2012-12-02
AVENTINO - PORTO
E AQUELES QUE FICARAM
Na casa do ASSIS é que se é feliz.
( e o meu pai a dizer silêncio, silêncio, que as paredes têm ouvidos. E o meu pai a dizer guerra civil de Espanha, cinco anos, combatente, republicano, clandestino, depois a Legião Francesa, a fronteira, França, de novo a clandestinidade, a Gendarmarie a expulsá-lo, repatriado, Portugal, Salazar e a miséria)
Na casa do ASSIS é que se é feliz.
(Soalhães. Marco de Canaveses. E o meu pai a contar-me, criança de oito ou nove anos de idade que eu era. Silêncio. À lareira da minha casa velha velha, de um país velho, de um ditador velho. Na Freguesia ao lado havia um padre. O padre era convidado para almoçar aos domingos em casa da senhora, casa senhorial, proprietária, rica, criados e criadas, caseiros, regime, Salazar. O padre foi, o primeiro domingo, à mesa com a senhora, mesa longa, farta, os dois, as criadas a servirem).
Em casa do ASSIS é que se é feliz.
( e o padre a dizer: se os criados não vierem comer para esta mesa ao nosso lado eu não como nada e não volto cá. O meu pai a contar-me e esta criança encantada, o meu pai encantado, o sonho, a liberdade, a igualdade, um mundo novo imaginado que nunca, nunca, vim a conhecer).
Em casa do ASSIS é que se é feliz.
(o padre era o padre MÁRIO DE OLIVEIRA, vim a saber muitos anos mais tarde, infância passada, seminário passado, Coimbra e o cheiro a liberdade).
E assim se foram os sonhos com que o meu pai, ateu, republicano, anti-clerical e sonhador me foi encantando, num misto de sonho e de mentira, num misto do imaginado e do possível. Depois, houve uns tipos que se disseram padres e me expulsaram do seminário. Uma carta a 17 de Agosto de 1970 dava a notícia. Bela ou monstruosa ainda não sei. O que sei é que o futuro é este dia de hoje. Ausente do terno afecto que me tiraram; presente da rectidão, da honra, da lealdade, do carácter com que o seminário me fez cidadão, português, Aventino.
(Corria o meu terceiro ano do curso de direito da Faculdade de Direito da Academia de Coimbra. Os jornais diziam, os jornais falavam Padre Mário de Oliveira, julgamento no Porto, Tribunal Plenário. E lá vim eu, manhã cedo, cinquenta escudos de combóio, esperança a rodos, (e as palavras de meu pai a ecoarem, os olhos de meu pai, os sonhos de meu pai pela liberdade).
Ao tempo, o regime estabelecia que os estudantes de direito, entre outros, naturalmente, tinham preferência nas salas de audiência dos tribunais portugueses. E este sonhador lá rumou adentro pelas portas de ferro do Tribunal de S. João Novo, polícias á porta, polícias pelos corredores, polícias na sala. Estudante da Faculdade de Direito. Coimbra, disse-lhes. Cartão na mão. Pose empertigada. Seguro que "aqui ao leme sou mais do que eu". E o polícia: a sala está completa; não pode entrar. E barrou-me o caminho. Completa de Pides? perguntei-lhe eu. Completa, respondeu-me esse miserável cidadão).
Bem haja Padre Mário de Oliveira. Bem hajas, meu querido ASSIS.
Na tua casa ainda somos felizes.