2012-11-03
alexandre gonçalves - palmela
TEOLOGIA DA MORTE
Estou dentro do carro olhando o mar da Ericeira, todo eriçado de altas ondas e de surfistas militantes. Choveu toda a manhã mas agora o céu está apenas pálido e quase frio. Ouço Mozart no seu arrepiante Requiem e morro, até onde é possível morrer, na condição de me sobrar um pouco de vida para regressar a casa. Porque não se morre de repente. Vamos desaparecendo com alguma lentidão, a ponto de não sabermos nunca em que circunstância se morreu mais. Mas sabemos que a morte só leva os restos, o que ninguém quis, o que sobrou dos verões passados. Uma espécie de comida estragada, eu sei lá, um iogurte fora de prazo, um feminino pudim de ovos, uma torta de laranja, enfim, tudo mal acautelado, em permanente exposição aos mil perigos de estar vivo. Primeiro é por dentro que nos despedimos de rostos, de lugares, de afectos, de crenças. A pele e o sono ressentem-se logo. Envelhecemos como papel de jornais abandonados num sótão qualquer. Depois, começa a corrida aos médicos e aos diagnósticos. Aprende-se à força um estranho vocabulário, que os familiares comentam com pudor respeitoso. Era um homem cheio de saúde. Caiu de repente. Não é verdade. Viver é ir morrendo. E tanto mais depressa, quanto menos se crê na utilidade da vida. Tudo isto me é dito no dramatismo destes acordes ironicamente belos, cheios, medonhos. Mas também é dita uma raiva contra a morte, uma revolta contra a resignação, um apelo ao sentido e à coragem. Os tenores e os sopranos clamam com violência que não foram os deuses que nos deram a vida, seja qual for o nome que tiverem. Os deuses estão do nosso lado. Foi para isso que nós os criámos.
Apesar de tudo, são os baixos que me atrapalham, no som lúgrube das suas vozes trágicas. Como os coros gregos, a anunciar o fim funesto das personagens. Olho o mar e choro. Os surfistas divertem-se com as alterosas ondas, com o perigo que há nelas. Mas não ouvem este satânico Mozart, que sem piedade explica a inconfundível violência da morte. Talvez ele se estivesse a despedir de pessoas concretas, no fogo da idade e das paixões insolúveis. Ou de si próprio, numa antecipação vingativa do seu desaparecimento iminente. Vou sair do carro. Vou desligar estes botões. Vou-me entregar aos elementos, misturar as minhas lágrimas com as da chuva, que voltou. E beber um pouco de sal deste mar enlouquecido.
Foi aqui, nesta praia secreta e antiga, que um dia vi outubro chegar cheio de frio. Nesse tempo, porque havia ainda muito futuro, eu fotografava pedras, rostos, espumas. Tinha um voksvagem mais velho do que eu, daqueles que arrefecem especialmente bem quando respiram o ar litoral. Relembro-te. E preciso de o fazer para ainda hoje regressar à paz. Também eu quero arrefecer. Isto é, resistir, recomeçar, arder de outra maneira. Tu estás ao fundo, junto de um penhasco milenar, protegida do vento norte. Estendi uma velha manta de trapos para te garantir algum conforto. Estás sentada, não te esqueças que está frio. Mas há um pouco de sol a bater-te no rosto, que os teus cabelos soltos tentam esconder. Ponho-te ainda o meu blusão pelos ombros, não porque precises mas para te dizer que esta tarde de outubro é inesquecível. Depois fotografo esta pedra monstruosa, onde o mar rebenta de raiva, como se a quisesse derrubar. Registo ainda as ondas, a espuma e o tempo e comovo-me. Na praia não há mais ninguém. E nem por cima das nossas jovens cabeças o céu nos vigiava. Tanto era o silêncio. Foi então que me aproximei. Estavas de pé, cabelos revoltos e muito bela. A malha justa definia-te um corpo sóbrio mas delicadamente ondulado. Olha e ri-te! Disparei na hora mínima de uma distracção. A fotografia guardo-a num cofre codificado. A cena grito eu por ela sempre que por aqui passo. Avanço. Só de perto, tão perto que a respiro, é que eu vejo que uma torrente de lágrimas se vai perder no mar. Meu amor, minha hora suprema, vou morrer! Ah, sim? Eu também!, brinquei eu, abraçando-a e aconchegando-a até onde me foi possível. Cheguei eu a pensar que era assim que se começava uma paixão fulminante. Não era. Ela explicou, derramando-se em água mais salgada que a do mar. Os médicos já tinham definido e justificado o prazo. Foram mais seis meses de tortura. A última vez que a vi só resíduos do seu corpo eram visíveis. Porque a alma, assim que percebeu a gravidade, foi-se embora de noite, sem que ninguém o notasse.
Largo a praia e o penhasco, onde rezei por ela. Rezar é lembrar e fazer da própria vida um ajuste de contas com a morte dos outros. Regreso ao carro, os surfistas desafiam as ondas e a morte e gozam com as inúteis flores que levamos aos cemitérios. Agora já quase escurece, não chove, e faz novembro. Acendo outra vez Mozart para ouvir apenas os tenores e os sopranos. Vou pedir-lhes força para regressar a casa e jamais me resignar às funestas professias dos coros gregos.