OLÁ, VIAJANTES DA VASTA VIDA!
Regressado a salvo das praias da Ericeira, preparo em Oliveira do Paraíso o pagão ritual da celebração da vida, anunciado para o próximo dia 10 de Novembro. Enquanto participantes do círculo dos vivos, temos o direito e a obrigação de celebrar este mistério espantoso que é acordarmos e sentirmos o ruído gostoso da respiração. Pela janela do quarto vemos uma paisagem molhada e serena, que no silêncio das raízes programa a primavera. Na rua passam pessoas que acreditam em qualquer coisa e gritam desejos e revoltas e são belas. A esta hora (11 da manhã de domingo) passa um homem da nossa idade, que alegremente passeia o seu cão. Logo depois, passam duas raparigas nas suas bicicletas, praticando anatomia e uma beleza flutuante. Um pouco depois, é um casal a caminhar com urgência, ambos suados, a esconjurar ameaçadoras adiposidades. É novembro, um doce novembro, agora não chove, nem faz frio, apenas um resíduo de melancolia no ar, apetece ver alguém, trocar duas palavras de café, almoçar devagarinho, para que o dia seja mais longo, para ampliar a escassa vida. Pois bem, hoje é o dia 10, é sábado, palmela fica perto de tudo, o outono parece um calmo rebanho de ovelhas a pastar as primeiras ervas. Venham surpreendê-lo, no esplendor da mais ganuína tradição. O vinho corre generoso e abundante nestes campos, sem se misturar com a chuva do céu. E vai haver castanhas, à moda das beiras, assadas ao ar livre, por entre chamas breves de ramos secos,silvas e caruma. E haverá uma fogueira arcaica, circular e lenta, em redor da qual se soltarão as línguas iluminadas, glorificando a memória e estes rituais sagrados que atestam a nossa existência comunitária. Venham de perto e de longe, acreditem e tudo vos será dado! O encontro começa pelas 10 e acaba pela hora da lua.
Em nome da vida, relembro versos de Gedeão. Eles justificam as crenças e as libações e mais que tudo proclamam o direito de exaltar a vida e tudo o que há nela.
Venho da terra assombrada
do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada,
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.
............................
Com licença! Com licença!
Que a vida á água acorrer.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.
TEOLOGIA DA MORTE
Estou dentro do carro olhando o mar da Ericeira, todo eriçado de altas ondas e de surfistas militantes. Choveu toda a manhã mas agora o céu está apenas pálido e quase frio. Ouço Mozart no seu arrepiante Requiem e morro, até onde é possível morrer, na condição de me sobrar um pouco de vida para regressar a casa. Porque não se morre de repente. Vamos desaparecendo com alguma lentidão, a ponto de não sabermos nunca em que circunstância se morreu mais. Mas sabemos que a morte só leva os restos, o que ninguém quis, o que sobrou dos verões passados. Uma espécie de comida estragada, eu sei lá, um iogurte fora de prazo, um feminino pudim de ovos, uma torta de laranja, enfim, tudo mal acautelado, em permanente exposição aos mil perigos de estar vivo. Primeiro é por dentro que nos despedimos de rostos, de lugares, de afectos, de crenças. A pele e o sono ressentem-se logo. Envelhecemos como papel de jornais abandonados num sótão qualquer. Depois, começa a corrida aos médicos e aos diagnósticos. Aprende-se à força um estranho vocabulário, que os familiares comentam com pudor respeitoso. Era um homem cheio de saúde. Caiu de repente. Não é verdade. Viver é ir morrendo. E tanto mais depressa, quanto menos se crê na utilidade da vida. Tudo isto me é dito no dramatismo destes acordes ironicamente belos, cheios, medonhos. Mas também é dita uma raiva contra a morte, uma revolta contra a resignação, um apelo ao sentido e à coragem. Os tenores e os sopranos clamam com violência que não foram os deuses que nos deram a vida, seja qual for o nome que tiverem. Os deuses estão do nosso lado. Foi para isso que nós os criámos.
Apesar de tudo, são os baixos que me atrapalham, no som lúgrube das suas vozes trágicas. Como os coros gregos, a anunciar o fim funesto das personagens. Olho o mar e choro. Os surfistas divertem-se com as alterosas ondas, com o perigo que há nelas. Mas não ouvem este satânico Mozart, que sem piedade explica a inconfundível violência da morte. Talvez ele se estivesse a despedir de pessoas concretas, no fogo da idade e das paixões insolúveis. Ou de si próprio, numa antecipação vingativa do seu desaparecimento iminente. Vou sair do carro. Vou desligar estes botões. Vou-me entregar aos elementos, misturar as minhas lágrimas com as da chuva, que voltou. E beber um pouco de sal deste mar enlouquecido.
Foi aqui, nesta praia secreta e antiga, que um dia vi outubro chegar cheio de frio. Nesse tempo, porque havia ainda muito futuro, eu fotografava pedras, rostos, espumas. Tinha um voksvagem mais velho do que eu, daqueles que arrefecem especialmente bem quando respiram o ar litoral. Relembro-te. E preciso de o fazer para ainda hoje regressar à paz. Também eu quero arrefecer. Isto é, resistir, recomeçar, arder de outra maneira. Tu estás ao fundo, junto de um penhasco milenar, protegida do vento norte. Estendi uma velha manta de trapos para te garantir algum conforto. Estás sentada, não te esqueças que está frio. Mas há um pouco de sol a bater-te no rosto, que os teus cabelos soltos tentam esconder. Ponho-te ainda o meu blusão pelos ombros, não porque precises mas para te dizer que esta tarde de outubro é inesquecível. Depois fotografo esta pedra monstruosa, onde o mar rebenta de raiva, como se a quisesse derrubar. Registo ainda as ondas, a espuma e o tempo e comovo-me. Na praia não há mais ninguém. E nem por cima das nossas jovens cabeças o céu nos vigiava. Tanto era o silêncio. Foi então que me aproximei. Estavas de pé, cabelos revoltos e muito bela. A malha justa definia-te um corpo sóbrio mas delicadamente ondulado. Olha e ri-te! Disparei na hora mínima de uma distracção. A fotografia guardo-a num cofre codificado. A cena grito eu por ela sempre que por aqui passo. Avanço. Só de perto, tão perto que a respiro, é que eu vejo que uma torrente de lágrimas se vai perder no mar. Meu amor, minha hora suprema, vou morrer! Ah, sim? Eu também!, brinquei eu, abraçando-a e aconchegando-a até onde me foi possível. Cheguei eu a pensar que era assim que se começava uma paixão fulminante. Não era. Ela explicou, derramando-se em água mais salgada que a do mar. Os médicos já tinham definido e justificado o prazo. Foram mais seis meses de tortura. A última vez que a vi só resíduos do seu corpo eram visíveis. Porque a alma, assim que percebeu a gravidade, foi-se embora de noite, sem que ninguém o notasse.
Largo a praia e o penhasco, onde rezei por ela. Rezar é lembrar e fazer da própria vida um ajuste de contas com a morte dos outros. Regreso ao carro, os surfistas desafiam as ondas e a morte e gozam com as inúteis flores que levamos aos cemitérios. Agora já quase escurece, não chove, e faz novembro. Acendo outra vez Mozart para ouvir apenas os tenores e os sopranos. Vou pedir-lhes força para regressar a casa e jamais me resignar às funestas professias dos coros gregos.
"O demais, será a eternidade" (Aventino)
Talvez não seja bem assim como falei ao reviver as palavras dum padre amigo que se encontrava já com um pé em marcha para a chamada 'outra vida'. A Verdade quem, entre os humanos a terá? Creio que ninguém, ao menos de forma total.
Hoje, como também ontem e todos os "ontens", todos eles são dias santos..., levantei-me aos sons benfazejos da natureza. Abri a janela para saudar as plantas, 'só elas morerrão' mas voltarão da terra a surgir sempre belas. Cumprimentei com um assobio o Pisco que há muito cantava no alto da magnólia. Cumpridas as cerimónias habituais dum 'cristão' mais ou menos limpo, preparei e saboreei o pequeno almoço, para mim sempre grande, como nenhuma outra refeição.
Um disco na 'grafonola' e uma 'missa-eucaristia' em canto luso-brasileiro. Dele, depois de haver aberto o nosso lugar da palmeira e saboreado a tua poética mensagem de romagem (terminação de viagem) ao cemitério, vou arrancar, como quem arranca uma jovem planta para noutro jardim ela florir, vou arrancar um canto que quero ouças desde o local onde te encontras - não já o cemitério - e me digas se o 'demais' É - não "será" - Eternidade...
Não fui ao cemitério, nem é meu gosto oferecer flores a ninguém, menos lançá-las à terra. À terra, apenas quando mortas para denovo renascerem com novas cores e fresca beleza.
Adoro oferecer plantas e sementes, isso sim, adoro. Todos os dias são santos - para o próximo ano também o dia 1 de Novembro o será - dignos de oferecer Plantas Vivas aos SANTOS que já nos deixaram, muitos eles são.
Dizia então o saudoso padre Caetano, referindo-se ao cemitério em cujo campo a terra de seu corpo iria, poucos dias depois, juntar-se à de quantos o haviam feito antes: "Nada mais...só terra ali existe, nada mais... a 'eternidade', "o demais" fica com as pessoas amigas e comigo". Foram mais ou menos estas as palvras - não literais - do santo padre Caetano.
Escuta então este canto arrancado na 'festa dos pequenos' à vida de quem trabalha pela Vida:"Pão em todas as mesas/no nosso altar.."
E lá fui eu, o dia a amanhecer,
eu na florista, um ramo por favor. Quero gladíolos, ramos de palmeira, rosas vermelhas, sim, sim, essas. Ah! e gerberas!
(O telefonema do ASSIS, e eu a dizer-lhe, vou ao cemitério, o meu pai e a minha mãe esperam-me, florista, flores, os braços do meu pai, os beijos da minha mãe, e o ASSIS, oh moço, somos todos terra, cova funda, imaterialidade e nada mais)
está bem assim? a florista a perguntar e eu a dizer não está nada bem assim, o que eu queria era que não houvesse ramos, nem flores nem cemitério, nem dia um de Novembro, nem a terra de que me fala o ASSIS.
Então, Moço, estás em Moledo? eu e o Barros estamos aqui em frente ao mar, o dia está belo e lembramo-nos de ti, continuou o ASSIS,
(e a minha mãe a escrever-me postais para Coimbra e cartas e telegramas e o meu pai a escrever e a minha mãe a chorar e eu a chorar, meu querido filho, muito estimo que ao receberes esta nossa carta te vá encontrar de perfeita e feliz saúde que nós por cá ficamos todos bem) e o ASSIS a falar-me que somos pó e em pó nos haveremos de tornar).
E nesse silêncio feliz os tive a todos. O terno peito do meu pai, o calor dos beijos da minha mãe, o maravilhoso telefonema do ASSIS.
Morrerão apenas os gladíolos, as rosas e as gerberas. O demais, será a eternidade.
Companheiro Ismael Vigário: vou voltar aqui para um simples agradecimento das tuas belas palavras sobre o meu despretensioso texto; deves saber que tudo isso não são mais que devaneios duma mocidade que já passou e não volta mais na qual, necessariamente, quase todos os jovens eram românticos. Outros tempos! Hoje não é bem assim. Verifico também - o que muito me alegra - o teu romantismo e a bela lição que apresentas sobre o mesmo. Posso dizer que és dos meus! E não podia estar mais de acordo contigo. Mal de nós se, nestas insuportáveis desgraças da vida, não pudéssemos encontrar um cantinho na alma para nos refugiarmos, por isso, sabe bem ir desenterrar todas as recordações que nos fizeram felizes. E o romantismo faz-nos sonhar e ele próprio é sonho. Sou assim e não me arrependo. Falaste aí no Camilo, no Herculano, em tantos outros mas a mim o que mais me enche as medidas é, na verdade, o Herculano: prosador inimitável, cultor perfeito da nossa “última flor do Lácio”, deu á estampa esse espantoso livro - EURICO, o presbítero - que eu desbotei de tanto o ter lido e profanei com densas anotações. Quem pode ficar indiferente a Hermengarda? Como se pode deduzir, todos nós temos ou tivemos algum dia, uma mulher que nos ficou na memória; o nome não interessa. Ah! Ismael, mas este teu tópico é um poema do mais belo que se pode escrever e que dá grande prestígio a este nosso sítio dos AARs. Do meu coração, obrigado e vai-nos deliciando com mais. Abraço!
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