aceita apenas um fugaz aceno de profunda nostalgia.
Côrtes, Julho de 1954
MAGUSTO EM PALMELA (10 de novembro, sábado)
Outono breve nos verdes campos de Palmela. O dia comecou com sol deslumbrante, espalhando ouro na paisagem. Um sábado litúrgico, celebrando o silêncio rústico das primeiras chuvas, que lavaram a folhagem, apurando as cores das árvores e das ervas. O primeiro a chegar foi o Chefe Davide, carregado de urgências e perdizes. Quase me apanhava na cama com a outra, mas eu, prevendo o perigo, sugeri-lhe uma fuga pela escada de serviço. Vieram pouco depois o António e o Ricardo, cheios de garra para limpar o quintal. Ficou tudo que nem um brinco. Vai agora aparecer o Fernando, disposto a fazer tudo o que faltava fazer. Mas o último, como vem sendo norma, é o Zé Maria, que traz às costas a sua horta inteira. Sala de exterior varrida, mesa posta, pátios lavados. Enquanto o Davide dá os últimos retoques às ditas, abrimos os vinhos do sul e desembrulhamos os abundantes frutos outonais, colhidos pelos bosques, conforme as inspirações dos fiéis citados. As primeiras libações ocorreram ao som festivo dos aromas. As perdizes rescendiam a carqueija, a esteva e a feno. Desenvolvemos de imediato a teoria da felicidade terrena, que no caso se confundiu com a do céu. Avançámos depois para a execução formal dos salvíficos sabores e saberes recriados, em cumplicidade total com a mãe natureza, que patrocinou o inefável encontro. A degustação premiou sobejamente a expectativa e o esforço investidos, onde predominaram os frutos vermelhos, com um final complexo e prolongado. Na sobremesa, as papilas ficaram submersas num delicado pudim de ovos, que longas mãos femininas teceram de véspera. Para que a perfeição do dia fosse indiscutível, a doçura do outono entornou-se pelo céu abaixo, numa tropical chuvada avassaladora. Tivemos tempo para nos abrigarmos no alpendre poente, e ver de perto, quase tactilmente, os grossos cordões de água, fertilizando raízes e vegetações.
Acabámos o encontro com sólidos abraços, garantindo que a vida é mais uma arte do que outra cousa qualquer. Se não podemos mudar de governo, mudemos ao menos de vida e de hábitos. E por isso convidamos todos os que acreditam nesta narrativa, e os que não acreditam também, a virem testar as nossas teorias no próximo dia 10 de novembro, aqui em oliveira do paraíso, a fim de dar glória ao S. Martinho e às mais nobres tradições da cultura que professamos. É óbvio que este convite inclui particularmente as Senhoras, a quem atribuímos mais sensibilidade para estes eventos de carácter espiritual.
Nasci, há muitos anos,
“Numa Pátria … e que Pátria;
a mais formosa e linda
que ondas do mar e luz do luar viram ainda!”
Pois é Junqueiro, isso era no teu tempo e também foi em certo bocado do meu, mas agora essa Pátria está morta, saqueada e vendida. Se foi boa para nascer, debaixo dum céu limpo e dum sol brilhante que nos aquecia a vida, agora tudo se tornou caliginoso e gélido como uma sepultura. Neste tempo não existe pior nem mais triste País para se morrer; porque se vai morrendo lentamente, sem esperança, sugados por vermes e parasitas asquerosos, antes mesmo de já estarmos depositados nas entranhas da terra. Pulula por toda esta Pátria uma bicharada tal que não há pesticida que dê cabo dela. Pois é, Junqueiro, agora essa Pátria engelhou, perdeu a formosura, o mar recuou, o luar apagou-se no romantismo do seu infeliz Povo. Não venhas cá agora que te comem vivo e nem os ossos te deixam!
Quer partilhar alguma informação connosco? Este é o seu espaço...
Deixe-nos aqui a sua mensagem e ela será publicada!